segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

NO TEMPO DE CIPAIOS E CAPATAZES

No edifício rosado da vila crescente de Lumbala Ngimbu, Xavier Martins e Ernesto Del Ponte dividiam o corredor longo e estreito. Duas salas com portas paralelas se enfiavam ao fundo, ganhando janelas pelas laterais e pelos fundos, um arrojo da arquitectura daquele tempo oitocentista. Uma das salas era do administrador do posto e a outra era a do secretário.
Do outro lado estavam os cobradores de imposto indígena, os cipaios e seus cacetes, os serviçais e os queixosos e queixados. Mais longe, mas no mesmo quintal engalanado de flores que desbrochavam em todas as épocas, estavam as casas para as "sentinas": duas para os brancos da administração e um “covil” que servia a "negralhada" toda, onde homens e mulheres acossados pelas descargas fisiológicas se revezavam minuto sim, minuto sempre. Kapita era empregado auxiliar e cuidava de levar e trazer o que os brancos pedissem.
Certo dia, daqueles em que o céu parecia ter descido à terra, ameaçando queimar tudo e todos, Xavier na sua sala suava. Del Ponte também de suor molhava a malha da camisa estampada que quase lhe mordia o corpo torneado. Os dois se pareciam a nascentes de rios que se alargavam a cada chuva, a cada gota. Já tinham trocado os lenços pelas toalhas que mesmo assim não bastavam para se enxugarem. Água nos moringues já não havia.
Kapita, atrás dum monandege traquino, na vista do administrador se colocou.
- Ei, ó preto, pega uma bacia e traz água. Tens um minuto e meio. - Ordenou Xavier Martins, o administrador.
Dois passos à frente, outro grito e Kapita ainda sem descodificar o que lhe foi solicitado.
- Kapita! Outra bacia para mim, uma toalha límpida e um minuto e meio para a empreitada. - A voz de Del Ponte, um luso de descendência hispânica era inconfundível. O homem era dos principais queixinhas de Xavier Martins e culpado pelo desterro de muitos serviçais à roça Camokomoko, autêntica colónia de morte nos tempos da administração estrangeira no Leste de Angola.
- Coitado. Mbacia chamado por um e por outro, 'deve ser muito sério o que esse irmão aprontou'. - Kapita assim pensou e meteu-se mangueiras e laranjeiras abaixo, gritando e procurando por Mbacia.
- Mano Mbacia, ó Mbacia, se estás a te esconder é melhor se apresentar, porque o branco está a ficar vermelho. Mwata mutolo nyi secretario já informaram no sipaio e disseram que se o Minuto e Meio não vier contigo, ais mar água m sangue.
Kapita gritou até fazer-se ouvir por todos os que se tinham dirigido ao posto administrativo, sem que ninguém o pudesse ajudar. Nem Mbacia, nem Minuto e Meio se apresentaram.
Desolado, pensando nas palmatoadas que levaria por conta do fugitivo Mbacia que não pôde encontrar, dirigiu-se aos soluços ao gabinete do secretário Del Ponte.
- Sô secretario, Mbacia nyi Minuto e Meio ma lunga o ma pwo? (Bacia e o minuto e meio são homens ou mulheres?) 'Num li vistei casa tudo'. - Explicou numa mistura entre ucokwe e português.
Del Ponte, furioso, fez-se como flexa ao gabinete do administrador, informando que Kapita se tinha gozado deles e se recusado a dar-lhes água.
