sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

A CRÍTICA LITERÁRIA E O SONHO DE UM SOBERANO*

Começo com um ponto prévio, numa correcção importante. Não sou um crítico literário, nem um escritor. Gosto de escrever crónicas e ando (a) procura de um compromisso com a literatura. A leitura é uma das minhas maiores paixões e quando o texto ou discurso literário são ricos e agradáveis custa-me interrompê-los, não importa quantas páginas tenham.

Há tempos, o Luciano Canhanga, jovem jornalista, 34 anos, deu-me a ler o esboço do seu primeiro rebento literário. Era um trabalho tão interessante que coloquei de lado o que estava a fazer numa das horas de lazer.

Ele tinha dado ao seu rascunho um título diferente do que tem hoje, mas que transmitua a ideia de uma “marcha entre chamas”, um país a arder sob o fogo das armas e de uma grave crise económica e social; a vida infernal numa aldeia; a fuga desespererada para a cidade das mil uma oportunidades e um conjunto de dramas de quem vive na agonia, sem saber como vai terminar o sofrimento. Compreendi, sem nada perguntar, que era a história dele e da sua família. A história de muitos angolanos. Em 1997, já tinha ouvido uma história idêntica de uma jovem, também jornalista, que fugiu a pé do cenário da guerra e me motivou a escrever “os jornalistas e a saúde”, para o Jornal de Angola.

Eu e o Luciano tornamo-nos amigos via internet. Ele reagiu a uma crónica que escrevi neste jornal e criou-se uma simpatia mútua. Depois, descobrimos amigos comuns dentro e fora de Angola e fui portador de encomendas para ele. O Luciano é do Kuanza-Sul, terra onde eu passei parte da infância. Discutindo via e-mail, ficamos amigos.

Mais tarde, aceitei o desafio que ele me colocou para rever e prefaciar o seu primeiro livro, publicado há uma semana com o título de “O Sonho de Kaúia”. Fiz várias observações ao texto, a mais importante das quais foi a necessidade de definoir fronteiras entre a ficção literária e um diário com referências a actores políticos do tempo que ele retrata. Disse-lhe que deveria criar personagens e dar-lhes suficiente liberdade em cada capítulo ou episódio, sem medo. “Dá mais autonomia aos teus personagens e quanto menos te intrometeres será melhor, para o leitor. Tu és o criador, eles são os protagonistas”, insistia sempre. Em Julho de 2010, o sonho de Soberano estava realizado. O lançamento ocorreu na sexta-feira, dia 17 de Dezembro, nas instalações do Cefojor, aqui em Luanda, num ambiente bastante agradável, testemunhado por jornalistas, escritores, líderes religiosos e amigos da literatura.

O Sonho de Kaúia pode não ser uma obra perfeita, mas é seguramente uma história interessante e perspicaz.

O Manuel Muanza, jornalista, professor e crítico literário fez reparos semânticos antes de dizer que a obra é “um instruimento de denúncia social e de crítica a uma prática que se tornou instituição na nossa sociedade”. Ele “corrigiu” várias vezes o autor, sugerindo que se escrevesse Kanhanga e não Canhanga; Kawya em vez de Kaúia; Kyanda e não Kianda. “São convênios”, explicou ele. Eu confesso que também não sabia.

Sobre o conteúdo do livro, disse substancialmente: “na Europa ocidental, o realismo de Balzac e Flaubert aconteceu no momento das grandes transformações económicas e culturais. (…) Nas sociedades em construção como a nossa, os problemas sociais, económicos e culturais não vão deixar de envenenar o texto literário, como é agora o caso”.

Sejam quais forem as “PaLaVras…” sobre esta primeira obra, estamos perante um livro digno de ser livro. E é um conselho aos jovens que pouco recebem dos adultos: leiam mais, como alternativa às sextas-feiras do homem e aos “clipes e outdoors” que vos induzem a beber desenfreadamente, com trágicas consequências aos fins de semana!

