sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

MANGODINHO NO EMPOSSAMENTO DE JLo

Em Novembro de 1975, criança ainda com 12 anos, Mangodinho era já homem no pensar. Quando ouviu no rádio que a independência estava a chegar, preparou um kaquibuto de macroeira e meteu-se numa BEDFORD a caminho de Luanda. Sorte ou azar, ainda não me contou bem essa parte, encontrou a ponte do rio Zenza suspensa. 
- Ninguém mais passa. Os carcamanos e mobutistas estão a vir para impedir o camarada Neto levantar a bandeira. - Contou que lhe disseram isso e ficou mesmo por ali.
Quando entrou na Ngimbi, encontro o camarada Agostinho Neto já era Presidente e Angola já não era mais de Portugal.
Em 1979, o óbito do camarada Neto apanho-o numa ilhota do rio Longa. Tinha ido tarrafar sem o seu radito e quando voltou, com muitas "salambas" de peixe, encontrou toda aldeia de Kuteka "era só choro". Escapou desmaiar mas fez coragem de se aproximar devagar, devagarinho até se cruzar com rapaz Sabalo que o informou sobre o infortúnio do camarada Neto. Dos mabululos onde ficava a aldeia até chegar a capital levou quatro semanas. Aliás, é já hábito dos homens de Kuteka que, quem vai à capital, mesmo que se hospede em casa de "burguês", tem de levar qualquer coisa. E nessa de preparar a viagem perdeu a investidura do camarada Eduardo dos Santos, que foi a 21 de Setembro.
Também, mesmo que fosse, não O deixariam entrar. A cerimônia parece que foi no Palácio onde até os makota grandes, se não têm convite, não entram. Dizem que no Palácio a segurança é apertada tipo é sandalheta de quem vai caminhar uma grande distância. Por isso mesmo, em 2008 e 212 Mangodinho não se deu massada de ir a Luanda assistir a investidura do Presidente reeleito.
- Se ele é já nosso Presidente desde que o cda Neto se foi para quê só "se dar" massada de ir mais "lhe" ver? Foi assim que Mangodinho tinha parado de tentar. Mas quando ouviu que o camarada dos Santos vai meter o colar da República no pescoço do camarada Lourenço, Mangodinho fez tudo às pressas. O quibuto dele de macroeira já estava preparado. O peixe do rio Longa a e carne de caça também já tinha. Uma semana antes, meteu-se já na estrada. Agora com a paz que temos viagem de trezentos quilómetros é só mesmo em um dia e a pessoa chega mbora bem. E chegou. Ficou na casa do tio dele Sabalo onde a luz não falta para ver televisão.
Quando "lhe disseram no" Bartolomeu que a entrada no Mausoléu é de borla, ou seja sem convite, Mangodinho, cinco da manhã já estava lá com garrafa dele de água mamão e um pouco de bombô assado com jinguba. Ao sair do Benfica ainda estava a cair kawelewele. Nalguns sítios era mesmo irmão pequeno de chuva. Por isso, levou boné, casaco de lona e mais um guarda-chuva que não chegou a usar.
Aliás, antes de sair de casa, penetrou bem o cabelo, escovou o casaco e os sapatos, embora com sola gasta e inclinada, estavam a brilhar. Mangodinho para quem o visse era homem de pôr respeito. Posto na bancada pública da Praça da República, Mangodinho disse para si mesmo "não quero confusão". Foi, por isso, ocupar uma cadeira na penúltima fila, onde esperou, esperou, esperou sem desesperar.
- A viagem do Kuteka a Luanda demora mais do que esperar pelo Cda Presidente das cinco e meia ao meio dia. - Disse para se encorajar.
Mangodinho no lugar dele de visibilidade privilegiada viu todos os presidentes a chegarem, a serem ovacionados, e o "camarada de vestido preto" que falou ao camarada Lourenço que "se abre, a partir de hoje, uma Via Expressa para corrigir o que está mal e melhorar o que está bem". O homem disse mesmo como pai que recomenda o filho que (camarada Presidente), "combata a corrupção, melhore a vida da população, diversifique a economia...". Já a lhe correrem lágrimas de contente, Mangodinho ouviu atentamente o camarada Lourenço a reafirmar que vai cumprir as promessas da campanha e as detalhou uma a uma.
- Não. Esse camarada Lourenço tem cabeça. Não esqueceu nenhuma das promessas e ainda acrescentou lá outras como "Ninguém é tão rico para não ser punido ou tão pobre para não ser protegido". - Mangodinho a baba a cair-lhe tipo é nenê que está a esperar a chegada dos dentes de leite. É alegria ou quê?!
Mangodinho, assim mesmo, está a preparar as malas para regressar à aldeia de Mbangu de Kuteka. Pelo caminho vai fazer a acta detalhada que vai apresentar ao povo já convocado para uma Assembleia. Afinal, ele foi já indicado "Administrador de aldeia", no âmbito do regulamento da Lei da Administração Local.


Texto publicado no Jornal de Angola, Jan. 2018

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

E AGORA?

Viram-se crianças. Ele mais adiantado na idade do que ela. Namoraram ao iniciar a juventude plena, ele,  e ela a findar a adolescência. Madó e Loló, naquele tempo assim conhecidos, seus pais e até seus avós nasceram e sempre viveram no Margoso. Estudaram em escolas diferentes, encontraram outros cônjuges com os quais juntaram trapos e formaram famílias. Viveram, porém, e vivem no mesmo bairro. Ele em um edifício de três andares, construído ainda no tempo colonial. Ela em habitação térrea.

             Já a caminho da senilidade, ele pai de menina, a Tininha, prendada por Deus e pela herança biológica. Uma "estraga sapatos" ao passar. Qual homem que se depara com sua carga e não tropeça? Ela, dona Madalena, Madó em tempos de menina, é hoje mãe de rapaz.

As conversas de comadre, entre Madó e amigas de juventude, levaram o Totó a se aperceber que no passado houvera um "affaire" entre a sua mãe e o pai da jovem que ele ardentemente cobiçava. Sentiu-se encorajado ao ouvir aquela conversa e conseguiu cravar o primeiro beijo à Tininha.

Com o tempo, conversas daqui e dacolá, Totó contou à namorada o que foram a adolescência e os factos marcantes entre seus progenitores. Outros factos lhes chegariam aos ouvidos, por meio de tios e tias com que os pais conviviam.
- Teu pai deflorou minha mãe! - Disse um dia Totó, despretensioso e a seco.
Tininha nem sim, nem não. Era ainda uma flor imaculada. Rolaram os tempos, cada vez mais eram vistos de mãos dadas.
- Esses meninos estão mesmo a seguir as peugadas dos pais. - Diziam os mais velhos do bairro que sabiam mas nada diziam.

 
Dias depois. Noite de pouca luz. Depois da telenovela das vinte e trinta, Tininha chegava a casa banhada de lágrimas. Saia, quase a cambalear, do terraço do prédio onde fora vista a conversar com o Totó.


- O que foi, filha? - Questionou o pai preocupado.

