sábado, 15 de abril de 2017

O MUNDANO E O "MONDANO"

Conversavam cinco idosos da Kibala, todos septuagenários. Kitembu e Kanhanga frequentam a igreja desde pequenos. Conheceram-se na Escola Bíblica de Férias, o primeiro levado pelo irmão Domingos João e o segundo por Beto Pequenino. Os tutores eram também amigos desde garotos. 

Em termos de frequência da antiga Missão Evangélica Americana, hoje Igreja Metodista Unida, Kitembu nasceu mesmo na igreja, pois, quando ele veio ao mundo, seu pai já ocupava cargos na Metodista. Kanhanga começou mais tarde, aos sete anos. Iniciou-se na "Cheia", aonde fora levado por um primo, ainda no Kwanza-Sul. Chegado a Luanda, foi levado pelo tio que era da "Protestante" como também era conhecida a confissão cristã trazida pelo americano Willian Taylor. 


Kapitia e Kilole, outros dois amigos, converteram-se ao cristianismo já jovens e foram levados pelos primeiros de quem são amigos desde tenra idade. Kandungu é o único entre os cinco que, ao contrário dos quatro contemporâneos, aos domingos, troca a bíblia e o hinário pelo copo de cerveja.

Cruzaram num óbito, na Kibala, terra de origem comum. Uns nasceram em Luanda mas são de filhos Kwanza-sulinos. Outros foram a Luanda em busca de estudos e profissões e acabaram por lá ficar até aos seus dias de cabelo branco. 

Kitembu tinha perdido o irmãos mais velho e os amigos foram levar consolo. Depois do funeral, e para enfrentar um tempo friorento, os cinco amigos falavam sobre as coisas boas do mundo, aquelas que Kandungu ainda persegue cegamente, e as coisas excelentes dos Céus ou a vida ultra-tumba, que Kitembu, Kanhanga, Kilole e Kapitia procuram atingir com a sua entrega abnegada à causa de Cristo.

- Ó Kandungu, você sabe qual é a duração da vida do homem na terra? - Indagou Kitembu. Kandungu, meio surpreendido, procurava buscar uma resposta que fosse de encontro à sua idade e experiência.

Como um carro sem arranque, começou a resposta pelos soluços, enquanto coçava a barba, toda ela algodoada. - Já viu o quê que os copos faz no homem? O "ngajo" parece já esqueceu tudo. Setenta anos, que vem na Bíblia, já não sabes? - Atirou Kilole, provocante.

- Sim. São setenta anos para que o homem se sinta com força e saúde. Fora disso, a pessoa volta a ser como criança. Mesmo uma vala de metro e meio, que a gente pulava sem recuar atrás para apanhar balanço, você já não pula mais. - Complementou Kanhanga.

 - É verdade compadres. - Kitembu voltou à conversa. - E parece que aqui o mano Kandungu, que é também meu sobrinho, apesar da idade dele ser mais do que a minha, já não consegue pular nem meio metro. No sangue dele só lhe corre já espuma de cerveja!

- Ei, ó Kitembu, atenção ao respeito. Tio é tio, mas quem nasceu primeiro também merece respeito. - Reclamou Kandungu, em jeito de brincadeira. Na verdade, os cinco galhofavam.

Kapitia que até aí se mantivera apenas a seguir a conversa, ora abanando a cabeça para a frente, em jeito de aprovação do que se ia dizendo, ora fazendo-os companhia nas rizadas de mostrar o espaço deixado pelo último molar, colocou um subtema novo. - Vocês sabem qual é a diferença entre o Kandungu e nós?

- Ele bebe, nós não. No domingo, ele abraça a caneca e nós a Bíblia e o Hinário. - Responderam quase em uníssono Kitembu, Kanhanga e Kilole. Só Kandungu se manteve na defensiva. - Vocês "num" disse tudo. - Corrigiu Kapitia, 77 anos no lombo.

- Nós todos que vai "no ingreja" é mundano. Mas ele não. Ele é "mondano". Uma estupefação se apossou dos quatro, Kandungu incluído, que pretendiam saber o significado da nova palavra enunciada pelo amigo que era o mais velho do grupo.

- Ó mano Kapitia, você pode explicar "no" Kandungu o significado de mundano e "mondano"? Eu também só sei que ele é mundano porque deixou de ir "na" igreja. Tanto que lhe ando a dar conselhos, mas não me está a dar ouvidos. - Disse Kitembu solícito.

- Pois, então, oiçam bem: todos que vivem no mundo, se vai "na" igreja ou não, são mundanos. Pessoa como o irmão Kandungu, que "num" vai "na" igreja, que pecado dele se amontoa, é "mondano". O termo "mondano" vem de "mondanha" (montanha). Pecado dele é como uma "mondanha" porque ele não vai à igreja diminuir. - Kapitia terminou o seu sermão com assobios e rajadas estridentes de palmas doadas pelos amigos. 

 Assim fizeram o seu segundo serão, em homenagem a Domingos João António, até que o último galo se aposentou de cantar.

sábado, 1 de abril de 2017

MANGODINHO

Nome dele, do bairro e das amizades, é Man Zequeno, um diminutivo de José Pequeno. Mas apelido dele é mesmo Godinho, nome por que passou a ser chamado nos últimos tempos. Quando nasceu? Não se sabe. Calcula-se apenas, rebuscando as idades de seus coetâneos e daqueles que levou às costas como eu.
 

Sonho dele, de muito tempo, Man Godinho, era conhecer Luanda e fê-lo por uma razão de tristeza. As vezes em que podia vir, passear, respirar ar fresco da brisa do mar, visitar largos com jardins e repuxos, essas vezes lhe passaram. Ora era falta de passagem, ora era a ferida no pé, ora era sei-lá-o-quê.

 
Óbito na família chegada. Menina crescida desapareceu tragicamente numa sexta de praia na Ilha. Luto anunciado ao telefone da tia, no Libolo, Man Godinho veio junto. Calças: um par. Camisa, idem. Um casaco e um par de sapatos. Relógio, já sem ponteiros, no pulso, Man Godinho tipo é homem de verdade. Fez-se à estrada na carrinha enviada para os resgatar.

 
Na ngwimbi, como dizem as gentes do “nosso mato”, Man Godinho foi contemplando a grandeza das casas à volta, o falar refinado, até das zungueiras, e o andar estiloso, até dos vendedores de Kangonya. Cigarro na boca, sem estilo na mão, um fumar apressado, correndo com o cilindro que fumegava incêndio, posicionou-se num canto da rua. Ao lado, o esposo da tia com quem viajara.

 
O telefone do tio tocou. Do outro lado, dita-se um número. O tio, sem saber como anotar no aparelho, desenha os números do solo arenoso. Enquanto corre à casa, para sacar a agenda e a lapiseira, o tio incumbe:

 
- Sobrinho Zequeno, não sai daqui, eu volto já. Controla o número para que não passe carro por cima dele...

 
Man Godinho fez-se estátua. Pessoas passavam, cumprimentavam-no, ele sempre de cara para
o chão dos algarismos. Veio o vento, soprou forte. Man Godinho lágrimas nos olhos é água. Chorava a prima finada aos vinte e dois anos, quinto ano de medicina. Mas chorava também o número do telefone que o vento levou.

 
Caneta partida pela enxada, corrida às pacas e pescarias no Longa. Do chicote do professor Kakonda, herdado pelo mestre Faustino, Man Godinho apenas ténues lembranças do Bê com Â: BÂ. Técnica de redesenhar algarismos na areia movediça não tinha.

 
- Que direi quando o tio chegar?!
...