Depos da crítica de Manuel Muanza e de Arlindo Isabel, cujo discurso também exortou os jovens a seguir as “regras de bem escrever”, o Luciano coinfessou que tinha vontade de fugir da sala e deixou em branco a magnífica oportunidade de repetir o olhar crítico da sua obra. Foi pena!

Gostaria que ele contasse aos presentes como surgiu como surgiu e como desenvolveu a ideia deste livro. Mas, logo compreendi que sendo o primeiro “sonho”, ele imaginou-se um peixinho acabado de nascer no meio de “tubarões” e protegeu o seu investimento, autografando-o em silêncio! Mais tarde, recebi um sms dele, no meu telemóvel, explicando o que tinha sentido: “… Kota, partilho consigo as críticas e os elogios!”.

“Uma boa aposta. Este rapaz tem futuro”, termino como ele próprio terminou o diálogo entre os personagens do “seu” grande “Sonho de Kaúia” (pág. 111). Luciano, segue o teu caminho!


* Tazuary Nkeita (José Soares Caetano) in: Semanário Angolense, edic. 398, de 25 Dez. 2010, pág. 26.
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quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

O RELÓGIO DO VELHO TRINTA

O calendário apontava o mês de Janeiro dum ano já apagado da memória. No Rimbe, o que se dizia ser a aldeia não passava de pequenas ilhas distanciadas. Casas e lavras de famílias que tinham abandonado o Kuteca e Katoto em busca de terras ainda virgens e maior tranquilidade. Era, no fundo, a prosperidade e a independência que alí os levara.

Velho Trinta e os seus filhos: Neto, Nando, Raúl e Kimone; seus netos; noras e genro constituiam o maior agregado comunitário. Umas dez casas sem soba , recaindo a autoridade em Neto Trinta, o filho primogênito, e no conselho sempre pronto e sábio do ancião.

Noutro pequeno povoado estava Xica Yango, esposa e seus filhos: Jorge Kakonda, Ngunza Kabolo e a caçula Eva. Os filhos varões já estavam casados e tinham-no presenteado com uns cinco netos. A família estava ainda no começo do seu alargamento.

Xika Yango tinha sido soba no Kuteka e, embora tivesse reunciado voluntariamente, conservava ainda o título, pois assim o tratavam todos os que o conhecimam e que por ele procuravam. Até mesmo os do Kuteka, já administrados por um novo soba que fora coadjutor de Xika Yango, mantinham a mesma admiração e respeito.

António, primo de Xica e Katumbo, também prima de Nzumba Tembo, a esposa de Xica, viviam também numa outra ilha continental. Porém, a morte de prematura de António levou Katumbo, a prole de cinco menores e suas crias; três bodes e algumas galinhas a juntar-se aos primos.

No Rimbe vivia ainda o Domingos Kastruque, também ele oriundo do distante Kuteca que dista trinta e cinco quilómetros percorridos sempre a pé ou de tractor até à estrada naciona 120. Kastruque tinha finalmente se afiliado aos Trinta para cujo aglomerado se tranferiu posteriormente.

Embora ilhado, o Rimbe crescia e era tido por todos como uma aldeia dependente da regedoria de Tumba Grande. A vida comunitária, a partilha do mel e fel da vida entre os chefes das famílias e seus dependentes fazia deles uma unidade coesa até que chegou a guerra.

Velho Trinta, setenta ou mais anos às costas, ninguém sabia ao certo quando tinha nascido. Apesar da aparente robustez, mostrava-se já sem forças para subir e descer montanhas, fugindo dos guerrilheiros opositores ao governo instalado no dia da independência.

- Sei que se me encontram nada me faze, e se me matam apenas me oferecem uma viagem pro descanso. – Atirou certa vez aos netos, em jeito de brincadeira. O seu único temor era a possibilidade de ficar sem a companhia dos netos, já jovens e adolescentes, que para as hostes da UNITA valiam como ouro.

- Avô, se voce fica aqui sei que nada lhe fazem, mas quem vai acarretar água e cozinhar para si? - Questionou a pequena Katembo respondendo ao avô.