- Foi o Totó, pai.  Fez-me o que o papá fez à mãe dele!
 
 Publicado pelo jornal Nova Gazeta de 29/06/17 
 

















 
 












domingo, 1 de outubro de 2017

O CERTIFICADO DE HULE

 Fazia meses que em Nampula fazia calor. Pior, quando El Nino se aproximava, cumprida a sua sazonalidade. Estava um calor de assar sardinhas para um prenúncio de noite. Já se alinhavam estrelas num céu cinzento recortado por nuvens turvas. Ao mesmo tempo que Hule procurava acertar a cor do céu afivelava ideias sobre a janta do dia seguinte e o leite do Diploma que brilhava nas costas. 
Hule fora enviada a Maputo ainda na puberdade aonde o pai pretendia que sua filha do meio se formasse em medicina ou outra ciência afim. Mas cedo conheceu angolanos e outros diplomatas oeste-africanos que exploravam petrodólares. Meticais para que te quero?! Instituto para que me serves?! Hule encontrou vida fácil. Dançarina de primeira hora, conhecedora de noites luxuosas, dama de companhia para eventos se fez. Não escolhia cor da epiderme. Não! Nem idade lhe interessava. Diferenças etárias eram apenas números. Somente uma cor, a do dinheiro americano lhe interessava. O certificado de habilitações literárias que lhe proporcionaria emprego numa instituição do Estado, sonho amputado do pai,  foi substituído pela cria. Foi assim que os mais inconformados com aquela opção da jovem passaram a tratar a filha de Hule por "Certificado".

No dia em que a cena aconteceu, Hule estava à porta da sua mandjungu ou choupana que herdara da avó materna de quem a filha se tornou xará. Abriu a porta, entre duas colunas que se prolongam e se revezam no andar. Deixou entrar um pouco de ar para arrefecer o forno que se achava envolto a kapulanas, como são tratados os tecidos em Moçambique.  O forno, fundo, húmido e já com pouca elasticidade, ante ao uso revezeiro, é a sua indústria, seu banco. Ajeitou os maboques, um par no peito, que se prestavam a fugir do soutien. Jactou o decote. Mamas já flácidas jazem quase quase num amontoado de esponjas suportadas por arcos metálicos. Aos lábios, levou um batom pobre e encarnado. É sangue procurando suor e sangue. À filha, chorona e resmungona, espectou um sambapito na boca. 
- Cala. A mamã vai ganhar pão pra amanhã! 
Hule fez-se a caminho da baixa de Nampula, entre Faina e Mutotope, seu emprego prazeroso. Foi lá que o Manuel, polícia de profissão, já quase noivo, a encontrou em flagrante delícia.
Ali mesmo, no Largo Machel, depois de adentrar o jeep grande de vidros translúcidos, não precisou de vistoriar à volta. 
- São cooperantes, nada os detém! - Pensou.
Imitou o canídeo. Lambeu a sua cria,  afugentando-lhe as maleitas. O bicho respirou fundo e esticou-se ao comprido. Hule, feita canídea de Rafa, simulou caminhada, de quatro, do kambwá como dizem os angolanos na margem atlântica do continente. Sem se aperceberem, a polícia que procurava por marginais foragidos fez-lhes uma surpreendente visita. Manuel estava na patrulha.
- Estão presos, malandros!

Texto publicado no Jornal de Angola do dia 01/10/17

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

FIM DE MISSÃO

Já lá vão três anos que Mangodinho teve a arriscada ideia de construir instalações para o que pode vir a ser o Posto Médico da aldeia. Como homem avisado, cuidou também de mandar à Huíla miúdo Russo e Sembe, jovens da aldeia que não hesitaram em aproveitar a oportunidade de crescer na vida e ajudar o povo. Aliás foi mesmo esse o discurso de Mangodinho quando os abordou.

- Miúdo Russo, como vês, aqui as pessoas morrer é tipo cabrito. Não há enfermeiro nem Posto. Não queres estudar saúde? Já falei com o meu pai que foi trabalhar no Lubango e ele pode ajudar. Pelo menos cresces na vida e ajudas o povo.

miúdo Russo, miúdo de visão, não hesitou.

- Obrigado Tio Godinho. Muito obrigado. Vou já avisar a mãe. É mesmo avisar.

Mangodinho falou também com Sembe sobre o assunto e nos mesmos termos. Sembe, miúdo crescido e já um pouco viajado, viu naquela proposta a vez da sua vida.

- Já aceitei, tio. Não precisa só se dar massada de explicar. Não aproveitar é ser burro e continuar na lavra e nos alambiques. -Concluiu Sembe, fazendo-se à casa para avisar os familiares.

Já não era boato. Era certeza. O chefe Sabalo, tio de Mangodinho que foi ao Lubango trabalhar na ordem e segurança, cuidou de os inscrever na Escola Técnica e instalar no internato de Civingiro. Vezes tantas levou apoio moral e material para suprir carências de visita e de quem vive de braços estendidos.

Mangodinho, hoje distinto daquele que aportou à Ngwimbi em situação de óbito, é homem diferente, iluminado.

Com as instalações erguidas e os dois técnicos formados, mesmo que venham a ser pagos apenas pela comunidade, só restará pedir à administração os equipamentos e medicamentos. Mangodinho é, ao que diria Salas Neto, "um filósofo de bairro" ou um "mago no escuro da aldeia rural". Ele foi felicita-los pelo empenho e leva-los de volta à Pedra Escrita.

- Epá! Tio Godinho e chefe Tio Sabalo?! Muito gosto. Obrigado por nos darem o estudo e virem nos visitar. - Soltaram em coro miúdo Russo e Sembe.

- Nós é que agradecemos o vosso espírito de entrega é de sacrifício. Sabia que a vossa vida aqui, longe da família, não seria fácil mas confiei também na vossa resiliência, enquanto jovens comprometidos com o bem-estar da população. - Agradeceu Mangodinho.

- Tio, só o começo é que foi duro, explicou miúdo Russo a desembrulhar os certificados, mas o resto foi fácil, porque o chefe tio Sabalo estava sempre aqui ou íamos com ele à cidade comer e beber.

Cumprido o protocolo junto da direcção do lar de estudantes, fizeram as imbambas e rumaram à cidade onde fariam a compra de algumas lembranças. Civingiro fica para a história. Dentro de uma semana, será a aldeia de Pedra Escrita a construir outras páginas em suas vidas.

Pacientes: feridos, doentes de cólera, dermatológicos, crianças de barrigas fartas, todos pacientes. Eles também pacientes. Aguardavam-se uns aos outros.

A notícia da formação dos dois enfermeiros gerais tinha chegado cedo à sede do

município. Camas, medicamentos e lençóis chegaram 24 antes e, no dia do desembarque dos dois "mestres", o administrador já os esperava para as boas-vindas, apresentar o material de trabalho, as guias de colocação e abrir o Posto.

