O calendário apontava o mês de Janeiro dum ano já apagado da memória. No Rimbe, o que se dizia ser a aldeia não passava de pequenas ilhas distanciadas. Casas e lavras de famílias que tinham abandonado o Kuteca e Katoto em busca de terras ainda virgens e maior tranquilidade. Era, no fundo, a prosperidade e a independência que alí os levara.
Velho Trinta e os seus filhos: Neto, Nando, Raúl e Kimone; seus netos; noras e genro constituiam o maior agregado comunitário. Umas dez casas sem soba , recaindo a autoridade em Neto Trinta, o filho primogênito, e no conselho sempre pronto e sábio do ancião.
Noutro pequeno povoado estava Xica Yango, esposa e seus filhos: Jorge Kakonda, Ngunza Kabolo e a caçula Eva. Os filhos varões já estavam casados e tinham-no presenteado com uns cinco netos. A família estava ainda no começo do seu alargamento.
Xika Yango tinha sido soba no Kuteka e, embora tivesse reunciado voluntariamente, conservava ainda o título, pois assim o tratavam todos os que o conhecimam e que por ele procuravam. Até mesmo os do Kuteka, já administrados por um novo soba que fora coadjutor de Xika Yango, mantinham a mesma admiração e respeito.
António, primo de Xica e Katumbo, também prima de Nzumba Tembo, a esposa de Xica, viviam também numa outra ilha continental. Porém, a morte de prematura de António levou Katumbo, a prole de cinco menores e suas crias; três bodes e algumas galinhas a juntar-se aos primos.
No Rimbe vivia ainda o Domingos Kastruque, também ele oriundo do distante Kuteca que dista trinta e cinco quilómetros percorridos sempre a pé ou de tractor até à estrada naciona 120. Kastruque tinha finalmente se afiliado aos Trinta para cujo aglomerado se tranferiu posteriormente.
Embora ilhado, o Rimbe crescia e era tido por todos como uma aldeia dependente da regedoria de Tumba Grande. A vida comunitária, a partilha do mel e fel da vida entre os chefes das famílias e seus dependentes fazia deles uma unidade coesa até que chegou a guerra.
Velho Trinta, setenta ou mais anos às costas, ninguém sabia ao certo quando tinha nascido. Apesar da aparente robustez, mostrava-se já sem forças para subir e descer montanhas, fugindo dos guerrilheiros opositores ao governo instalado no dia da independência.
- Sei que se me encontram nada me faze, e se me matam apenas me oferecem uma viagem pro descanso. – Atirou certa vez aos netos, em jeito de brincadeira. O seu único temor era a possibilidade de ficar sem a companhia dos netos, já jovens e adolescentes, que para as hostes da UNITA valiam como ouro.
- Avô, se voce fica aqui sei que nada lhe fazem, mas quem vai acarretar água e cozinhar para si? - Questionou a pequena Katembo respondendo ao avô.
- Hum, vou só mesmo me enrascar. – Respondeu cauteloso, ciente da dificuldade que seria acarretar lenha e água e colher e confeccionar alimentos.
A fome era na verdade um inimigo que matava lentamente, por isso seguia tropego a comitiva de fugitivos que cortavam um atalho sertanejo de vinte e tal quilómetros.
Velho Trinta algodão à cabeça, metro e oitenta de altura a curva-lhe a coluna e voz ainda férrea, anda cantando suas malambas .
- Oh relógio que bates tic-tac,
Avaria sem conserto
Para de uma vez por todas
Deixar de leslizar este ponteiro
Oh relógio que estás no peito
Meu prazo está caducado …
…
Os netos, alguns ainda inocentes, perguntavam por que razão teria ele guardado o relógio no peito, enquanto Mariana, a esposa de Neto Trinta, procurava distrair o sogro com cenas do bom tempo, quando o velho ainda jovem o contactou para esposa do filho que andava na guerra contra os Tugas no Quitexe e Kamabatela.
- Papá lembras-te quando foste ter com os meus pais para me juntar com o Neto?
- Sim Mariana. Como é me ia esquecer de algo que me deu tantos netos e alegrias?
- Também havia guerra do Kuata-Kuata …- Lembrou a nora.
- Pois claro, minha filha. Mas se o Neto estava nas frentes de combate nós estávamos aqui a cavar a nossa mandioca e ninguém tinha que dormir nas matas. Só mesmos já no ano da revolução quando se começaram a escaramuçar é que a coisa mudou um pouco…
Mal o Velho terminou a explanação, rebentamentos de bazucas, disparadas à distância, assustavam a coluna de fugitivos. A longa fila de homens, mulheres e crianças lembrava o tempo de contratados. Todos, uns e outros, temendo apenas pela vida. Velho Trinta correu ainda vezes incontaveis, durante uns cinco anos, entre Rimbe e Katoto, sua aldeia natal, sempre implorando ao seu relógio para parar o tic-tac.