- Hum, vou só mesmo me enrascar. – Respondeu cauteloso, ciente da dificuldade que seria acarretar lenha e água e colher e confeccionar alimentos.

A fome era na verdade um inimigo que matava lentamente, por isso seguia tropego a comitiva de fugitivos que cortavam um atalho sertanejo de vinte e tal quilómetros.

Velho Trinta algodão à cabeça, metro e oitenta de altura a curva-lhe a coluna e voz ainda férrea, anda cantando suas malambas .

- Oh relógio que bates tic-tac,

Avaria sem conserto

Para de uma vez por todas

Deixar de leslizar este ponteiro

Oh relógio que estás no peito

Meu prazo está caducado …


Os netos, alguns ainda inocentes, perguntavam por que razão teria ele guardado o relógio no peito, enquanto Mariana, a esposa de Neto Trinta, procurava distrair o sogro com cenas do bom tempo, quando o velho ainda jovem o contactou para esposa do filho que andava na guerra contra os Tugas no Quitexe e Kamabatela.

- Papá lembras-te quando foste ter com os meus pais para me juntar com o Neto?

- Sim Mariana. Como é me ia esquecer de algo que me deu tantos netos e alegrias?

- Também havia guerra do Kuata-Kuata …- Lembrou a nora.

- Pois claro, minha filha. Mas se o Neto estava nas frentes de combate nós estávamos aqui a cavar a nossa mandioca e ninguém tinha que dormir nas matas. Só mesmos já no ano da revolução quando se começaram a escaramuçar é que a coisa mudou um pouco…

Mal o Velho terminou a explanação, rebentamentos de bazucas, disparadas à distância, assustavam a coluna de fugitivos. A longa fila de homens, mulheres e crianças lembrava o tempo de contratados. Todos, uns e outros, temendo apenas pela vida. Velho Trinta correu ainda vezes incontaveis, durante uns cinco anos, entre Rimbe e Katoto, sua aldeia natal, sempre implorando ao seu relógio para parar o tic-tac.

- Oh relógio que bates tic-tac,

Avaria sem conserto

Para de uma vez por todas

Deixar de leslizar este ponteiro…

Inesperadamente despediu-se numa noite em que o único barulho que se ouvia na noite escura era o farfalhar da chuva ao corpo hirto das chapas de zinco.

Mariana tinha madrugado, como sempre, à porta do sogro que ficava a uns dez metros da sua.

- Sessa ngana!

Era um exercício diário e vezeiro. Todas as manhàs, todos os anos em que Neto trinta os fez membros de uma mesma família. À saudação segui-se um silêncio nunca antes observado.

- Uaué cocolo diamié? - Gritou desesperada.

Ao choro da mulher juntaram-se outras vozes e outros choros de mulheres vindas de outras aldeias, algumas longínquas, trazidas pelo som do tantã das más novas. Havia também mulheres que aproveitavam o passamento do velho Trinta para recordar outros mortos ainda frescos na memória.

- Ai meu homem, como você me faz falta… - Lamentava Katumbo lembrando seu marido.

Velho Trinta leva saudações para meus pais e minha filha… - Chorava Eva Kambundu.

Os homens com ideias e valores traçavam planos para a feitura da campa e as exéquias fúnebres, enquanto outros descapitalizados ofereciam o seu choro e as suas preces, juntando-se ao exército feminino que se vestia de mulalas entre as pernas.

- Mas esse mano então que está a chorar assim é quem é do falecido?- Questionou Eva Kambundu.

- Hum filha, lhe deixa só. – Respondeu Katumbo interrompendo o choro - Se você está ver já um homem meteu mulala tipo é mulher, lhe controla. É porque não tem dinheiro para contribuir nas despezas do óbito e se mistura ’mbora connosco.

Mal terminou a explicação, Katumbo desatou outra vez aos gritos, evocando a memória do seu António partido recentemente para o nunca mais.

Outras mulheres faziam-se ao caminho do riacho em busca de água, levando sangas e latas de vinte litros à cabeça. Os mizangala dirigiam-se ao mato em busca de lenhas enquanto os dikotas procuravam pelo Sô Miguel da cerâmica para os tijolos da campa.