Mangodinho aproveitou pedir ao camarada administrador comunal para deixar a função de coordenador do bairro e se dedicar exclusivamente ao Partido. Afinal, era ano eleitoral.
Publicado na pag. 10 do Caderno Fim-de-semana do Jornal de Angola de 10.12.17

terça-feira, 15 de agosto de 2017

VELHO LUMINGU E NETINHO


Dizia o pregador: um jovem, Boss de seu nome, vivia com seu pai que era já muito idoso. Reumatismos e outras maleitas faziam dele franzino e trémulo. À mesa, quase sempre, deixava cair os talheres, os pratos e copos, recebendo desaprovação da nora que se queixava de ver o seu enxoval a diminuir.

Boss tentava encontrar um meio termo. Quando podia comprava louça substituta, porém, a fúria de Queen era tanta.
A conselho da mulher, o jovem Boss entendeu fabricar artesanalmente pratos de madeira e copos de caniço de bambu para o pai.
Velho Lumingu nem força tinha para comer, quanto mais para reclamar. Aceitava pacificamente tudo quanto lhe dessem ou lhe ditassem. A viver aflito encontrava-se Netinho, o filho de Boss e Queen. Acompanhava atento quer ao quebrar da loiça por parte do vovô Lumingu, das arrelias da "filha prendada" de maus ensinamentos que era Queen e  ainda a cegueira daquele jovem próspero, seu pai. E via o vovô Lumingu sempre comendo em prato de madeira e usando copos de bambu.
 

O tempo foi passando. O menino, já adolescente, ia ganhando prática em escultura. Trabalhava e talhava a madeira como ninguém da sua aldeia e da sua idade. Era já quase um artista no trabalho da madeira.
 

Certo dia, decidiu dedicar toda manhã à fabricação de utensílios de cozinha. Não tomou sequer o pequeno almoço.
 

Quando o Boss e a Queen, seu pai e sua mãe, foram ter com ele encontraram-no no meio de uma pilha de objectos: garfos, facas, colheres, pratos, copos, etc.
Surpreendidos, perguntaram-no para que seriam àqueles objectos todos.

- Serão para o papá e a mamã quando tiverem a idade do vovô. Pode ser que até lá eu já não tenha a destreza de os poder fabricar.

Atónitos com a resposta do filho, desfizeram-se automaticamente dos objectos de madeira e repuseram a qualidade de vida que haviam usurpado ao velho Lumingu.

Queen e Boss correm hoje para a idade senil e levam para o fim de suas vidas a lição aprendida do filho primogénito. Espalham-na por onde passam, tornando-se palestrantes em várias organizações, explicando a necessidade de os filhos acolherem os progenitores em casa.
- O tratamento que dispensares aos teus progenitores, será, tenha certeza, o mesmo que pedes a teus filhos! - Têm dito nas suas preleções.

Texto publicado pelo jornal Nova Gazeta

terça-feira, 1 de agosto de 2017

NAS MARGENS DO RIO

Conta a lenda (com meu apimento):
Duas manas, Kimone e Samba, saídas das terras banhadas pelas águas do Lukala e Kwanza, lá pelas bandas de Kakulu nyi Kabasa, decidiram distanciar-se e constituírem seus “reinos”. Kimone correu em direcção à rota do Sol e fixou-se no médio Kwanza. Samba foi para sul, percorrendo a rota oposta à trajectória do sol, e encontrou terra vastas de vegetação farta que indiciavam ser de elevada fertilidade. Encontrou também sossego entre o Longa e Nyiha. Fazendo-se ao centro daquele território de água e caça abundantes, fixou nele a sua morada.

Com o correr do tempo, a saudade, quer de uma quer de outra, foi aumentando, chegando quase à exaustão. Recadistas não havia e aqueles que transmitiam “mensagens de ouvir contar” também rareavam. A travessia dos rios, em tempo chuvoso, era penosa. Kimone, a irmã mais velha, possuída de saudade, fez-se ao sertão, à procura da irmã. Terá sido em tempo de queimadas, normalmente entre Agosto e Outubro. Viam-se as planuras, as montanhas, os contornos dos rios, e os animais ferozes estavam distantes de terrenos lavrados pelo fogo.

Quando se achavam próximos da aldeia fundada pela irmã, Kimone mandou um emissário confirmar se o povoado à vista era o de Samba, ao que ergueu uma tenda onde aguardou pela resposta que veio afirmativa.

Samba, o emissário de Kimone e mais uns tantos aldeões saíram carregados de presentes e ali mesmo, onde Samba mandara erguer uma tenda para descansar e aguardar pela confirmação, se fez uma grande festa de recepção.

Para levar à posteridade aquele momento ímpar, no local foi construída uma casota que evoluiu até se constituir em aldeia, ganhando o nome da irmã visitante.

Kimone permaneceu na aldeia fundada pela irmã mais nova algum tempo. Dizem mesmo que foi quase um ano, nova época de queimadas, até afogar a saudade.

De regresso à casa, quando perguntada sobre "onde estivera todo aquele tempo", ela simplesmente respondeu:

- Ngwe(nde)le kumona ipala kya Samba (fui ver o rosto de Samba).

A terra conquistada por Samba ficou conhecida, até hoje, por Kipala-kya-Samba (Kibala). No local onde Kimone descansara surgiu uma aldeia registada com o seu nome. Antes da vila da Kibala (Quibala) está a aldeia de Kimone que possui um templo da Igreja Metodista Unida em Angola, baptizado por Boa Esperança-Kimone.

Publicado pelo Jornal Nova Gazeta de 23.02.2017

sábado, 15 de julho de 2017

OS MONSTROS QUE AS QUEIMADAS POEM A NU

O suprimento da saudade que os sufocava, havia já mês e meio, fê-los sorver aquele momento único em surdina. Era como sugar o tutano na mais profunda intimidade. Ele instalado nela (carrinha) e ela dando gozo ao longo de léguas que separavam o nordeste do centro-oeste para aonde se dirigiam.

- Lembras-te, Soba, quando viemos parecia não haver ferro retorcido ao longo da via. Vês que a paisagem hoje mudou? - Disse ela em ruídos apaixonados.

- Sim, Maria. Temos ainda muitas sobras das guerras. - Respondeu o companheiro, enquanto a afagava com mais uma mudança de força.

Mas, Soba, donde vieram então esses monstros todos, já sem cor nem forma, e que fazem recordar os tempos do tri-tri-tri-buummmm?!

- Estavam escondidos, Maria. Eu também pensava que os catadores de ferro já tivessem recolhido todas essas lembranças das guerras e levadas à siderurgia nacional. Pensava que já estivéssemos a usar arados fabricados com despojos e destroços das guerras. Ainda bem que as queimadas à beira da estrada estão a colocar tudo à mostra dos recolectores de ferro velho. É tempo de obra para os ferreiros. - Explicou o amo.

A travessia de um grupo de adolescentes com pás nos ombros fê-los interromper a prosa oral para reflectirem sobre as pás que sulcam terra em busca de incertezas escondidas no subsolo, numa altura em que a paz permite ter escolas à dimensão dos aglomerados, porém algumas chorando por alunos refractários.

- Esses assim vão à tonga ou à campanha sabatina de limpeza escolar? - Atirou Maria inocente.

