domingo, 1 de junho de 2014

O MACHIMBOMBO DAS TRÊS

No terminal inter-provincial do Baixo-Nordeste as luzes estavam todas apagadas. Sim. Isso mesmo. Apesar de algumas lamparinas e luzitas de camiões articulados, estacionados na berma para usufruir de uma aparente segurança, a empresa e os cérebros iluminados estavam todos apagados. O guarda dormitava embriagado na caserna construída para o serviço de informação ao cliente, enquanto os demais funcionários escalados para aquela noite, já a ceder o espaço à madrugada do dia seguinte, “espalhavam sémen pelo bairro circundante ou sugavam o último calor de tetas moribundas de suas donas”. Era o que mais se ouvia, quando a pergunta fosse “onde anda o pessoal de atendimento”?
 

- Ó, meu filho, não liga. Foram todos namorar. O guarda saiu daqui há já bom tempo. Está todo enfrascado que mal consegue se erguer. - Respondeu uma senhora já de idade, repousando numa cadeira portátil de praia.

No quintal, vasto e fedorento da estação, era o chão másculo que recebia os que tinham acabado de chegar. Homens emagrecidos na viagem, mulheres com os pés engordados no machimbombo e crianças que cresceram durante as 24 horas de viagem estavam ali atirados. Todos sem informação, sem serviços mínimos para a higiene íntima, nem um chá quente sequer. Os mil quilómetros de estrada, do oeste ao leste, tinham consumido uma tarde e um dia inteiro.

- Partimos ontem, sexta-feira, pelas 17 horas, e só hoje chegamos, quando o relógio apontava já 22 horas. Tivemos uma avaria pelo caminho e o socorro demorou a chegar. A estrada também, manos, não ajuda muito. Até parece que há mais buracos na estrada do que asfalto. Então, com a chuva que choveu nesse mês que acabou na semana finda, nem vos conto … – Narrou um jovem, ainda desperto, que se juntou ao Mário e Santiago que ali se dirigiram para esperar por um colega cujo machimbombo tardava em chegar.

Santiago e Mário moravam longe da cidade. Habitavam num vilarejo interior que ficava a 40 quilómetros da urbe principal e levavam já quatro horas de espera. O passageiro em falta tinha partido as 3 horas da manhã de sábado, com chegada prevista para as 5 ou 7 da noite do mesmo dia. Era o tempo que levava a transpor os cerca de mil quilómetros entre o oeste e o leste daquele país planáltico e recortado por abundantes rios caudalosos.
No interior do quintalão, os que chegavam e os que pretendiam partir procuraram, sem sucesso, por alguma alma viva que lhes pudesse iluminar com alguma informação sobre as chegadas e partidas de machimbombos. O que os dois amigos, Mário e Santiago, encontraram eram passageiros sem hora de partida e familiares sem informações sobre a hora de chegada dos seus já desesperados parentes.
- Boa noite, senhor. Pode dar-me informação sobre as chegadas desta madrugada? – Perguntou Santiago a uma tripla de homens que esticava os troncos, encostados a um machimbombo. Já passava meia hora de domingo.
- Boa noite, meu mano. - Respondeu um dos três, o que estava melhor agasalhado. – Até já é bom dia. Já reparou o relógio? – Corrigiu, antes de responder que “não vi nem guarda, nem recepcionista, nem ‘macânico’, nem motoristas. Todos se escapuliram daqui”.
Enquanto Santiago procurava pessoas para prosear, a fim de acabrunhar o frio, Mário fazia diligências. Reparou que no outdoor colocado à frente das instalações anunciavam-se dois números de telefones.
- Vou ter de ligar para a capital ou sei lá aonde para pedir informações sobre o autocarro que partiu as 3 horas da manhã. - Disse para si mesmo, chamando depois pelo amigo.
- Santiago?
- Diz, brô[1]. Achaste alguma informação? – Questionou Santiago que batia ligeiramente à janela da casota onde se desconfiava estar o vigilante ou qualquer outra pessoa ligada à empresa de transportes rodoviários.
 