Xavier Martins, um flexa que já tinha sido capturado nas guerras de conquista do Leste, pegou, com as próprias mãos em Kapita e o acorrentou pelo pescoço, juntamente com outros dois empregados que se faziam passear pelo quintal. Foram mandados à roça Camokomoko desbastar uma montanha durante as manhãs e cortar lenhas durante as tardes.
Lá ficaram, os três, cinco anos, sempre labutando acorrentados ao pescoço. Até às "sentinas" sempre juntos: Kapita, Katonde e Sandumba...
Num Novembro de mangas fartas, sede na hora doze acompanhava a fome da fuba levada pela chuva. Na frondosa mangueira, habilidosamente, decidiram subir e desfrutar-se de polpa que cumpriria as duas funções: matar sede e fome num só trago.
Mangueira acima se fizeram. Lá foram os trigémeos. Uma formiga brava, entretanto, sangue humano queria sugar e Katonde, o do meio, não foi poupado.
- Wawé, ndifa! (Ai, morro!) - Exclamou em umbundu.
Pretendendo desfazer-se do incómodo quebrou o galho. Outro abaixo acolheu a corrente. Katonde e Sandumba num lado e Kapita noutro balouçando.
- A suku a tatê, tukutise ño (Deus pai. ajude-nos). - Gritava Kapita.
- Capatajééé, Tukwase! (Capataz, ajude-nos!) - Replicavam apelos, em ucokwe, Sandumba e Katonde.
Mukwa Kuxaha, o cipaio, e Mukwahenda, o capataz, fizeram-se meteram-se a caminho. Um com a espingarda e o cacetete e o outro com o chicote.
- Toma a chave, liberta um e depois o da outra ponta. O do meio desce com a corrente. - Ordenou o cipaio.
O capataz trepou, mas o coração pesou-lhe a alma. Na sombra, o cipaio arma na mão, pronto a atirar.
- Sô cipaio, “quarente” está complicado desamarrar”. em só me ajudar. - Iscou o capataz.
- Desce de lá seu sebo e se eu conseguir resgata-los, coloco-te na condição destes desgraçados. – Ameaçou o cipaio antes de concluir: - Dou-te a espingarda e atira neles, antes de eu cumprir em ti minha promessa. Desce de lá, pá!
Mukwahenda também temendo pela sorte. Livrou-se da árvore. Fez-se à sombra, caçadeira na mão. O cipaio descalçou as botas, arregaçou as mangas e ajeitou os calções de caqui. Embravecido agarrou a árvore como quem lhe pega pela garganta. Confirmou as chaves dos cadeados no bolso. Subiu ao colmo. Sedento de sangue soltou valente bofetada a Kapita que apenas suspirou antes de levar o rio de saliva ao rosto do assassino.
- Ai é? É la em baixo que vamos ajustar as contas.- Verberou alto.
Mukwa Kuxaha, soltou Katonde e voltou ao lado de Kapita que sangrava na boca. Quando o cipaio se preparava para descer, Mukuahenda, o capataz, deu-lhe a provar do veneno.
- Tuááá! - A bala certeira de caçadeira abraçou-o de morte. Fez-se silêncio e depois o eco além savana. O cheiro de pólvora e as aves predadoras fizeram-se anunciar. Era sangue e pedaços espalhados pelo matagal.  
Kapita e o capataz meteram-se mata adentro. Catonde e Sandumba seguiram a caminho do caudaloso e pantanoso Lunge-Bunge, não se sabendo qual foi a sua sorte. Outrossim, ficou registado que o corajoso capataz e os seus troféus entregaram-se ao Movimento.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