- Acorda, filha. Estamos em Xamikelenge. Aqui e na Muxinda as pás, mesmo em tempo de paz, significam ainda a busca de kamanga. As escolas têm ainda as carteiras vazias à espera desses mancebos. - Explicou irónico o dono dela.

- Soba, voltou a interromper Maria, quando falávamos sobre as sucatas acastanhadas de ferrugem e já sem as chaparias que ajudariam a descortinar de que tipo de veículo se tratavam, falavas em sobras das guerras, no plural. Houve por cá muitas guerras? Gostaria que me explicasses tim-tim por tim-tim. - Solicitou Maria quase suplicante e cortado já, a meio, a encosta de Kabatukila, Xinje, onde, por ironia, um camião carregado de ferro velho repousava ad eternum no meio da rodovia, entregando-se também à interminável quantidade de ferro por recuperar país adentro, recortar, transportar, fundir e transformar. - É preciso, afinal de contas, dar vida à agricultura e à construção de infraestruturas, o que passa pela reactivação da indústria siderúrgica, cogitou, sem no entanto o pronunciar.

- Sim Maria. Usei mesmo, e propositadamente, o plural.

Houve a guerra dos movimentos contra o colono, durante 14 anos, em que muita técnica das tropas ocupacionistas foi aniquilada nas emboscadas. Depois foi a guerra civil que também destruiu a técnica militar automóvel e rodo-transportada das partes conflituantes ao longo de 28 anos. Temos ainda a guerra infinita entre a estradas e os veículos, entre os automobilistas e as vias, que parece ser a mais dura e lúgubre. - Explicou seu amo.

Maria aprovou o discurso, solicitando uma mudança de menos força e mais corrida ao que Soba prontamente compreendeu e anuiu.

Prosseguiram a viagem entre silêncios, diálogos e afagos carregados de recordações e afectos. Maria, no auge da força e jovialidade. Ele, Soba, no auge do poder, vigor a paciência em contornar as inúmeras armadilhas e os incautos camionistas que, vezes sem conta, colocavam o traile no eixo da via, submetendo em risco a vida daqueles com quem se cruzam nesta batalha da busca do pão comum para o estômago vazio.

- Esses assim pensam que a estrada é propriedade privada deles ou que os outros não têm vida? - Desatou Maria, que não poupou um estrondoso muxoxu que lhe invadiu a boca. - Vão mazé, seus sacanas de merda, e tenham juízo nas vossas cabeças de gafanhoto, pá! - Concluiu resmungante Maria.

- É isso, Maria. Isso é pão de cada hora. É isso que alimenta os esqueletos metálicos na via. Alguns camionistas só se dão conta disso depois de entrar em prantos, envolvidos num sinistro, ou quando tripulando um veículo menor se depara com semelhante corneada. É essa a luta desigual que mais me preocupa. - Falou- lhe filosófico o amo antes de ser parado para uma fiscalização preventiva dos homens do apito laranja.

- Donde vem, senhor condutor? - Atirou o agente de farda verde e colete laranja.

- Do nordeste, senhor agente. – Respondeu o soba, já com a papelada da Maria e a sua em mãos.

Conferida a papelada, acto que se repetiu outras nove vezes ao longo do trajecto, o agente, caprichosamente aprumado com gravata e luvas, devolveu os documentos e fez o sinal de partida. Aliás, não faltaram as perguntas do costume: como vai a viagem e que notas de realce nos reporta, senhor automobilista­?

Não havendo acidentes ou incidentes graves ao longo de tudo quanto tinha percorrido, preferiu soltar um NADA CONSTA e seguir viagem até à cidade erguida sobre a encosta da montanha das cobras Ndala onde tomou a primeira refeição do dia que se acrescentaria ao meio litro de café que tomara ao longo das oito horas de estrada. Maria também reclamava pela segunda refeição, o que lhe foi servida sem hesitação. Havia ainda perto de duas centenas e meia de quilómetros pela frente. O sol despedia-se a caminho do grande Kalunga-Lwiji, ao ocidente. Sábado da batida e da Ngwenda na capital e arredores, na Catedral do amor católico, bem nas barbas do Kwanza que dá vida e dinheiro aos akwaxi, as devotas pediam dinheiro, maridos, felicidade e tristezas para as concorrentes. À espera de uns incautos desconhecedores das regras de trânsito ou das leis estariam outros akwaxi. É a lei da vida urbana e da selva. É a lei dos opostos. Maria que ouvira até aí os desabafos do seu amo voltou a questionar.

- Mas por que pedem algumas pessoas a morte de rivais, Soba­?

- É a lei dos opostos, filha. O que te faz bem pode não me fazer bem. O que pedes pode ser o oposto do meu desejo. Já vi duas rivais a rezarem para que a consorte desaparecesse do mapa. – Troçou o amo.

- Ai é­? Então leva-me à Muxima. Pretendo pedir que nessa estrada, da Capital aos Kwanzas, passes a andar somente com o António (nome de outra viatura), pois há muito que ando com a coluna sôfrega.

Entre curvas e lombas, sol poente, sombras e penumbra, seguiram seu caminho até à próxima paragem...

Obs: Texto publicado pelo Semanário Angolense a 09.10.2015

sábado, 1 de julho de 2017

A ORAÇÃO DO KAPITIA

A amizade que carregam, há mais de meio século, dá-lhe a ousadia para falarem de tudo e sobre tudo. Entre eles, nada é segredo. Apenas há segredos que desvendam só quando a fila ande. Aí sim. Abrem um espaço nos epitáfios e levam ao conhecimento dos parentes mais chegados as extravagâncias inauditas do de cujus.

 
Chegados da Kibala, Kitembo e os amigos Kanhanga, Kilole e Kapitia notaram a ausência de Kandungu. O homem tinha o telefone desligado, não mandava os habituais recados aos manos da sua geração e igualhagem, nem pedia dinheiro para a cura de reumatismo que ardilosamente desviava para as "baixinhas espumosas", como gostava de tratar as cervejas de garrafa curta.

- Compadres, o gajo deve ter ido para a pior ou a caminho disso. Depois do culto, é melhor irmos espreitar, se ainda encontramos o corpo quente. - Kanhanga aos coetâneos que depressa concordaram.

Juntaram moedas, as que haviam sobrado de um domingo de muitos balaios: fundo de construção, acção de graças, dízimo do Senhor (roubará o homem a seu Deus? Questionara o pastor para melhor penetrar-lhe o cérebro e a algibeira), oferta dominical, etc. Tinha sido uma fina peneira, mas, mais-velho é já mais velho, tem sempre reserva estratégica. E foi com o sacudir dos kafokolos, onde normalmente fica enfiada a reserva estratégica, que fizeram a vaquinha com que se meteram a estrada, ao encontro de Kandungu.

Encontraram-no vivo, mas degradado. Isso mesmo degradado e em estado lastimável. Os saltos, provocados pelos buracos na via que separa a capital da sede de Kibala, haviam debilitado a sua coluna de sustentação. Os antibióticos e analgésicos para afugentar as artrites foram substituídos pelas "pequenas espumantes". Encontraram um amigo vivo mas transfigurado. Mais morto do que vivo.