- Nada disso, Santiago. Isso aqui não tem SIC[2]. Encontrei números telefónicos do SAC[3] e vou tentar fazer ligações para quem quer que seja. Emprestas-me o teu telefone?
 Santiago abandonou, por instantes, a sua pesquisa pelo interior da estação e dirigiu-se ao amigo que se mostrava mais impaciente e mais friorento do que ele.
- Toma o telefone e prepara-te para dormitar na carrinha. Só espero que não ressones nem sonhes com a comadre... – Galhofou.
Mário discou para o primeiro número. Soletrou dígito a dígito para não se enganar 89-3-6-7-8-9-1-7-3 e a secretária electrónica respondia peremptória: “esse número está desligado ou numa área sem cobertura”. Muxoxou[4] demoradamente e tentou ainda a alternativa 12-2-6-2-1-3-5-0-4 que não saia do “pim, pim, pim, pim”… e nunca mais.
- Entreprise abeti indif! [5] – Exclamou Santiago no seu lingala[6] ainda bem conservado, apesar de duas décadas longe do Congo Kinshasa que acolheu a sua infância e juventude enquanto refugiado.
Riram-se perdidamente que quase se abraçaram. De longe, e aos olhos de estranhos, pareciam meninos da primária caminhando descontraídos para casa e com o pensamento centrado no lanche. Ao Mário e ao Santiago era o paradeiro do último machimbombo que ocupava o pensamento. Estava há já 22 horas com paradeiro incerto. A informação mais recente, recebida ainda ao meio do dia, apontava que tinha sofrido uma avaria a meio do percurso, entretanto, já socorrido por um outro enviado da Matamba.
- Santiago, vamos procurar água para lavar o rosto? – Provocou Mário.
- Tu, mas’é, queres whisky. Só que a esta hora só encontras guardas dorminhocos e fantasmas nas cantinas. – Atirou Santiago que se tinha juntado a outros dois passageiros do machimbombo chagado há poucas horas.
 - Sabem, môs kotas. - Atirou Gaspar, quarenta anos mais ou menos. – Na capital, sou operativo numa empresa de segurança. Certa vez, eu estava no meu posto e do outro lado da estrada um ‘bardeado’[7] também no posto dele. O mwadye[8], depois de passar por um tira-kawelele[9] e uma pica[10], entendeu retirar o carregador da arma e guardá-lo na sacola que tinha ao lado, colocando a lenha[11] atrás da cadeira em que adormeceu. Sabem o que lhe aconteceu?
- Não! - Responderam Mário, Santiago e o outro rapaz que lhes fazia companhia.
- Pois é. O pior estava por acontecer com o segurança que nunca foi operativo. Estão a ver aqueles miúdos que andam à toa na cidade capital, né? Os miúdos, tipo saiam duma festa, quando viram o manga[12] a roncar, tipo é IFA carregado a subir montanha, pegaram na pasta e zás. Zarparam[13] com a pasta e o carregador da mutimba[14].
- E quando o segurança acordou? – Questionou Mário cada vez mais interessado no desfecho da cena.
- Kota, aquilo é que foi o puro filme. – Prosseguiu Gaspar, embalado pela atenção que lhe era debitada. – Só vi já o mwadye a revistar toda a rua. Pegava aqui, pegava ali, espreitava acolá, revistou até o tecto da casa, mas a sacola nada.
- E tu? - Perguntou desta vez Santiago.
- Eu sempre no meu posto a travar kibidi[15] com um comando de mosquitos. – Ironizou Gaspar Kwosi Tenda, um antigo militar da revolta pós-independência. 
- E tu não o avisaste da situação? - Interrompeu mais uma vez o Mário.
- Nada, kota. Essa vida de segurança, cada um fica no seu posto. Você tem que estar concentrado apenas no objectivo que te foi dado a guardar. Mas vou continuar. Posso? – Perguntou Gaspar, buscando mais atenção para o fim da tragédia.
- Podes. Responderam desta vez os três ouvintes, formando um coro.
- Yá, kotas. A pura dica foi quando o supervisor dele chegou, na hora da renda. O gajo não sabia se inventava um assalto no posto dele, se se enterrava no chão ou se fugia. Foi despedido mesmo já ali. O supervisor mandou-o descalçar as botas, entregar a farda e os passadores e terminou o contrato.
Um silêncio momentâneo apossou-se dos quatro homens que ficaram a reflectir sobre aquele trágico desfecho da cena, embora ninguém tenha voltado a questionar. A narração de Gaspar tinha sido límpida como as águas do Longa superando curvas e pedras no seu percurso mais agitado.
No alpendre em que se acoitavam os recém-chegados do penúltimo autocarro, os monas[16] amontoados choravam e cheiravam. Aliás, estavam todos ofegantes. Há mais de 30 horas que não faziam sequer higiene íntima, exceptuando as senhoras mais avisadas e calejadas nessas andanças que levam sempre consigo garrafitas de água e toalhitas desodorizantes para afugentar os kibuzos[17] mais salientes. De resto, os homens e as mulheres acabados de chegar, e que procuravam enganar o sono naquele chão duro, cheiravam todos a gato bravo ou a mijo. Teriam de aguardar pelo novo sol dum domingo ainda embrionário para se dirigirem à casa de familiares ou pegar outro carro para o destino final.
Ainda naquele terminal de partidas e chegadas de gente proveniente de vários pontos cardeais e colaterais do pais, a criatividade da juventude habituada a viver de remendos e improvisos, tinha-os levado a baptizar o último autocarro que partira da capital, no oeste, de “o machimbombo das três”. Era o tal machimbombo que mais reunia pessoas naquela estação, dada a incerteza do seu paradeiro. Homens buscando por mulheres, mulheres buscando por maridos e ou filhos, velhotas de idade desconfiando de um acidente pelo caminho, etc. Eram permanentes os registos sobre sinistros rodoviários e as mortes nas estradas superavam todas as outras causadas por doenças conhecidas e desconhecidas. Até o paludismo, que sempre ganhou a eleição da doença mais mortal do país, tinha caído para a “segundona”.
“O machimbombo das três” já tinha notícias embargadas nas redacções dos media, aguardando apenas pela confirmação da sua desgraça ou localização distante.
- “Autocarro desaparece com mais de 60 pessoas a bordo.” - Intitulara o “Vespertino”, jornal que saia 3 vezes por semana.
- “Sangue e luto na estrada.” Escrevera o editor da “Rádio Kuribota” que detém a maior fatia da audiência na cidade.
- “Despiste (?) ceifa vidas a XX pessoas na estrada Oeste-Leste.”- Era o título da estação televisiva “Izuzumbya” que emitia em sistema aberto e que tinha já comentadores contratados para o show off de sempre.
 