A ZUNGA E A BERRIDA DOS KABOMBAS


FI-DA-CAXA! é para mim uma interjeição e não "palavrão". É nessa acepção que  espero entendam a utilização do étimo nessa crónica.  

Fi-da-caxa! Estorvaram-me a prosa com o kamba de ofício. Nosso encontro foi inesperado.
Eu o imaginava em Katumbela e ele contava-me em Sawlimbu. Ali mesmo no chão do aeroporto, rua primeira de quem espreita o Kasekel
[1], eu saído do cheiro e clima doutro mundo a apanhar balanço para nova vida na Ngwimbi[2], ele no intervalo duma acção de kudilonga[3], cruzamos, cara-a-cara. Se um fosse kilapeiro[4] do outro não teria nem buraco para se esconder.

-Epá! Confrade, não te imaginava aqui e plenamente hoje. Vieste em bumbas[5] ou em turismo sobre rodas? - Metralhei-o, logo logo, com perguntas.
- Yá. Vim numa formação. É preciso nos aperfeiçoarmos. Estou já há umas semanitas. - Defendeu-se.
- Yá. Tenho lido o teu diário, mas pensava que fossem escritos buscados dum baú recente.
- Pelos vistos estás a chegar... tens novidades literárias?
Mal começamos a falar sobre um dos aspectos que nos tornam umbilicais, a escrita e as publicações para Novembro, quatro carros da patrulha conjunta, entre fiscais e policias, pararam repentinamente colados a nós, com os "comandos" a pularem por cima dos zungueiros
[6] de saldo e mawanas[7] de sol. Parecia kitota[8] nos tempos do mano Barbudo ou rusga do luz-e-tano Poeira quando encheu as cadeias pidescas de revoltosos tunda mindele[9].
O resto da prosa, depois de minutos de separação, porque cada um de nós (mais ele do que eu que ando kasimbado
[10] nestas guerras de fiscais contra vendedeiras) fugiu para sitio diferente e distante para escapar daquele "assalto", foi apenas um chau apressado com o coração em alta rotação.
- Fidacaxa dos fiscais! Com as zungueiras até parece que fizeram curso de pular, puxar, apanhar coisas esquecidas ou caídas na fuga e guarda-las rápido e de caxexe
[11] no carro. - Atirou o puto Sofrimento Moderno, também conhecido no aeroporto por SM, que obteve o contributo de um colega de desgraça:


- Yá. Tipo nada. Mwadyé
[12] distraído pensa que não houve nada. Tipo guerra relâmpago do Adolfo da Alemanha quando queria reino mundial de mil anos. Mas "lhe" saiu pela culatra.
 - A quem é que entregam as coisas kasumbuladas na rua? - Perguntou ainda uma mana, Belita nome dela, enquanto limpava a nova ferida do encontrão que teve com uma arca antiga de vender bebidas.

Resposta, ninguém só lhe deu e vai ficar toda a vida com a raiva dela sempre que olhar para a cicatriz.

Os magalas a exibir banga[13], pareciam que treinaram comandos no Cabo Ledo para irem metralhar os carcamanos[14] reaganistas-malanistas e seus  apaniguados mwangolês[15] no Kwitu Kwanavale de 1987.

- Fidacaixa! Força deles é só com os zungueiros de cuecas, saldo, magoga[16], fio dental de mulher que quer já já e mawanas de sol. No tempo em que barbudo nos intimidava eram capazes até de andar com a cauda entre a muxaxala[17]. Cambada de gregos! - Raiva de Miguelito era grande que nem mesmo o desabafo carregado de alguma malícia atenuou a força da pedra que aquela acção lhe calcou no coração.

 
Quem também lhes xingou, com todos os verbos, tempos e modos, foi Mariquinha que viu entornada a sua bancada de magoga e "bebe-me-deixa"
[18].
- Com grego igual não torram farinha. -Atirou. - Por que não vão ainda se medir capacidade com os gregos do Sambila, do México, do Sete e Meio, do Ngwanhã, dos Ossos, do Saber Andar, da Fubu e doutras bandas onde a polícia é quem bate continência aos bandjus? Gregos de meia tigela, mazé pá! Quando o Barbudo nos ameaçou empurrar o comboio com os beiços andaram aonde? Me totolei
[19] só no pé!
E eu, repleto de vivências, mochila nas costas, pé no ngwimbu
[20] para soltar ao vento o que meus olhos viram e meus ouvidos registaram. Saí voado!




[1] Bairro de Luanda; areal (grafia kimbundu).
[2] Calão de Luanda; alusão à capital de Angola.
[3] Aprendizagem; ensino; curso (kimbundu).
[4]Devedor; calão de Angola.
[5] Trabalho (calão).
[6] Vendedores ambulantes; do kimbundu zunga=andar sem destino.
[7] Óculos de sol (calão).
[8] Guerra.
[9] Saiam os brancos; alusão à luta pela independência (kimbundu).
[10] Calejado (calão); alusão a quem tem muitos kasimbus (anos) de ofício.
[11] De soslaio.
[12] Individuo (calão).
[13] Estilo; exibicionismo.
[14] Assim eram designados os invasores sul-africanos no tempo da guerra em Angola.
[15] Angolanos (calão).
[16] Sandes.
[17] Entre as nádegas.
[18]Refrigerante em PET de meio litro.
[19] Tropecei; bati (kimbundu).
[20] Nuca (calão).

sábado, 1 de novembro de 2014

CONVERSAS CENSITÁRIAS

Era sábado de futebol. O país inteiro estava de olhos na TV e ouvidos no rádio que de meia em meia hora vomitava algumas verdades e muitas mentiras. Ora se dizia que a equipa lilás seria campeão, se vencesse e outra empatasse. Ora se dizia que os presidentes estavam em campanha “ganhística” extra-campo, a oferecerem prémios de jogo chorudos aos adversários do adversário à conquista da taça.

