Gabava-se de rua em rua e de sol a sol. Era por todos
conhecidos como um grande devoto e nas discussões bíblicas tinha fundamentos
até para derrubar alguns clérigos menos preparados. "Foi a guerra que me
tirou do ministério. O meu nome já 'encosta ‘na' lista dos 144 mil que vão 'no'
céu!” Afirma convicto.
No bairro e na igreja que frequentava, era até então chamado
de "irmão Catorze-Quatro", em alusão aos três primeiros algarismos
que na numeração árabe ganham, à direita, três zeros para completar o número
dos escolhidos, que segundo o livro da bíblia cristã, Apocalipse 14:01, vão
governar a terra com Cristo, num executivo que terá o seu palácio no alto dos
céus.
Na terra, dizia o irmão Catorze- Quatro, ficariam as mulheres
e homens de boas obras, mas que pela sua inconsistência, não chegavam a atingir
a excelência cristã. O patamar em que se julgava estar.
Catorze-Quatro tinha todos os versículos de Apocalipse e
Salmos 115:16 bem sublinhados e abria-os prontamente para se defender sempre
que fosse afrontado por jovens reformistas e inconformados com a maneira como o
templo físico era governado pelos “kotas” da velha guarda. Era também o
primeiro recurso àqueles que se iniciavam na “pregação da palavra” ou que
participassem de debates inter-eclesiais.
Filho de uma camponesa alfabetizada e de um comerciante de
fuba e peixe seco, Catorze-Quatro nasceu numa missão evangélica protestante e
lá fez toda a sua instrução preparatória, até à chegada da idade militar que
lhe “roubou o sonho de se tornar pastor ordenado”, quando já frequentava o curso
propedêutico no Seminário Emmanuel Unido do Ndondi, no planalto angolano.
Manteve, porém a vocação sacerdotal e fazia questão de se gabar de ser “um dos
poucos escolhidos que conhecerão e trabalharão 'caralmente' com o Messias no
seu governo vindouro e sem fim".
Já a descrever a curva dos cinquenta e com a berma encefálica
apinhada de algodão, Pinto Kwononoka, de sua graça, lutava para ser elevado à
categoria de diácono, ao mesmo tempo que se esforçava em ser um
“velho-jovem", aderindo a todas as modas físicas ou virtuais que lhe chegavam
pelas redes sociais.
Era um “velho actualizado”, diziam os mais novos. Há já anos
que as suas roupas se pareciam à pele colada ao animal ainda vivo. Os seus
telefones eram todos de último grito e tinha plano infinito de internet que lhe
permitia passar a vida a dedilhar, mesmo durante os cultos dominicais. Na
igreja, para não dar nas vistas enquanto trocava mensagens, escolheu um lugar
estratégico para a sua nova mania: senta-se próximo de um pilar de sustentação
com uma saliência que faz um ângulo recto, onde disfarça o aparelho em que
palavreia com os amigos durante o culto. E foi levando a sua "santidade de
mentira" com a “cipala” semi-lavada até ao dia em que foi chamado para
abençoar o ofertório da igreja.
- Irmão Catorze-Quatro, leva-nos a Cristo em oração! - Pediu
o reverendo Kabwiza.
O dia era de sol. A subida de temperatura era acompanhada com
o vigor das vozes corais dos grupos alfa e ómega e dimatekenu nyi dizubilu. Cantaram
garbosamente os coros, um a um, fazendo "descer o céu à terra". Para
uns, a arrebatamento estava para segundos. O pastor tomou a palavra para
agradecer os coros e os “dizimistas” do primeiro domingo daquele mês de sol e
chuvas fartas.
"Convido o nosso querido papá Catorze-Quatro para nos
levar a Cristo em oração", anunciou o reverendo.
Catorze-Quatro que, apenas ouvira o peido do pastor mas não
percebera, se manteve pregado no acento corrido de madeira e a olhar para a
“auto-cipala” que tinha acabado de fazer para brindar a amiga com quem teclava
ao telefone, até que o pastor voltou a apelar, num tom mais audível e algo
sério. "Irmão Catorze, abençoe a oferta, por favor".
Sem desligar o telefone, o benquisto irmão Catorze, o mais
falado da congregação, elevou as mãos ao alto, antes dos habituais dois passos
que separam o orador do assento, e começou a sua evocação:
- Meu Deus, mô papá, abre teus olhos e estende a tua mão aos
nossos jovens. Cada dia há mais desvios. O "pirigo" está em cada
esquina, em cada beco, em cada telefone, meu Jesus. Faz do teu espirito santo
um pastor atento, mô papá, para nos proteger dos lobos presenciais e virtuais,
mo Dedê (...) Aqui mesmo na ngelú, enquanto oramos, outros se preparam para nos
devorar psicologicamente. Uns são nossos irmãos no templo e nossos inimigos na
rua. Mô Dedê, sabes o tudo quanto nos falta e nos enfraquece. Derruba grilhões,
retira as pedras de tropeço dos nossos caminhos… Em nome do teu filho, nosso
irmão na carne, que espero me receba no seu governo celestial, te peço
infinitamente. Amem!
Catorze-Quatro baixou as mãos, abriu os olhos, e ao descrever
aos 180 graus, deparou-se com uma circunferência formada por jovens no seu
canto preferido. Enquanto orava, a loira que do outro lado aguardava pelo
"selfie", foi enfeitando o telefone do irmão Catorze-Quatro com
mensagens eróticas e imagens, umas em estado animalesco e em poses “kamasutranas”,
que divertiram, nos quinze minutos da sua longa petição de “perdão e abertura
dos bolsos", os jovens que rápido se abeiraram das suas máquinas: um
potente telefone e uma interlocutora da conversa virtual “bem calibrada”
fisicamente e com tudo à mostra.
Quando se dirigiu ao assento, foi recebido com um criativo
"irmão Catorze, temos de redobrar a vigilância e vergar cada vez mais o
joelho, os telefones estão cheios de perigos”, ao que respondeu com um
cabisbaixo “sim, irmãos. O mundo é um ‘pirigo’ permanente”, dando-se conta do
"cinema sem bilhete” que proporcionou à miudagem, ao mesmo tempo que
eliminava, uma após outra, as mensagens eróticas e imagens com a “cipala” e o
"peito alto" da “kindoza” que se parecia a uma “kuribeka” barata e
caçadora de tesouros.
"Irmão 'Pirigo'", irmão Pirigoéé?! - Zombam
hoje os jovens, dentro e fora da igreja, sempre que Catorze-Quatro põe a cara
fora do quintal. A sua fama ainda corre o Rangel, pois apesar do acontecimento
levar já décadas, os miúdos que se tornam adolescentes e jovens ainda escrevem,
e cada vez mais, em todas as ruas onde é conhecido: "por cá também passou
o irmão 'Pirigo!'"
Texto publicado pelo Semanário Angolense a 19.09.2015
Texto publicado pelo Semanário Angolense a 19.09.2015
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