Apesar de madrugada, a cidade registava um movimento anormal. Os jornalistas, sem parar, passavam de hora em hora, caçando desgraças alheias para alimentar os seus públicos. Nas redacções de notícias ensaiavam-se os títulos mais sonantes. Era disso que viviam os “mujimbeiros”[18], como lhes chamavam os mais ortodoxos da cidade de Kacongona, já cansados de notícias sem valor acrescentado. O jornalismo tinha se tornado numa profissão banal, confiado a jovens sem preparação técnica nem linguística. Até os fazedores de opinião não passavam de “spin doctors”[19]  que verbalizavam discursos de gente endinheirada e interessada em desinformar e criar uma pseudo mentalidade e identidade alheias aos princípios dos povos daquelas terras bantu.
 
Ainda sem encontrar quem os pudesse informar sobre o “machimbombo das três”, Mário, aproveitou-se duma situação que acabara de assistir debaixo dum eucalipto e contou também a sua estória para aliviar o fardo do tempo.
- Epá! Já viram o cão a urinar? Sabem por que o cão levanta a perna e a cadela baixa-se toda ao fazer as necessidades menores?
Santiago, Gaspar e o jovem que não se tinha identificado estavam curiosos e seguiam atentos a explanação do Mário.
- Conta, queremos saber. – Solicitaram quase em uníssono.
- Pois é. Conta-se que há muito, muito tempo, os cães, para além do instinto, também tinham um pouco de racionalidade. Numa casa abandonada duma fazenda, um cão e uma cadela caçavam lebres. A certa altura, a cadela sentindo-se com a bexiga cheia baixou-se junto a uma parede que já estava a ruir para urinar... (Mário fez pausa para encher os pulmões de ar fresco) … Não é que a parede caiu por cima da cadela?! O cão visionário, daquele dia em diante, passou a levantar a perna para impedir que parede nenhuma lhe venha cair por cima na hora da susa[20].
- Kiá, kiá, kiá… - Riram-se perdidamente os quatro companheiros de ocasião.
 
O tempo passava despercebido. Cada um tinha contado uma cena. Era a alternativa à falta de um placar informativo, ausência de pessoas físicas e de um televisor para entreter quem chegasse sem possibilidades de ir para casa, aqueles que esperavam por familiares e aqueles que estavam de partida mas sem informações sobre a hora de saída. Fazia frio, apesar de o cacimbo estar ainda a 96 horas do seu dia oficial. E aconteceu mesmo. Só quando os galos estavam já fartos de anunciar o novo dia, chegou o “machimbombo das três”. O dia de domingo carregava já duas horas.


 Obs: Texto publicado pelo Jornal Cultura



[1] Do inglês brother, equivalente a irmão.
[2] Serviço de informação ao cliente.
[3] Serviço de atendimento ao cliente.
[4] Fez um estalido bocal em jeito de reprovação ou desagrado (do kimbundu muxoxu).
[5] A empresa acobardou-se.
[6] Língua falada na República do Congo Democrático e por algumas comunidades angolanas.
[7] Alusão a indivíduos pouco instruídos ou sem experiência no que fazem (calão de Luanda).
[8] Indivíduo.
[9] Alusão à bebida alcoólica forte para afugentar o frio.
[10] Lyamba, maconha, marijuana.
[11] Alusão à arma de fogo sem o carregador de munições.
[12] Indivíduo.
[13] Meteram-se a lume, fugiram.
[14] Arma de fogo.
[15] Luta.
[16] As crianças, filhotes (do kimbundu).
[17] Odores fedorentos.
[18] Linguarudos (do kimbundu mujimbu).
[19] Falsos doutores com discursos encomendados.
[20] Lê-se sussa (do kimbundu ku susa=urinar).