- Oh relógio que bates tic-tac,
Avaria sem conserto
Para de uma vez por todas
Deixar de leslizar este ponteiro…
Inesperadamente despediu-se numa noite em que o único barulho que se ouvia na noite escura era o farfalhar da chuva ao corpo hirto das chapas de zinco.
Mariana tinha madrugado, como sempre, à porta do sogro que ficava a uns dez metros da sua.
- Sessa ngana!
Era um exercício diário e vezeiro. Todas as manhàs, todos os anos em que Neto trinta os fez membros de uma mesma família. À saudação segui-se um silêncio nunca antes observado.
- Uaué cocolo diamié? - Gritou desesperada.
Ao choro da mulher juntaram-se outras vozes e outros choros de mulheres vindas de outras aldeias, algumas longínquas, trazidas pelo som do tantã das más novas. Havia também mulheres que aproveitavam o passamento do velho Trinta para recordar outros mortos ainda frescos na memória.
- Ai meu homem, como você me faz falta… - Lamentava Katumbo lembrando seu marido.
Velho Trinta leva saudações para meus pais e minha filha… - Chorava Eva Kambundu.
Os homens com ideias e valores traçavam planos para a feitura da campa e as exéquias fúnebres, enquanto outros descapitalizados ofereciam o seu choro e as suas preces, juntando-se ao exército feminino que se vestia de mulalas entre as pernas.
- Mas esse mano então que está a chorar assim é quem é do falecido?- Questionou Eva Kambundu.
- Hum filha, lhe deixa só. – Respondeu Katumbo interrompendo o choro - Se você está ver já um homem meteu mulala tipo é mulher, lhe controla. É porque não tem dinheiro para contribuir nas despezas do óbito e se mistura ’mbora connosco.
Mal terminou a explicação, Katumbo desatou outra vez aos gritos, evocando a memória do seu António partido recentemente para o nunca mais.
Outras mulheres faziam-se ao caminho do riacho em busca de água, levando sangas e latas de vinte litros à cabeça. Os mizangala dirigiam-se ao mato em busca de lenhas enquanto os dikotas procuravam pelo Sô Miguel da cerâmica para os tijolos da campa.
- Sabalo! - Chamou Neto ao filho.
- Papá!
- Não te esqueças de avisar o papá Nagana Ngunji, amigo do teu avô, para lavar o defunto e manterem a última conversa a sós.
- Mas papá, morto fala?
- Vai, seu burro. A tradição nunca se muda. Anda!
Velho Trinta e Ngana Ngunji eram do kissoco e companheiros em muitas caminhadas. A ele, Ngana Ngunji, cabia, após um monólogo com o finado, desvendar à família os segredos do amigo ainda ocultos.
Ngana Ngunji, também na casa dos setenta ou oitenta, chegou à noite com a mulher e uns parentes, trazidos numa “avó chegou” . Depois do habitual mahezo entre os que chegam e os anfitriões, o velho ficou alguns intantes a sós com cadáver a quem relembrou as alianças firmadas, os caminhos trilhados, a necessidade que tem agora de procurar por um outro confidente e, sobretudo, a pertinência de abrir aos filhos e netos o seu livro de vida, guardado a sete chaves até aquele dia.
- Mano, o que nos une só tu e eu sabemos. O que fizemos também só tu e eu sabemos. O que nos separa ainda é desconhecido, mas hoje, o mano me perdoa, vou violar os segredos para que não morram comigo. - Monologou.
No dia seguinte, seria também ele a aparar a barba do amigo, dar-lhe banho e vesti-lo. Era o compromisso a que tinha chegado com o amigo ainda vivo. Depois viriam os netos varões para depositar o cadáver na urna.
…
Homens à frente, revezando-se no transporte da tipoia que carregava o caixão acastanhado com os restos do velho Trinta; mulheres choronas no meio da comitiva e crianças curiosas a trás, seguiam todos em coluna. Um por um, lembrando filas indianas. O cortejo seguia ao lngo de dois quilómetros acompanhado pelo Kimbanda contratado para descobrir e anunciar nos dois dias seguintes as razões da morte.
- Velho Trinta, vingue-se dos seus inimigos. Não se esqueça de contactar os nossos antepassados para que estes me revelem se é causa de Deus ou dum nganga qualquer.
Entre passo e pausas no monólogo o kimbanda volta a suplicar:
- Mais velho, ajude-me a “escarlecer” quem foi que lhe “cumeu”. Se é alguém com dívida por receber ou se é só mesmo inveja do mundo…
A frase do adivinho foi usada para debate dos miúdos, à rectaguarda da fila, que já frequentavam a escola e com algum raciocínio de lógica científica.
- Mas oh João, ouviste bem o kimbanda?
- Sim ouvi e estou também a buscar o meu entendimento. “Comué” que o avô está no caixão e esse velho bacoco está ai a entrujar que foi comido por alguém?- Questionou-se.
- Ya, eu também estou buamado e vou mesmo recorrer ao professor para nos tirar essa dúvida. – Respondeu o Júlio, um dos primos de João Trinta.