- Sabalo! - Chamou Neto ao filho.

- Papá!

- Não te esqueças de avisar o papá Nagana Ngunji, amigo do teu avô, para lavar o defunto e manterem a última conversa a sós.

- Mas papá, morto fala?

- Vai, seu burro. A tradição nunca se muda. Anda!

Velho Trinta e Ngana Ngunji eram do kissoco e companheiros em muitas caminhadas. A ele, Ngana Ngunji, cabia, após um monólogo com o finado, desvendar à família os segredos do amigo ainda ocultos.

Ngana Ngunji, também na casa dos setenta ou oitenta, chegou à noite com a mulher e uns parentes, trazidos numa “avó chegou” . Depois do habitual mahezo entre os que chegam e os anfitriões, o velho ficou alguns intantes a sós com cadáver a quem relembrou as alianças firmadas, os caminhos trilhados, a necessidade que tem agora de procurar por um outro confidente e, sobretudo, a pertinência de abrir aos filhos e netos o seu livro de vida, guardado a sete chaves até aquele dia.

- Mano, o que nos une só tu e eu sabemos. O que fizemos também só tu e eu sabemos. O que nos separa ainda é desconhecido, mas hoje, o mano me perdoa, vou violar os segredos para que não morram comigo. - Monologou.

No dia seguinte, seria também ele a aparar a barba do amigo, dar-lhe banho e vesti-lo. Era o compromisso a que tinha chegado com o amigo ainda vivo. Depois viriam os netos varões para depositar o cadáver na urna.


Homens à frente, revezando-se no transporte da tipoia que carregava o caixão acastanhado com os restos do velho Trinta; mulheres choronas no meio da comitiva e crianças curiosas a trás, seguiam todos em coluna. Um por um, lembrando filas indianas. O cortejo seguia ao lngo de dois quilómetros acompanhado pelo Kimbanda contratado para descobrir e anunciar nos dois dias seguintes as razões da morte.

- Velho Trinta, vingue-se dos seus inimigos. Não se esqueça de contactar os nossos antepassados para que estes me revelem se é causa de Deus ou dum nganga qualquer.

Entre passo e pausas no monólogo o kimbanda volta a suplicar:

- Mais velho, ajude-me a “escarlecer” quem foi que lhe “cumeu”. Se é alguém com dívida por receber ou se é só mesmo inveja do mundo…

A frase do adivinho foi usada para debate dos miúdos, à rectaguarda da fila, que já frequentavam a escola e com algum raciocínio de lógica científica.

- Mas oh João, ouviste bem o kimbanda?

- Sim ouvi e estou também a buscar o meu entendimento. “Comué” que o avô está no caixão e esse velho bacoco está ai a entrujar que foi comido por alguém?- Questionou-se.

- Ya, eu também estou buamado e vou mesmo recorrer ao professor para nos tirar essa dúvida. – Respondeu o Júlio, um dos primos de João Trinta.

Quem não perdeu tempo foi mesmo Phande que, aproveitando-se do facto de ser primo do professor Jorge Kakonda, marcou uns passos à frente e o interceptou no momento em que a urna descia à cova.


- Camá pressor, mi disculpa só ainda!


- Diz lá, mas fala baixinho.


- Pessoa si come?


- Como assim?


- Sim mano - Phande esqueceu-se, por instantes, da regra imposta pelo professor de que mano era apenas na informalidade da casa - ouvi o kimbanda a falar que o avô Trinta foi “cumido”num feiticeiro…


- Oh pioneiro, tens de entender que esses velhos traduzem tudo ao pé da letra.


O rapaz ficou mais confuso ainda com a expressào inusitada do professor Kakonda.

- Prossor letra tem pé? Não é só pontos nos is e traços nos tés?

- Phande, os mais velhos traduzem para o português o que se comunica em Kimbundu. Como é que se tem dito quando alguém morre ou quando alguém gasta dinheiro alheio?

- É “cumeu”, camá pressor!