Primeiro entrou Kitembu, amigo e tio, embora dois anos mais novo do que Kandungu. Seguiram-se-lhe Kanhanga e Kilole. Kapitia chegaria meio atrasado, pois fora ver a filha nas cercanias.

- Boa tarde sô Kandungu. Esta hora já estás calibrado? - Saudou, gozão, Kitembu.

- Não brinques assim. Se me encontraram com vida é já sorte. Quanto à bebida com que sempre te embirras, hoje só bebi mesmo uma. Estou mesmo a morrer e nem sei porquê que Deus não me leva já. - Respondeu Kandungu, resmungão e com a voz trémula, como se lhe faltassem apenas instantes para transitar para outra dimensão da vida.

- Mas ó Kandungu, é mesmo morrer que queres, quando pessoas com noventa fogem da morte como satanás foge da cruz? - Indagou Kilole?

- Sim, mano Kilo. Aqui já não está a dar certo. Sofrimento é muito. Morrer é descansar.

Os amigos, algo co condoídos, algo chateados, com o indivíduo que degradou o corpo por livre vontade, decidiram retirar-se e voltar no dia seguinte. Eram todos reformados e Kitembu tinha um bom jeep em que se faziam transportar, quando não fosse na carrinha de dupla cabina que Kanhanga acabara de receber de oferta do filho.

- Vamos. Quando voltarmos trazemos outras ideias e esperamos não te encontrar mais nesse leito e nessa desgraça. - Disse Kitembu a despedir-se e puxando pelos amigos.

Kapitia, que acabara de chegar, tentou ainda convencer Kandungu para se livrar da ideia de se eutanasiar.

- Mas, ó mano Kandungu, ainda a semana passada que choramos o irmão Domingos João, até as lágrimas nos olhos ainda não se secaram, você quer já nos deixar?

- Sim, Kapitia, é melhor eu partir. Se vocês acham que estou a brincar, amanhã mesmo não vão mais me encontrar.- Disse Kandungu com as últimas forças que lhe restavam.

Kapitia, entre sarcasmo e compaixão, decidiu solicitar uma oração, mesmo Kandungu não sendo mais membro da igreja, ao que todos concordaram, até o inferno que se achava sem forças para se pôr em pé.

- Oremos: " Pai nosso, nosso Senhor, Deus que dá a vida é que a retira quando quer, estamos aqui perante nosso irmão que jazz nesse leito, mais pra lá do que cá. A vida que o irmão Kandungu leva é de muito sofrimento e miséria, pai. Já que ele mesmo está a pedir, por que é que o pai não manda essa noite seu anjo busca-lo? Ao menos ele descansa perto ou longe do Senhor, em função das suas obras no mundo. Que assim seja. Ámen!

- Ámen! - Confirmaram os amigos.

Kapitia ainda não tinha ainda terminado a oração, já Kandungu se sacudia de pé, entre os amigos. Afinal, não era a morte que desejava.
 

quinta-feira, 15 de junho de 2017

SOBA KEXIKO E CA FINA

OU
A IMPORTÂNCIA DO DOMÍNIO DAS LINGUAS LOCAIS NO TRABALHO COMUNITÁRIO
Conta-se que um governante enviado ao planalto central para governar Wambu Kalunga decidiu levar a sua secretária, jovem esbelta e fina no falar e atender. Fineza trabalhava com o chefe havia anos e era tida como "filha do Senhor Governador",  encarregada também de resolver determinados assuntos "protocolares, diplomáticos, familiares  e particulares". Foi numa dessas "missões especiais e de elevada confiança" que Fineza foi enviada a uma aldeia entre Wambu Kalunga e Kahala para levar uma encomenda a uma diaconisas que era fazedora de opinião na comunidade religiosa, sendo muito prestigiada e respeitada.
O governador, neófito na província, mas com um estilo de governação dialogante e cooperante, procurava aproximação aos líderes comunitários e transmitir-lhes o seu plano de governação.
Chegada ao local, Fineza, com toda a finúria declarou: 
- Sua excelência, Senhor Governador, mandou-me entregar essa encomenda e essa carta que contém também um contacto telefónico. A diaconisas que se encontrava em rezas, agradeceu e finalizou com uma interjeição em Umbundu, ca fina! (Que bom!)
Chegada junto do chefe, Fineza, que nunca quis aprender línguas africanas, explicou que havia sido recebida pela "tia Fina" (tcha fina) que ligaria ao governador no final do serviço religioso.
O governador que era nativo percebeu a calinada e pensou em um outro exercício que levasse a sua secretária a descobrir e agregar à sua a beleza a beleza das nossas línguas.
A leste da província estava uma pequena comunidade tucokwe (tutchocue) entre povos ovimbundu que resistia à assimilação progressiva. O governador mandou Fineza levar uma missiva, informando que só ao soba daquela comunidade devia ser entregue.
- Bom dia mamã! - Saudou Fineza.
- Menekenu yaya. Yeswe tuli kanawa. Kuci yena?! (Bom dia irmã. Nós estamos bem. E vós?!). - Respondeu a mulher do soba que entendia português, mas é costume não responder em língua não local (Ucokwe ou Umbundu).
- Gostaria de falar com o soba.  - Solicitou Fineza, a secretária do governador.
- Soba kexiko (o soba não está).
Eventualmente, os gestos terão levado  Fineza a depreender que o régulo se encontrava ausente, não podendo avançar com a diligência. Porém, mais uma vez, o desconhecimento da língua fê-la transmitir ao chefe que não tinha encontrado o "soba ti Chico" (soba kexiko).
O governante teve de arranjar cursos de línguas africanas faladas na região, sendo hoje Fineza uma jovem cada vez mais fina no tratamento aos mais-velhos que procuram por serviços do Governador.
 
 Texto publicado pelo jornal Nova Gazeta

quinta-feira, 1 de junho de 2017

O ESTADO DA MINHA "NAÇÃO"

No dia 17 de Outubro, trabalhei até às 18h00, tendo, depois,  ido levar conforto a amigos distintos visitados pelo infortúnio. Por tal razão, ponderável(?),  cheguei tarde à casa. Habituados a ver-me chegar, meus filhos perguntaram-me:
- Papá dormiu onde?
- Dormi aqui mesmo.
- Mas, quando fomos dormir, depois da última novela, não vimos o carro do papá!
Puxei o vinco na testa para ver se se apartassem de mim. Debalde! Os mais novos pareciam dispostos a obter a resposta que pretendiam, ou no mínimo amealharem a sua boa disposição para as aulas à custa da minha. Foi, na verdade, uma noite de insónia.
- Vem com computador ou papel e lapiseira. - Chamei pela filha mais velha.
- Está bem, papá. - Fez-se pronta e diligente.
- Aponta a ideia e faz cartazes para afixar na parte traseira do quintal.
- Os vizinhos cagões e gozões, que dejectam ao ar livre, nas traseiras do meu quintal, e deixam seus sacos de lixo junto à minha porta, minando minhas árvores que plantei com esforço e suor, poluindo o ambiente à volta, fiquem avisados: Vou colar avisos para deixarem de abusar da minha paciência e bom-senso, sob pena de o corredor que serve de passagem aos que não têm outro caminho ser fechado com arame farpado e "feijão-maluco".
- Tudo isso, papá?- Interrogou ela promovida a escrivã.
- Mas, ó papá! Se o papá fechar o corredor e algum vizinho quiser reclamar? - Atirou o mais novo.
- Ele que vá reclamar com os vizinhos cagões e deitadores de lixo.
- Não incomodem o vosso pai. Ele está cansado, sonolento e aborrecido. Ele limpa sempre, mas, dessa vez, passou-se? - Acudiu a mulher.
- Mamã, ele passou? Foi aonde? O papá não está aqui mesmo?!

