DE REGRESSO AO RA
Depois de muitos anos ausentes do
bairro de nascença e ou criação, a maralha voltou ao Rangel. Foi um reencontro
espontâneo, sem que houvesse combina ou telefonemas. Aliás, o tempo
encarregou-se de os reduzir de amigos a meros conhecidos. Já ninguém sabia onde
vivia o antigo vizinho e amigo dos trumunos de rua. Já ninguém sabia da família
do outro, nem possuía o número de telefone do colega das
caminhadas ao Ngola Mbandi, Kilwanji, Makarenko, Comercial ou Kanini. Chegaram de
distintos caminhos e pronto. Encontraram os velhos que teimam em não sair do
bairro e os jovens que no olhar da maralha emigrada "estagnaram no espaço
e no tempo".
- O Rangel já era. Já deu o que
devia dar. Produziu homens, cérebros iluminados e iluminantes, mas acabou. Sem
reformas profundas, sem drenagem das águas pluviais e domésticas, o Rangel virou
um lamaçal que só não chega à pocilga porque desapareceram os ngulu que a
deviam chafurdar. - Desabafou, desgostoso, o ancião Zeca Martins que costuma
fazer leituras correctas da situação, embora ele também, tal como outros da sua
idade septuagenária não abdique de seu bairro de uvalukilu. Por isso mesmo é
que no dizer do tio Zecave, para os do bairro, “levar um turismo novo ao
Rangel, nesse tempo de descargas de São Pedro, seria transforma-lo em ngulu na
pocilga”.
- Acabou-se o RA. – Atirou o
velho com um misto de desgosto.
A maralha visitante é gente com
mais de meia-idade vivida nas ruas do então município do Rangel (e suas comunas
do Rangel, Marçal e Zangado, e Nelito Soares). Mesmo à distância, nvão
procurando saber como está o velho fulano, a velha beltrana, a rua ípsilon,
etc. Uma vez na banda, a maralha entendeu comemorar o momento e, por isso, comprou
vinho para os papás, gasosas e sumos para as mamãs e birras para os demais. A
habitual kisângwa da tia Chica não faltou e foi mesmo o primeiro líquido a ser
consumido. No Rangel impera ainda o hábito antigo de vida comunitária e as
pessoas foram participando da festa, também espontânea, à medida que iam
chegando. Uns contribuindo com angolares e outros simplesmente com a boca.
No Rangel, os bons papás, aqueles
que aconselham para bons caminhos, são benquistos por todos. O mesmo diz-se dos
filhos. Os bem comportados também são filhos da comunidade. Apenas os malandros
são censurados. As mamãs, essas, espalham a sua bondade e caridade até para os
trapaceiros.
- O que saiu da barriga não se
nega. - Dizem as mães rangelistas em socorro. Se calhar foi esse mimo que fez
alguns encalharem.
O México, os Sêngulas, o Maxinde,
o Maria das Crequenhas e etc. estão e continuam aí, mesmo em ruinas. O kimbombo
ainda sai por encomenda e o kapuka é mais quantitativo do que a birra. A
kangonha brota nos quintais apertados do do México ou nos vasos das plantas
sedentas de água abundante nas ruas. Chovia bebedeira, música de intervenção,
conversa nostálgica e planos de requalificação. E o Rangel ainda vivia um dos
seus belos dias.
Pois é. A maralha, os ditos iluminados ou retornados visitantes tanto falavam sobre os passos que tinham dado em suas vidas como da "necessidade ingente" daqueles que estão mais avançados fazerem algo para fazer do RA um bairro habitável com o mínimo de sanidade e tranquilidade.
Uns malambavam também os seus recuos na vida, como o Joaquim da Brigada que construiu um prédio na zona de passagem de água, vendo tudo ser ofertado ao grande kalunga-lwiji. Mas os que empurravam barrigas para frete e tripulavam anfíbios eram a maioria e eram esses que comandavam as conversas que se parcelavam em função da condição financeira, planos para o Rangel e visão histórico-social e cultural sobre o bairro-município.
- Temos de fazer o que a Vila Nova de Viana está a beneficiar. É um bairro novo e, graças a visão dos dirigentes daquele município que querem alargar o casco urbano, estão a cavar todas as ruas, enterrar tubos enormes para escoarem as águas domésticas e pluviais que são canalizadas para uma lagoa criada para o efeito. Nós até estamos bem servidos pelo declive. - Explicou Man-Tony para prosseguir:
Pois é. A maralha, os ditos iluminados ou retornados visitantes tanto falavam sobre os passos que tinham dado em suas vidas como da "necessidade ingente" daqueles que estão mais avançados fazerem algo para fazer do RA um bairro habitável com o mínimo de sanidade e tranquilidade.