Feito o funeral, as pessoas desoladas voltaram cada uma no seu caminho. Velho Nagana Ngunji, apesar da idade que lhe proporcionava experiência e coragem em situações análogas, parecia sem forças e pronto a despedir-se também.

- Avô tens de fazer coragem. Teu amigo foi p’ro decanso. – Aconselhou Joaquim Neto, o neto mais velho do Velho Trinta.

- Sim meu neto. Avisaainda os pais, os tios e os teus irmãos. Todos os netos que já se amigaram para abrirmos o segredo do vosso avô falecido. - Ordenou o ancião.

Em poucos minutos o jango tornou-se pequeno. Todos contados chegavam aos cem. O Velho Trinta tinha tido boa safra e o número de netos e bisnetos crescia todos os meses. E começou:

- Filhos, o falecido partiu. Choremo-lo, mas festejemos também. Ele cuidou-se bem e fez essa riqueza – apontava o dedo indicador para a assistência - fez também coisas que só hoje vão saber, o que é próprio de um homem com a desenvoltura do mano Trinta.

A assistência fez a vénia em jeito de aprovação do discurso e o velho continuou.

- Chamem o Domingos para estar também aqui.

- Avô, qual Domingos mais que falta se já estamos todos os filhos e netos aqui? – Perguntou Sabalo.

- Aquele do Kuteca que vocês chamam de Kastruque…

Gerou-se um pequeno pânico e interrogações. Procurava-se entender por que razão teria Kastruque acesso àquela reunião restrita, não sendo ele parente directo do finado. Domingos, o homem dos truques, era apenas um amigo da família.

- Chamem só. Eu sei porquê. - Ordenou algo impaciente.


Esse - apontava para o recém-entrado - também é vosso irmão. Neto, você que é o mais velho dá-lhe ainda um abraço…

Silêncio total. Ali não era para mugir nem tugir. Uns ficaram até boquiabertos perante a revelação. Nunca lhes passara pela cabeça o que acabavam de ouvir.

- O meu amigo tem ainda uma filha no Ebo onde esteve como contratado no tempo do caputo . Neto, manda para lá um emissário, de preferência um dos netos do mano Trinta, que vai ao encontro da tia. A foto dela está aqui - exibiu-a à multidão -, os dados todos estão escritos atrá. O mais velho deixou também quinze bois no Roussel e uma dívida de dois cabritos com o Xika Yango que está alí fora. Quando sairem podem contactá-lo para saber se ele quer a dívida dele ou se não… - Orientou.

Com a assistêncioa sempre atenta, em silêncio, fazendo apenas o gesto de aprovação com a cabeça ligeiramente bailonçada para frente e para trás, o ancião prosseguiu:

- Têm também uma conta a receber na fazenda Sector Sete. Os docuemntos estão aqui. - Entregou-os ao filho mais velho, Neto Trinta.

Feito o relatório, velho Ngana Ngunji soltou as lágrimas, as últimas que ainda guardava, e evocou aos soluços a memória do amigo a quem esteve ligado por mais de meia centena de anos.

- Mano, vai com Deus, mas revela-nos nos sonhos. Se foi mesmo a hora que chegou, descansa em paz, mas se foi um nganga que te comeu atormenta-o a ele e sua casa. Não lhe poupa nem o curral, nem a capoeira.

Filhos e netos do Velho Trinta que a pouco acompanhavam Ngana Ngunji no choro abanavam de novo as cabeças em jeito de aprovação do discurso.

- Avô aparece no meu sonho e revela-me se “kalunga ka ngana ó kalunga ka kifumbe”. - Recomendou Katembo, interrompendo o silêncio.

A noite descrevia a sua última curva e os galos já anunciavam o nascer do outro dia. Lá fora aquecia a dança à volta da ngoma e da kissaca , tocadas por gente experiente convidada de outras aldeias, e fazia-se festa. Festa rija que nunca mais houvera naqueles tempos de guerra. Velho Nganga Ngunji foi dormir e no dia seguinte não mais acordou. Seguiu o caminho do amigo.