Quem não perdeu tempo foi mesmo Phande que, aproveitando-se do facto de ser primo do professor Jorge Kakonda, marcou uns passos à frente e o interceptou no momento em que a urna descia à cova.
- Camá pressor, mi disculpa só ainda!
- Diz lá, mas fala baixinho.
- Pessoa si come?
- Como assim?
- Sim mano - Phande esqueceu-se, por instantes, da regra imposta pelo professor de que mano era apenas na informalidade da casa - ouvi o kimbanda a falar que o avô Trinta foi “cumido”num feiticeiro…
- Oh pioneiro, tens de entender que esses velhos traduzem tudo ao pé da letra.
O rapaz ficou mais confuso ainda com a expressào inusitada do professor Kakonda.
- Prossor letra tem pé? Não é só pontos nos is e traços nos tés?
- Phande, os mais velhos traduzem para o português o que se comunica em Kimbundu. Como é que se tem dito quando alguém morre ou quando alguém gasta dinheiro alheio?
- É “cumeu”, camá pressor!
…
Feito o funeral, as pessoas desoladas voltaram cada uma no seu caminho. Velho Nagana Ngunji, apesar da idade que lhe proporcionava experiência e coragem em situações análogas, parecia sem forças e pronto a despedir-se também.
- Avô tens de fazer coragem. Teu amigo foi p’ro decanso. – Aconselhou Joaquim Neto, o neto mais velho do Velho Trinta.
- Sim meu neto. Avisaainda os pais, os tios e os teus irmãos. Todos os netos que já se amigaram para abrirmos o segredo do vosso avô falecido. - Ordenou o ancião.
Em poucos minutos o jango tornou-se pequeno. Todos contados chegavam aos cem. O Velho Trinta tinha tido boa safra e o número de netos e bisnetos crescia todos os meses. E começou:
- Filhos, o falecido partiu. Choremo-lo, mas festejemos também. Ele cuidou-se bem e fez essa riqueza – apontava o dedo indicador para a assistência - fez também coisas que só hoje vão saber, o que é próprio de um homem com a desenvoltura do mano Trinta.
A assistência fez a vénia em jeito de aprovação do discurso e o velho continuou.
- Chamem o Domingos para estar também aqui.
- Avô, qual Domingos mais que falta se já estamos todos os filhos e netos aqui? – Perguntou Sabalo.
- Aquele do Kuteca que vocês chamam de Kastruque…
Gerou-se um pequeno pânico e interrogações. Procurava-se entender por que razão teria Kastruque acesso àquela reunião restrita, não sendo ele parente directo do finado. Domingos, o homem dos truques, era apenas um amigo da família.
- Chamem só. Eu sei porquê. - Ordenou algo impaciente.
…
Esse - apontava para o recém-entrado - também é vosso irmão. Neto, você que é o mais velho dá-lhe ainda um abraço…
Silêncio total. Ali não era para mugir nem tugir. Uns ficaram até boquiabertos perante a revelação. Nunca lhes passara pela cabeça o que acabavam de ouvir.
- O meu amigo tem ainda uma filha no Ebo onde esteve como contratado no tempo do caputo . Neto, manda para lá um emissário, de preferência um dos netos do mano Trinta, que vai ao encontro da tia. A foto dela está aqui - exibiu-a à multidão -, os dados todos estão escritos atrá. O mais velho deixou também quinze bois no Roussel e uma dívida de dois cabritos com o Xika Yango que está alí fora. Quando sairem podem contactá-lo para saber se ele quer a dívida dele ou se não… - Orientou.
Com a assistêncioa sempre atenta, em silêncio, fazendo apenas o gesto de aprovação com a cabeça ligeiramente bailonçada para frente e para trás, o ancião prosseguiu:
- Têm também uma conta a receber na fazenda Sector Sete. Os docuemntos estão aqui. - Entregou-os ao filho mais velho, Neto Trinta.
Feito o relatório, velho Ngana Ngunji soltou as lágrimas, as últimas que ainda guardava, e evocou aos soluços a memória do amigo a quem esteve ligado por mais de meia centena de anos.
- Mano, vai com Deus, mas revela-nos nos sonhos. Se foi mesmo a hora que chegou, descansa em paz, mas se foi um nganga que te comeu atormenta-o a ele e sua casa. Não lhe poupa nem o curral, nem a capoeira.
Filhos e netos do Velho Trinta que a pouco acompanhavam Ngana Ngunji no choro abanavam de novo as cabeças em jeito de aprovação do discurso.
- Avô aparece no meu sonho e revela-me se “kalunga ka ngana ó kalunga ka kifumbe”. - Recomendou Katembo, interrompendo o silêncio.
A noite descrevia a sua última curva e os galos já anunciavam o nascer do outro dia. Lá fora aquecia a dança à volta da ngoma e da kissaca , tocadas por gente experiente convidada de outras aldeias, e fazia-se festa. Festa rija que nunca mais houvera naqueles tempos de guerra. Velho Nganga Ngunji foi dormir e no dia seguinte não mais acordou. Seguiu o caminho do amigo.