E o disse-que-disse passava de boca em boca a velocidade estonteante. Ninguém se podia alcandorar como detentor de verdade sobre o jogo de bastidores e de influências que se apregoavam na média.

No bairro da Lata, as ruas estavam movimentadas. A equipa do bairro tinha subido de divisão e teria no seu primeiro embate o vencedor da taça do ano precedente. Todos queriam saber quem será o campeão que rebaptizaria a equipa do bairro da Lata no campeonato maior do Estado.

Na rua das gajajeiras havia mais gente do que estrada. Até mesmo as frondosas gajajeiras pareciam desaparecer, ante aquele mar de gente, a subir e a descer para lugar incerto. O estádio das gajajas estava ainda de portas encerradas. Onde e meia, sol ardente, bairro a dentro. As kilumbas aproveitavam camuflar a feíce, enquanto os homens endireitavam as aparências. A “barbaria” do Chiquito, à berma da rua das gajajeiras, tornou-se lugar de encontros e reencontros. Os homens à direita e as mulheres perfiladas à esquerda. Conversas díspares poluíam o recinto de 32 metros quadrados. Do lado masculino era o futebol quem comandava.

- Epá, qual dos adversários preferes para a nossa benquista equipa da Lata?

- Para mim, qualquer. Só temos campeões na fila da frente. – Lené antecipou-se à pergunta de Kapenda que era novo naquela pequena urbe e que procurava por afinidades.

- Qualquer como assim?- Voltou a pôr conversa, na expectativa de mais argumentos e contra-argumentos.

- Sim, qualquer. Veja bem. Nós seremos neófitos. Na frente do campeonato deste ano estão um bi-campeão, um campeão, e depois uma equipa que nunca foi campeã, mas que já tem tradição e com bom plantel. Depois vêm a segunda equipa mais titulada do campeonato e em quinto o papa títulos. Qualquer um deles será osso duro e não pêra fácil.

- Boa argumentação! - Exclamou o barbeiro que acompanhava atento a conversa.

- E vais ao campo ou só te ficas pela rádio e TV? - Voltou a questionar Kapenda.

- Sou o coordenador do fã club da equipa da Lata. Não falto a nenhuma partida.- Respondeu Nelé.

Enquanto os homens festejam o futebol, as mulheres praguejavam os resultados do censo realizado pelo Estado que tinham colocado a descoberto um segredo que puderam manter incólume por muito tempo.

- Mana Joia, sabes o que o censo descobriu?

- Não, Lena. Descobriu o quê?

- Poças! Nem te digo, Mana Joia. A dupla e tripla agregação estão em risco.

- Como assim?

- Não viste os resultados do censo? – Ripostou Mariquinha.

- Ó Mariquinha! Qual censo qual quê? Mas então o tal censo censou o quê? Me fala meu Deuju!

- Sim, Mana Joia. - Mariquinha, mais serena, olhou para as companheiras desinformadas e abeirou-se da pasta onde tinha os relatórios preliminares sobre o comportamento quantitativo e qualitativo da população. – Não somos assim tantas que cheguem três a quatro para cada uma.

- Ai é? Como assim? Então o censo disse o quê?

- Joia, Josina de Andrade, de nome próprio, natural de Kunda Dya Base, Malanje, criada e crescida em Luanda, em casa de madrinha abastada, mas pouco escolarizada, parecia adivinhar um perigo em frente.

Foi aí que Mariquinha começou a desbobinar.

- Quem olha, e guardamos isso por mito tempo, pode lhe parecer que haja bwé de terrenos desocupados, mas é mentira. Quer dum lado quanto do outro, há mbayas.

- Mbayas, como, minha filha, Interveio dona Joana, mulher de respeito em todo o bairro da Lata. Era a coordenadora da comissão de bairro, dona de um Jeep que fazia ciúmes aos governadores da capital.