O estado da minha "nação", minha casa, é, às vezes, complicado. Vezes há que se falam coisas de baixar os ouvidos. Outras, raras, é assim. Falamos por falar. E, para preencher o rol, ainda recebi  a SMS da sobrinha:
- Tio, preciso que me faças uma redacção sobre direito. É urgente. Se for ainda hoje melhor.
- Fogo! No meu tempo, sobrinha,  iria, caso tivesse, ao tio para pedir-lhe livros ou indicação de bibliografia relacionada ao tema. Queres que eu faça por ti?
- Sim. Você é meu tio prá quê?- Respondeu ela também ousada e pensando que estava coberta de razão.
- Aí é, sobrinha?
Quase falei mas ficou só já no coração.
 (...!).

Texto publicado pelo jornal Nova Gazeta

quinta-feira, 25 de maio de 2017

ALMOÇO DE NATAL


Como excelente homem de caça, com muitos cães, armadilhas e boa pontaria na hora de levar o dedo ao gatilho da caçadeira ou da flecha, Mangodinho é apreciador de carne, mas a seca ou defumada fazem melhor o seu engodo.

Natal e ano novo chegaram. No mato é tempo de chuva, capim já alto com as presas distantes do olhar humano. Mangodinho e sua kalumba decidiram ir ao Lubango, visitar os tios e fazer-lhes companhia, num ano em que não havia motivação para festim. Os rapazes que foram cursar enfermagem ara a atender o  Posto da aldeia também avisaram em carta que enviaram no meio de Dezembro:

- Ti-Godinho, no começo do ano, vai nos buscar porque vamos já terminar a formação. O tio que nos ajudou, não dá para toda hora lhe pedir isso e aquilo. O tio, se puder, vem e , com ele, cuidam já de nos levar e tudo.

Até Luanda Mangodinho e a mulher foram de autocarro mas da capital às terras altas de Chela foram transportados num jeep V8 do chefe Sabalo. O motorista estava em Luanda e aproveitaram a boleia.

Pelo caminho, Kilombo, a kazola de Mangodinho, primeira viagem longa de sua vida, só espanto. Era capim, árvores, montanhas e tudo a correr para traz, enquanto as travagens tanto faziam-lhe vertigens quanto aproveitava dar uns bicos ao banco de frente, como se injectando a travagem.

Chegaram 18 horas, quando o sol já envergonhado, se escondia de trás da cordilheira. Casa vasta e arejada. Kilombo, boca aberta de convidar moscas. Pena ou sorte, não havia insectos na vivenda unifamiliar de portas e janelas enredadas.

No dia seguinte, domingo, dia de família, Mangodinho e Kilombo estavam sós. À volta só aquele casarão e as árvores a dançarem com o vento, parecendo que se iam partir, mas sempre flexíveis e a deixá-lo passar. As empregadas haviam sido dispensadas.

- Não precisam vir amanhã, nem façam turno. Aqui não haverá festa e vocês podem conviver todas, cada uma com sua família. - Ordenou Ita, a dona de casa. Kilombo só na contemplação e Mangodinho quase se instalou na adega. Desde aquele episódio do "dia da janta" que já não bebia vinho como água. Maneirava gestos delicados ao servir e entornar a água tinturada ao estômago carente.

- Vamos levar umas ofertas ao lar dos órfãos e visitar os dois meninos que estão a fazer enfermagem no lar de estudantes. Comam o que quiserem que nós comeremos pelo caminho ou algo rápido à chegada. Disse Sabalo, o tio, a despedir-se do casal.

Mangodinho na cave. Vinho pedia petisco. Já tinha provado o cheiro e sabor de presunto que se achava pendurado na cozinha. Cortou pedaços e levou consigo. Kilombo pensou em fazer almoço. Embora a arca estivesse a cuspir carnes e peixe para fora, técnica de descongelar e temperar não tinha ainda. No mato ou se come fresco ou seco. O .rio termo é somente o defumado. Assim como se apresentava aquela perna de porco, curada e já sem banha. Pensou na satisfação de seu marido ver à mesa carne seca de porco sarado, molho ajindungado de tomate e funji de bombó.

- O homem, com os vinho dele na cabeça, vai me gostar ainda mais e até vai andar me convidar nas reuniões do comissariado e nas visitas ao pai. - Pensou Kilombo.

O fogão cantava contente e o lume chiava. A panela brilhava e o molho corava. Presunto duro, duro como porco que resiste à morte. Mangodinho até gostou e lambeu os beiços. Meio sério, meio alcoolizado, ligou o leitor de DC e acompanhou Robertinho no "amor canarinho", improvisando uma serenata à Kilombo. 

Ita, Vanito e Sabalo entraram sem se fazerem denunciar. Não foi a pé de galo, não. A música que Godinho ouvia e acompanhava para agradecer o repasto servido por Kilombo é que estava mesmo alta.

- Ó Zequeno (assim é também tratado no seio familiar)?! - Chamou o tio.

- Pai!

- Para petiscar, precisavas levar a perna de presunto ao meio?

- Não, pai. Comi um pouco de carne crua com aquele vinho que me indicou e a sua nora cozinhou também outro bocado para o almoço.

 Ita, Vanito e Sabalo quase morreram de risos ao saber qual tinha sido o "gostoso pitéu" de Mangodinho naquela tarde de natal.