Uns malambavam também os seus recuos na vida, como o Joaquim da Brigada que construiu um prédio na zona de passagem de água, vendo tudo ser ofertado ao grande kalunga-lwiji. Mas os que empurravam barrigas para frete e tripulavam anfíbios eram a maioria e eram esses que comandavam as conversas que se parcelavam em função da condição financeira, planos para o Rangel e visão histórico-social e cultural sobre o bairro-município.
- Temos de fazer o que a Vila Nova de Viana está a beneficiar. É um bairro novo e, graças a visão dos dirigentes daquele município que querem alargar o casco urbano, estão a cavar todas as ruas, enterrar tubos enormes para escoarem as águas domésticas e pluviais que são canalizadas para uma lagoa criada para o efeito. Nós até estamos bem servidos pelo declive. - Explicou Man-Tony para prosseguir:
- Vejamos as nossas vantagens
para a instalação de drenagem sem grandes engenharias topográficas: a rua que
acompanha a linha férrea já tem inclinação e morre na vala das cervejeiras. As
partes do Marçal, Zangado, Terra Nova, Bês e Cês despejam as águas na vala
Senado da Câmara. Já viram? Temos de passar as ideias a mais rangeliatas que
estão lá onde se contam e distribuem as empreitadas e as notas.
- Sim, Man-Tony. Boa ideia. - Aplaudiu
Pedrito, um jovem que ainda não saiu do RA por ser filho kasula, mas já não
muito satisfeito com a lástima em que se tornou o bairro. É preciso que os
kotas façam algo para o bairro que está a morrer. Alguns kotas, hoje, mesmo
para deixar dinheiro ou medicamentos para os idosos que não querem ir viver nos
apartamentos com os filhos e netos marcam encontro no Triângulo ou nos
Congoleses. Já ninguém que partir o carro no bairro. Isso tem de acabar, kota.
– Disse Pedrito
- É isso, meu kandenge, retomou
António João, o Man-Tony para os do RA. Mas para isso acabar temos que estar
unidos, cada um fazendo a sua parte, por mais ínfima que seja. Criarmos
movimentos cívicos que exerçam pressão positiva. Não estou a falar de partidos
arruaceiros que destroem monumentos como tivemos num passado recente.
Precisamos de ideias que ajudem os governantes a tomarem as melhores medidas em
prol do município ou do distrito. - Discursou Man-Tony que já tinha o aval de
quase todos para líder da maralha em visita ao bairro da infância e juventude.
Os "estagnados" do
bairro ouviam e consentiam calados. Dos lamentos sobre as águas podridas não
passavam. Deliciavam-se com os verbos eruditos e do que lhes era posto à mesa
periférica que para eles era mais do que uma festança. Tinham aposentado,
naquele dia, o kimbombo e o kaporroto do dia-a-dia dos becos.
- Kotas, têm de ver também a
questão dos becos que estão a desaparecer. Aliás, já não há mesmo. Você a
correr se põe num beco, na bisga, e quando assusta estás num portão ou mesmo já
num quintal sem saída. Assim, se a rusga voltar, vamos "esquinar" como?
- Afiançou Man-Gasparito, único dos residentes que ousou em interromper a
conversa dos "iluminados" da diáspora.
- Sim, filho Gaspar, os becos já
ajudaram muito os vossos irmãos para não serem "kangados" para a
tropa. Isso desde o tempo das prisões do Poeira. Também nos ajudaram muito a
fazer corta-mato para ir à baixa trabalhar. A pessoa entrava num beco e só
cruzava a rua para apanhado outro beco. Era assim até chegar ao Zé Pirão onde
começava a cidade dos brancos. Hoje, vejo que já não há necessidade de haver
becos que só encobertam os "gregos" e reproduzem dibengos e baratas
doentias. - Explicou o ancião Branda, ganhando estrondosas salvas de palmas.
- Pois é. Ouviste Gaspar?
Precisamos de ruas e ruelas em que possam circular carros. Um bairro em que
cada um possa levar o seu popó até ao quintal, sem necessidade de deixa-lo
distante. Queremos um Rangel urbanizado, sem becos mas com ruas largas e sem
água estagnada. - Emendou Man-Miguel, outro rangelista de sucesso, emprestado
ao décimo andar do Kilamba.
Entre pinchos, birras, gasosas e
kisângwa (também não faltaram as sempre decorativas kapurenquanto do bairro que
iam aproveitando uns goles e uns trocados), a maralha concordou em nomear o
velho Branda, da rua Sangue-e-Fúria, para os passar a acolher uma vez por cada
mês.
- Vamos realizar os nossos
encontros mensais em casa do Papá. Não se preocupe nosso pai. Vamos
providenciar toda a logística necessária. Queremos apenas trocar ideias e ver
se o bairro avança. - Acalmou o líder da maralha.
Quando bateram em retirada já os
galos, os poucos que ainda não tinham sido roubados, se preparavam para cantar.
Nota: Texto publicado pelo Semanário Angolense a 16.05.2015
Nota: Texto publicado pelo Semanário Angolense a 16.05.2015
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