- Sim tia Joana. O censo veio a desmontar a ideia de que existiam três a quatro mulheres para cada angolano. Quase todos os homens se gabavam de garanhões e de terem mais do que uma “munzúbia”, entre a oficial e as que chamam de posições ou sei la o quê.

- E não é verdade, filha? Não sabes que morreram muitos na guerra e também, mesmo em tempos de paz, os rapazes são mais propensos a desportos radicais e outras forças violentas que os levam, algumas vezes à morte?

- Sim, tia Joana. Sei disso. Estudamos isso em demografia, mas o censo diz que a proporção é bem diferente e contrária até ao que dizem os homens. Veja bem - Mariquinha, mais serena do antes, prossegui na sua explanação – Há mais mulheres do que homens, mas não chega uma e meia para cada um. São apenas 52 mulheres para cada 48 homens. Quer dizer que, em cada cem pessoas, 52 são mulheres e 48 são homens. Onde é que saem as demais com que se fazem passear os chefes e kamangwistas?

- Minha filha, eu sou segunda, mas também não sei. -Respondeu Joana perturbada.

- Sim, tia Joana. Veja bem. - Mariquinha continuou explicativa e inocente. - O censo demonstrou que nem sequer há uma mulher e meia para um dos homens. Onde é que saem as demais? O censo, mana Joana, mostra que as mulheres é que têm múltiplos homens agregados a si.

- Concordo contigo, minha filha. - Joana, a boss do bairro da Lata, começou a entender e não tardou em contar o segredo:

 – Então, se os homens pensavam que cada um tinha direito demográfico de quatro mulheres, a verdade diz que pelo menos três ou quatro partilham a mesma “xuinga”.

- É isso, Dona Joana. – Respondeu Lareira, assim apelidada pela sua fama de namoradeira a troco de boleia e aquecedora de lares apossados de gelo. A moça de má fama resistiu ao início da conversa mas pode ir mais além. Intrometeu-se na conversa e contando as verdades verdadeiras de que era dominadora. – Nós é que estamos na mó de cima, mana Joana. Mesmo no Kunene a diferença é mínima. Nós é que usamos e abusamos dos homens. Pior é que ainda há homens xuingado que pensam que têm mesmo por direito demográfico esse número ilusório de mboas e que a xuinga não passa por várias bocas. Outros assumem voluntariamente o socialismo mulherístico e empurram a carroça para frente, partilhando com xulos e outros levando uma vida de timatosismo ou pachequismo.

- Ai é, filha? – Interrompeu Joana, pensando que fosse única nessas andanças. – Olha, filha, olhando para o censo, até na Lunda Norte, onde o direito consuetudinnário institucionaliza a poligamia não há mulheres suficientes para o elevado número de homens, mas cada uma se arroga ao direito de ter mais do que uma. De onde é que saem as demais?

- É do segredo, tia Joana. Responderam as comadres todas do salão de cabeleireira.

E não tardou. O sino do estádio tocou. A ambulância passou com o seu wion, wion, wion característico. Seguiu-se o carro da polícia a abrir as alas. O povo todo eufórico. O jogo da equipa da aldeia nada tinha de importância, pois a subida de divisão era já um facto. Restava saber com quem se jogaria na primeira volta do campeonato, por isso, os ouvidos deviam estar ligados ao rádio e os olhos à TV. Nelé e Kapenda saíram de imediato, com a aparência ainda por terminar. Era dia de futebol! 

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

EU, O TIO E O VELHO KAFEJÁ

O prazer que ele tinha de caminhar, conversando, era tão grande que só hoje se reconhece o valor que encerra. A idade, esse somar de segundos, minutos, dias, semanas, meses, anos, décadas e etc., transfigura-nos. Torna as pessoas diferentes. Pensam diferente, de forma mais estruturada e evoluída. A cada segundo que se passa algo minúsculo, mas real, acontece em nós. Ele gostava de caminhar e conversar. Eu, às vezes, na minha inocência, falava com o meu íntimo e perguntava-me por que ele gostava de estar comigo, impedindo-me de estar com os meus amigos que nas traquinices da idade, ante a ausência dos pais, perdidos na busca do “mbolo ya kizwa[2]”, passam tempo a “estigar”[3] o coitado do vizinho “Velho Kafejá”!