- Funji com presunto refogado em molho ajindungado de tomate?!

segunda-feira, 1 de maio de 2017

A PAZ ENTRE O BODE E O CÃO

Conta-se: Que, em tempos idos, o cão e o cabrito viviam numa paz total. Aliás, habitavam o mesmo espaço e sob o domínio de um mesmo amo.
O cabrito, sendo herbívoro, acordava manhã cedo e punha-se a aparar a relva ao redor da casa, descansando tempos depois, quando os donos de casa, humanos, se faziam à mesa. Quem ficava na sala, de olhos para a mesa, era sempre o cão que tinha o mesmo regime alimentar do seu amo. O cabrito regurgitava e, sendo ruminante, dava forma aos alimentos que engolia antes sem boas mastigadelas.
Apesar de um frequentar o interior da casa e outro se confinar ao estábulo e ao jardim, a paz entre o cão e o cabrito era firme. Total. Chegou um dia em que os de casa decidiram viajar por uma semana. Como à volta de casa frequentavam umas lebres, Mukwamana, o dono de casa, decidiu deixar o portão aberto, de tal sorte que Kawa, o cão, tanto pudesse guardar a propriedade como caçar para saciar a sua fome. Mpembe, o cabrito, continuaria a podar a relva e, se comida lhe faltasse, também podia obtê-la fora daquele domínio.
Passaram-se dois dias. O cabrito sempre com a sua rotina: recolhia relva, levava à pança, regurgitava e voltava a deglutir, sempre sentado à sombra da cajamangueira do quintal. Kawa, por sua vez, padecia de fome. Não tinha as sobras de sempre e minguava. Tinha se esquecido até de farejar. Lá fora, sem o barulho do costume, as lebres festejavam e se procriavam.
Uma cadela rafeira, que passava por perto, ainda perguntou por que razão Kawa não ia à caça, queixando-se de fome com lebres por perto. Este respondeu que estava a espera do momento em que os testículos de Mpembe cairiam.
Passaram-se mais dois dias e a fome apertava. Mpembe sempre com a sua rotina de sempre. Quando já não podia mais viver sem comer, Kawa tentou atacar Mpembe para roubar-lhe os testículos mas este estava firme e sadio. Deu-lhe uma sacudidela e Kawa quase se estraçalhou, indo parar na rua.
Por sorte, a cadela rafeira tinha caçado uma lebre e Kawa teve de se contentar com os ossos deixados por ela. Daí em diante, Kawa e Mpembe vivem uma paz precária. Um está sempre a espera que outro se distraia para roubar-lhe os testículos, ao passo que Mpembe está sempre pronto a defender o que lhe faz ser macho.
Adaptado por Soberano Canhanga, 19.04.2017.

sábado, 15 de abril de 2017

O MUNDANO E O "MONDANO"

Conversavam cinco idosos da Kibala, todos septuagenários. Kitembu e Kanhanga frequentam a igreja desde pequenos. Conheceram-se na Escola Bíblica de Férias, o primeiro levado pelo irmão Domingos João e o segundo por Beto Pequenino. Os tutores eram também amigos desde garotos. 

Em termos de frequência da antiga Missão Evangélica Americana, hoje Igreja Metodista Unida, Kitembu nasceu mesmo na igreja, pois, quando ele veio ao mundo, seu pai já ocupava cargos na Metodista. Kanhanga começou mais tarde, aos sete anos. Iniciou-se na "Cheia", aonde fora levado por um primo, ainda no Kwanza-Sul. Chegado a Luanda, foi levado pelo tio que era da "Protestante" como também era conhecida a confissão cristã trazida pelo americano Willian Taylor. 


Kapitia e Kilole, outros dois amigos, converteram-se ao cristianismo já jovens e foram levados pelos primeiros de quem são amigos desde tenra idade. Kandungu é o único entre os cinco que, ao contrário dos quatro contemporâneos, aos domingos, troca a bíblia e o hinário pelo copo de cerveja.

Cruzaram num óbito, na Kibala, terra de origem comum. Uns nasceram em Luanda mas são de filhos Kwanza-sulinos. Outros foram a Luanda em busca de estudos e profissões e acabaram por lá ficar até aos seus dias de cabelo branco. 

Kitembu tinha perdido o irmãos mais velho e os amigos foram levar consolo. Depois do funeral, e para enfrentar um tempo friorento, os cinco amigos falavam sobre as coisas boas do mundo, aquelas que Kandungu ainda persegue cegamente, e as coisas excelentes dos Céus ou a vida ultra-tumba, que Kitembu, Kanhanga, Kilole e Kapitia procuram atingir com a sua entrega abnegada à causa de Cristo.

- Ó Kandungu, você sabe qual é a duração da vida do homem na terra? - Indagou Kitembu. Kandungu, meio surpreendido, procurava buscar uma resposta que fosse de encontro à sua idade e experiência.

Como um carro sem arranque, começou a resposta pelos soluços, enquanto coçava a barba, toda ela algodoada. - Já viu o quê que os copos faz no homem? O "ngajo" parece já esqueceu tudo. Setenta anos, que vem na Bíblia, já não sabes? - Atirou Kilole, provocante.

- Sim. São setenta anos para que o homem se sinta com força e saúde. Fora disso, a pessoa volta a ser como criança. Mesmo uma vala de metro e meio, que a gente pulava sem recuar atrás para apanhar balanço, você já não pula mais. - Complementou Kanhanga.

 - É verdade compadres. - Kitembu voltou à conversa. - E parece que aqui o mano Kandungu, que é também meu sobrinho, apesar da idade dele ser mais do que a minha, já não consegue pular nem meio metro. No sangue dele só lhe corre já espuma de cerveja!

- Ei, ó Kitembu, atenção ao respeito. Tio é tio, mas quem nasceu primeiro também merece respeito. - Reclamou Kandungu, em jeito de brincadeira. Na verdade, os cinco galhofavam.

Kapitia que até aí se mantivera apenas a seguir a conversa, ora abanando a cabeça para a frente, em jeito de aprovação do que se ia dizendo, ora fazendo-os companhia nas rizadas de mostrar o espaço deixado pelo último molar, colocou um subtema novo. - Vocês sabem qual é a diferença entre o Kandungu e nós?

- Ele bebe, nós não. No domingo, ele abraça a caneca e nós a Bíblia e o Hinário. - Responderam quase em uníssono Kitembu, Kanhanga e Kilole. Só Kandungu se manteve na defensiva. - Vocês "num" disse tudo. - Corrigiu Kapitia, 77 anos no lombo.

- Nós todos que vai "no ingreja" é mundano. Mas ele não. Ele é "mondano". Uma estupefação se apossou dos quatro, Kandungu incluído, que pretendiam saber o significado da nova palavra enunciada pelo amigo que era o mais velho do grupo.

- Ó mano Kapitia, você pode explicar "no" Kandungu o significado de mundano e "mondano"? Eu também só sei que ele é mundano porque deixou de ir "na" igreja. Tanto que lhe ando a dar conselhos, mas não me está a dar ouvidos. - Disse Kitembu solícito.

- Pois, então, oiçam bem: todos que vivem no mundo, se vai "na" igreja ou não, são mundanos. Pessoa como o irmão Kandungu, que "num" vai "na" igreja, que pecado dele se amontoa, é "mondano". O termo "mondano" vem de "mondanha" (montanha). Pecado dele é como uma "mondanha" porque ele não vai à igreja diminuir. - Kapitia terminou o seu sermão com assobios e rajadas estridentes de palmas doadas pelos amigos. 

 Assim fizeram o seu segundo serão, em homenagem a Domingos João António, até que o último galo se aposentou de cantar.

sábado, 1 de abril de 2017

MANGODINHO

Nome dele, do bairro e das amizades, é Man Zequeno, um diminutivo de José Pequeno. Mas apelido dele é mesmo Godinho, nome por que passou a ser chamado nos últimos tempos. Quando nasceu? Não se sabe. Calcula-se apenas, rebuscando as idades de seus coetâneos e daqueles que levou às costas como eu.
 