Francisco Ngandu, ou simplesmente Chico, era um pouco mais idoso do que ele e tratavam-se por tio e sobrinho. Eram parentes maternos. Avô Chico, para os rapazes de família, era calvo e com o occipital saliente, aparentado ao desenho escolar de um grão de feijão. Talvez por isso é que os meninos mais “mal-educados” do Kaputu o tratavam por “Velho Kafejá”

Saído da “bwala”, repleto de conhecimentos escolares para a idade, mas sem a esperteza dum “kanuku da ngwimbi”[4], encontrou o tio na casa dos sessenta, pois veio a reformou-se três anos depois. Já a sua filha o tinha presenteado com três continuadores do nome: Raquel, Josira e Bruno. A netinha mais velha tinha apenas seis anitos e o “kasula” deliciava-se ainda com o leite do biberon, sempre que a mãe se dirigisse ao serviço.

Chegou inteligente mas sem a esperteza e domínio dos truques da sobrevivência numa cidade-acampamento (sim, acampamento de recuados de todos os pontos da Angola em chamas), expunha-se inocente e desavisado nos apertados becos do Rangel, sem a mínima noção do perigo que enfrentava todos os dias ao cruzar com os “gregos”[5] do México, sempre que se fizesse a caminho da Praça das Corridas.

O velho, avisado e vacinado pelo tempo de vivência luandina, estava sempre atento e com os conselhos na ponta da língua.

- Olha, sobrinho! Faz um “kaburaco” aqui na cintura dos calções e guarda o dinheiro do peixe. Cuidado com os “gregos”. Fumam lyamba e não têm juízo na cabeça!

 Algumas vezes ouvia-o com ouvidos retentores. Outras vezes, se bem que poucas, o conselho caía em saco roto de “mabela”[6] que dava ao arrependimento e às reprimendas da mãe que herdara uma mão sempre leve.

Aos domingos aconteciam mais conversas. Transpunham o Rangel, Terra Nova e invertiam pelas traseiras do cemitério de Sant´Ana, a caminho do templo da Igreja Metodista Unida de Kalemba. Sentavam num mesmo banco corrido, daqueles feitos pelo marceneiro que respeita a Deus, não deixando as roupas dos fiéis a mercê de pregos mal assassinos. O idoso carregava a bíblia que não lia e o sobrinho o Hinário “Povo cantai!” onde guardava o dinheiro para o ofertório e para os doces à saída do culto. Apenas aos domingos o sexagenário levava a mão ao bolso para as guloseimas do sobrinho. E cantavam juntos “madibesa kala nvula”[7] ou o “nome bom, doce a fé….”.

Depois do culto, boca adocicada, estômago resmungante e conversa de fazer crescer. Era sobre o progresso que falavam na hora do regresso à casa. Metiam-se a caminho do bairro Popular, a casa da Teresinha, a filha que vivia num “kaprédio do tempo colonial”. Visitavam-na religiosamente, independentemente da diferença da profissão religiosa.

Na verdade, o tio precisava de um sobrinho ou um neto a quem pudesse transmitir experiências. Não queria ficar com os seus conhecimentos em stock, sem que alguém deles fizesse usufruto e os legasse às gerações vindouras.

- Cada tempo é um tempo. Há coisas diferentes mas muitas se mantêm na mesma. Por isso, sobrinho, “jikula meso”. - Dizia, vezes sem conta.

Ainda indesperto, cansado de caminhadas, quando se podiam fazer transportar num autocarro da ETP, depois rebaptizada por TCUL, o sobrinho respondia inocente:

- Estou acordado tio. Quem dorme não anda!

- É que não te oiço responder. Estás a ver os carros aqui na Estrada de Katete? Passam rápidos. É preciso olhar aos dois lados e correr ao atravessar. Meus olhos já viram muitos a serem "engomados".

- ´Stá bem, tio. Mas tio sabe que criança não morre. É como “Kilombo”[8] que só desaparece...