Sonho dele, de muito tempo, Man Godinho, era conhecer Luanda e fê-lo por uma razão de tristeza. As vezes em que podia vir, passear, respirar ar fresco da brisa do mar, visitar largos com jardins e repuxos, essas vezes lhe passaram. Ora era falta de passagem, ora era a ferida no pé, ora era sei-lá-o-quê.

 
Óbito na família chegada. Menina crescida desapareceu tragicamente numa sexta de praia na Ilha. Luto anunciado ao telefone da tia, no Libolo, Man Godinho veio junto. Calças: um par. Camisa, idem. Um casaco e um par de sapatos. Relógio, já sem ponteiros, no pulso, Man Godinho tipo é homem de verdade. Fez-se à estrada na carrinha enviada para os resgatar.

 
Na ngwimbi, como dizem as gentes do “nosso mato”, Man Godinho foi contemplando a grandeza das casas à volta, o falar refinado, até das zungueiras, e o andar estiloso, até dos vendedores de Kangonya. Cigarro na boca, sem estilo na mão, um fumar apressado, correndo com o cilindro que fumegava incêndio, posicionou-se num canto da rua. Ao lado, o esposo da tia com quem viajara.

 
O telefone do tio tocou. Do outro lado, dita-se um número. O tio, sem saber como anotar no aparelho, desenha os números do solo arenoso. Enquanto corre à casa, para sacar a agenda e a lapiseira, o tio incumbe:

 
- Sobrinho Zequeno, não sai daqui, eu volto já. Controla o número para que não passe carro por cima dele...

 
Man Godinho fez-se estátua. Pessoas passavam, cumprimentavam-no, ele sempre de cara para
o chão dos algarismos. Veio o vento, soprou forte. Man Godinho lágrimas nos olhos é água. Chorava a prima finada aos vinte e dois anos, quinto ano de medicina. Mas chorava também o número do telefone que o vento levou.

 
Caneta partida pela enxada, corrida às pacas e pescarias no Longa. Do chicote do professor Kakonda, herdado pelo mestre Faustino, Man Godinho apenas ténues lembranças do Bê com Â: BÂ. Técnica de redesenhar algarismos na areia movediça não tinha.

 
- Que direi quando o tio chegar?!
...

terça-feira, 14 de março de 2017

O ÚLTIMO CACHORRO DE TURBINA

Nasceu Luzia, nas imediações da Pedra Santa, no Musafu. Cedo mostrou ao mundo que veio bem prendada fisicamente, atributos que lhe valeram, ainda lactente, o epíteto de Kimbundaria. Com o andar do tempo, Luzia, nome de baptismo e bilhete, foi esquecido, sendo Turbina ou Kimbundaria os nomes por quem mais ficou famosa em Kalulu e em Luanda.
Seus pais, católicos praticantes, sempre sonharam a filha vir a vestir-se de véu e grinalda, subindo a calçada e o altar da missão. Mas, sendo ela apóstata, não foi o que receberam seus pais de presente, até ao pó retornarem. Turbina foi, durante muito tempo, mulher da vida. Na vida ganhou tudo: casa, carro, mais tarde filhos e fama de mulher-produto.
Um pouco desencoraja pela idade e pelos filhos que já colocavam questionamentos sobre os vários rostos que se faziam à casa, Turbina foi trocando a casa-loja por outras formas de vender o corpo-produto, até que os revezes económicos que o país viveu fizeram o seu negócio minguar.
Os dias de fome chegaram, os arranjos que conferiam beleza onde a idade fez razia escasseavam. As picanhas, antes recauchutadas e confortavelmente guardadas em roupas justas, entregavam-se baloiçantes ao léu como cão sem dono. Só a carroça se mantinha avantajada, embora desmazelada. No seu imaginário, a solução passaria por arranjar marido. Só que àquelas que já sobravam no tempo das vacas gordas se juntaram outras que, empurradas pela crise, acabariam demitidas da missão de concubinas ou simplesmente kapurenquanto.
- O mercado marital está agressivo. Umas coladas aos maridos que nem nesgas, umas a ser desmobilizadas e outras com vida de pedra. Como vou conseguir meu homem? Como manter cama quente? - Interrogou-se Turbina, antes de seguir à reza.
Ao voltar da igreja, daquelas que prometem o mundo e todo o recheio, apercebeu-se de um movimento estranho no segundo quarteirão do bairro. Turbina ligou as antenas e depressa se informou. Na aldeia, as notícias, boas e más, correm a passo de vento.
- A fila andou na rua de baixo.- Disse a informante, também uma coleccionadora de tesouros.
- Aquela mana de cabelo longo morreu? Aí meu Senhor?! Como fica o mano Jordão? Quem vai cuidar dos filhos pequenos? Ai sofrimento! - Turbina soltou o grito de inundar o bairro e convocar a vizinhança que chagava ainda tímida dos afazeres patronais, naquela quinta de sol ardente.
No bairro, Jordão e Turbina ou Kimbundaria já tinham trocado muitos olhares e alguns prazeres. Fora cliente dela e naquele descompasso que o êxtase provoca, chegara a propô-la casa e lar. Com dona Eunice adoentada de morte, Turbina passou a espiar a casa de Jordão, com a artimanha de visitar a vizinha, ao mesmo tempo que engolia hectolitros de cuspo, na espectativa de se acaparar do homem alheio.
Na noite de velório, Turbina, baloiçando a Kimbundaria, parecia mais preocupada com a hora do funeral, ainda incógnita, do que com a dor de Jordão que até aí fingia com destreza os seus apetites kimbundásticos.
Fingindo muita dor no peito, volta e meia distribuía perguntas dobre quanto tempo deveriam esperar para despachar Eunice à última morada e consumar-se a passagem sagrada que dita "até que a morte os separe".
O funeral foi na tarde do terceiro dia. Ao sétimo, Jordão estava mais descontraído ao passo que Turbina aumentara o cerco e com as armas em riste: um ousado decote e o arsenal turbinado de que era detentora desde menina.
A mulher conhecia os hábitos alimentares de Jordão: funji de bombó, verduras, pevide, e boa pomada. Mesmo sem delegação, e perante a passividade da parentela, Turbina fez-se comandante, dirigindo a cozinha e levando os parentes que iam chegando ao quarto em que Jordão recebia condolências.
Quando os familiares mais distantes, começavam a se dispersar, e antes mesmo de acontecer a missa do sétimo dia, aprazada pera aquela noite, cumprido o ritual mínimo de confinamento do viúvo, Kimbundaria que via a "migação" quase confirmada, planeou o ataque final
Começou por se enfrascar até tropeçar na próxima sombra. Fazendo-se passar por una espécie de protocolo, anunciando a chegada e a saída de visitantes, a mulher de nádegas e lágrimas fartas, como era conhecida, encostou-se ao viúvo e soltou o último cachorro:
- Ó mano Jordão, as visitas para a missa de logo já estão a chegar. Não acha que já é tempo para me "amigares"? Me faz só esse favor, hoko?!

Texto publicado pelo Jornal de Angola de 8/10/2017