- Sim sobrinho. Não há óbito de “Kambuta” nem de alto, de branco ou de preto, ainda mais o “kilombo” que é apenas um acidente de nascença (biológico), não faz sentido separar as pessoas vivas ou defuntas. Mesmo a “kitata”[9] e o “ngombiri”[10] que não fazem coisas recomendáveis não se fala deles quando Deus os chama. Apenas se diz que alguém morreu. O ofício dele fica esquecido. - Explicou  antes de "fechar" com uma advertência:

Não fala com os estranhos essas coisas de mais velhos, sobrinho. Primeiro aprende e depois vai aos debates. Pronto. Agora acelera o passo e vamos à igreja onde deves ficar atento à pregação.

Está bem tio! Está bem. A lição foi absorvida!




[1] Abre o olho (Kimbundu).
[2] Pão de cada dia (Kimbundu).
[3] Insultavam; instigavam a… (calão).
[4] Rapaz da cidade (calão).
[5] Delinquentes; bandidos (calão).
[6] Ráfia (Kimbundu).
[7] Cântico religioso (bênçãos como água).
[8] Albino  (Kimbundu).
[9] Prostituta (calão).
[10] Violador  (Kimbundu).

 

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

A RESPOSTA AO GATUNO KAPALAKATA

No carro da kandonga[1] era a voz mais audível. Kapalakata era diferente no falar e até no espalhar fedores. As suas axilas eram lixeiras a céu aberto com revestimento peludo que desafiava as savanas de Kamakupa[2]. Nem só vergonha das kindozas[3] tinha. Tagarelava ao mesmo tempo que se dedicava ao seu “BCA, Bela Vista, Estalagem, Término”, referências à rota Congoleses-Viana.

- Kota[4], estás com uma pipa bwe tribal[5]. Posso ver?
- Sim, podes. - Respondi-lhe com o cachimbo na mão, à mostra.
- Não, mô kota, é mesmo para apreciar. Para tocar e ensaiar a banga[6]. Tipo já o kota, aqui na foto do livro. Retorquiu o muzangala[7] fazendo alusão à foto estampada na capa do meu livro de estreia. Uma jovem que seguia no kandongueiro, com o livro à mão, tinha me reconhecido e puxou conversa de ocasião com "o escritor que contava ser mais velho do que realmente é".
- O moço escreve coisas que só se ouvem dos mais velhos. – Elogiou a Kalumba. [8]
- Obrigado, minha querida. Tenho vivências e sei viajar para um passado intangível para muitos jovens de hoje. - Respondi entre sorriso leve.
- O Senhor tem avôs ainda vivos ou ouve essas cenas de velhos conhecidos? - Insistiu Mona Linda de sua graça.
- Nada disso, minha jovem. Não conheci os meus avôs e nem tenho velhos por perto.
- E esse cachimbo? De quem foi que herdou?

A pergunta da jovem interessada em saber a vida do seu "escritor" despertou a curiosidade de mais pessoas que acharam estranha a presença duma pessoa que escreve livros num candongueiro.
- Mas os escritores não vivem bem? Ou é outra nganza[9] do kota? - Foi assim que Kaparakata se meteu na conversa que até aí lhe era alheia.
- O meu cachimbo, já velhinho, foi uma oferta do tio Gasolina, que baikou ainda jovem, quando lhe falei "tio, vou mbora ser escritor de kimbundu". É um adereço de banga nos meus dias de anos, ou quando nascem meus filhos biológicos ou literários. Também ajuda-me a descontrair e dá vazão à inspiração.
- E como é que o kota faz para ter ideias? - Intrometeu-se Kaparakata.
- Fico a cachimbar e ao mesmo tempo a matutar. Viajo num passado que não vivi e transito para o futuro que não sei se vai acontecer. O regresso ao presente é que dá nos livros e nas crónicas que escrevo quase todos os dias.

O puto[10] cobrador me meteu na conversa de saber se "ando a me janar[11] ou é só banga mesmo". Pediu-me para apreciar e na hora de descer nem só "se lembrei" mais do cachimbo. Ele também, no canto dele de kobele, xinini[12]. Tipo cachimbo é dele. Cabrão me funou[13] a pipa de kaxexe[14].
Na semana dos quarenta kixibu[15], meti um grito na aldeia toda. Um “nanyi u ngi kwatekesa” nyi kabexi?! [16] Quem vir ou souber onde estão a espalhar, kaúla[17] só e depois me fala se é quanto é!
Contei-lhe a estória da gatunagem que Kapalakata me fez a olho aberto e com testemunhas e tudo.

Uns me disseram que gostaram. Meteram um like no anúncio, deixando-me confuso se era gosto pela larapiagem do Kapalakata ou se do “ajudem o pedinte” que fiz. Outros ainda elogiaram as palavras escritas como se fala/falava nos nossos musekes kalus[18].
Houve os que ficaram na defensiva, banzelando[19] o que fazer. Mas houve um mesmo que tomou o assunto a sério. Bateu-se no peito e disse-me:

- Olha, Soba Grande, vou tugar[20]. Quando voltar, vou pôr contentamento no teu coração e tua nganza vai continuar.
O homem usou palavras tugosas e não essas kimbundozas.
Olhei-o nos olhos, se apertamos ainda num abraço de despedida e , quando chegou, me telefonou.

- Alô?!
- Sim, mô kamba tuga mwangolizado[21], tipo “Fernando D´Aqui” de Isabel Ferreira…

O mwadye[22] riu a babar-se todo e com katolotolo[23] na barriga de tanto rir.
- Olha, Sô tor, tenho o que muito precisavas. Parabéns pelo tetra vezes dez. Quando o teu colega, que viajou comigo, chegar aí já verás.

- Obrigado meu mwata[24] de verdade. Já imagino, mas quero mesmo botar neles meus olhos e mandar-te um abraço telefónico.
Nove e meia de quarta-feira, avião nem havia acabado de tirar as patas da pista, o homem, outro tuga a se mwangolizar, fez-se anunciar aos meus colegas de serviço.

- Bom dia senhoras e senhores. Posso confabular com o Dr. Nhanga?
Desconheço a resposta que lhe foi dada. Saí de imediato para que sentisse o calor da recepção. Deu-me um kandandu[25] e sacou da pasta diplomática uma caixa verde. Abri-a e vi, envernizado, um cachimbo inglês. Dei-lhe outro kandandu, antes mesmo de ligar ao autor material da proeza. Não querendo fazer-se de herói sem ter bazucado[26] pelo menos uma vez, o homem meteu a mão na algibeira e sacou outra caixinha forradinha com a cor da esperança.

- É também para ti. Já a tinha há muito tempo em casa, mas decidi junta-la à do Rosário e colorir a tua entrada para o clube dos enta.
Eram lapiseiras com meu nome gravado.
- Obrigado meu caro amigo engenheiro, etc. Me escaparam bwe[27] de palavras bajulosas. Mas eram de verdade. Verdade da alegria.

O meu cachimbo, que o meu finado tio Gasolina me deu, quando lhe falei "tio, vou mbora ser escritor de kimbundu", que me roubaram com ele no kandongueiro, já tem outro com GPS para localizar qualquer homólogo do Kapalakata, gatuno de matuji[28], wakambe ó sonhi nyi kilunji[29].
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[1] Venda especulativa, aqui trata-se de transporte colectivo informal.
[2] Município da província angolana do Bié.
[3] Moças, jovens raparigas.
[4] Mais velho, pessoa respeitável.
[5] Muito bonito, calão de Luanda, séc. XXI.
[6] Estilo.
[7] Jovem.
[8] Jovem rapariga.
[9] Tique, estilo, moda.
[10] Miúdo.
[11] Lyambar, entorpecer.
[12] O cobrador não fez questão de…, acobardou-se.
[13] Roubou.
[14] De pianinho.
[15] Cacimbo, estação seca em Angola.
[16] Quem me ajuda com um cachimbo?!
[17] Compre.
[18] Subúrbios de Luanda.
[19] Pensando.
[20] Viajar para Portugal.
[21] Português com hábitos angolanos.
[22] Individuo.
[23] Doença que enfraquece o organismo.
[24] Senhor; notável; título da autoridade tradicional da Lunda.
[25] Abraço.
[26] Disparado uma bazuca.
[27] Muitas.
[28] Fezes; porcaria.
[29] Sem vergonha nem juízo.