quarta-feira, 25 de maio de 2022

De Saulhimbo a Saurimo: Prefácio

Quão bom é ser leitor primário!

Sabe o autor por que, numa imensa floresta de árvores preciosas e frondosas, como aquelas que a Lunda tem e conserva, escolheu a mais fina e aparentemente frágil. Se calhar, a escolha seja um presente, tal como enuncia numa das páginas finais desse livro -Wakwaha cawana kexi kusopha nenyi! (Não se deve discutir o valor de algo recebido de graça!)

E mais. O autor também ensina (pg. 131) que Wazeya mwe waya nyi nguali (o humilde leva a perdiz). Por isso aceitei o desafio de percorrer as páginas deste livro e mostrar, de forma resumida e convidativa, a riqueza textual e beleza estética que o mesmo encerra.

O primeiro contacto com a capa do presente livro converteu-se num espavento. Isso mesmo. A versão inicial de título apontava para algo relacionado a “Diamante e suas consequências”.

- Quer o Dr. Domingos Kajama que eu prefacie um livro sobre diamantes, mesmo sabendo que não sou perito no assunto, embora vinculado à indústria? - Não o disse, apesar de pensado.

Perscrutei a centena e meia de páginas e fui levado, numa leitura sem paragens, até ao fim, mergulhando na imensidão da Lunda, percorrendo seus caminhos e atalhos, suas ribeiras e correntezas como as do Cassai, Tchicapa e Luachimo ou emprestando o ouvido às vozes ímpares da ngoma contadora de história e estórias.

A história geral ou total de um povo ou região é, para mim, o somatório e síntese de vários relatos de acontecimentos importantes que marcam o povo de um espaço geográfico. Uma história é (ainda para mim) um constructo (inacabado), à medida que o recurso aos distintos métodos de estudo, ciências auxiliares e métodos de (re)descoberta de verdades importantes faz da Ciência Histórica um produto sempre por concluir.

Apesar de região já bastante etnografada e historiografada, o Leste de Angola é e continuará a ser, por mais tempo ainda, um study case, à medida que os historiadores se forem servindo de documentos textuais (cartas, crônicas, ofícios, diários, relatos), vestígios arqueológicos (objectos de cerâmica, construções, estátuas), representações artísticas/pictóricas (quadros, pinturas, fotos) ou registos orais (testemunhos pessoais transmitidos oralmente), entre outros.

Um dos vários aspectos relevantes, e que você poderá conferir, é o cuidado que Domingos Kajama tem com a língua, enquanto instrumento de trabalho e de comunicação. Kajama diz “conhecer e reconhecer a norma adoptada pelo Estado angolano” mas pretendeu “optar pela representação gráfica a que as pessoas estão mais habituadas” (pg. 14). E fê-lo bem, na medida em que o leitor precisa de perceber a narrativa à primeira leitura.

Outra abordagem ousada e arejada tem a ver com a necessidade de serem valorizados e (eventualmente) repostos os topónimos originais, atendendo ao seu sentido etimológico e semântico nas línguas de que são originários. Mwangeji, Lwavur, Sa Ulhimbo e Soacamombo são exemplos do muito que você vai aprender ou se recordar ao terminar a leitura deste “De Saulhimbo a Saurimo: Contributos para a história social, cultural e política da Lunda” que traz também respostas às perguntas que você terá já várias vezes colocado ou ouvido de outrem:

- Quantas vezes ouviu falar que “o povo Lunda não gosta de trabalhar”?

- Sabe quem trabalha e sempre trabalhou na extracção manual e mecanizada de diamantes?

- Que relação há entre Saurimo e a região portuguesa de Trás-Os-Montes?

- Focando-se na luta dos contrários, já pensou nas vantagens e desvantagens da descoberta e exploração de diamantes na Lunda?

O livro que Domingos Kajama nos apresenta é uma combinação de “oratura” (fonte primária para a historiografia africana) e literatura, baseada em documentos escritos.

Em “De Saulhimbo a Saurimo: Contributos para a história social, cultural e política da Lunda”, Kajama traz-nos, para além de suas vivências de uma vida inteira na Lunda e ao serviço da Lunda, aspectos que nos levam à compreensão etnográfica, geográfica, jurídica e política da região que nos mostra. O “estatuto dos vizinhos” (pg. 50) ou as integrações e disjunções entre a Lunda e Malange é exemplo de narrativa histórico-política que vale apenas ler, conhecer e compreender.

Mas Domingos Kajama escreve mais: pregoa, neste livro, o despertar do homem do Leste angolano, cuja aculturação, subjugação psico-social e política do então colonizador adormeceu o seu “eu”. O livro em suas mãos é um despertador que o leva ao passado histórico (pré-colonial), recordando-lhe a essência angolana e africana do povo e região em causa. E Kajama diz também que “… nem tudo foi mau. A Diamang procurou dedicar a sua atenção em conhecer, divulgar e preservar os valores culturais dos povos” do Leste (pg.92).

Num exercício raro, em que se combina a ciência moderna e a secular, porém sempre actual, o autor fecha o livro com a representação literária da oralidade, trazendo adágios do Leste de Angola que encerram conselhos, e alertas de vária índole e de utilidade transversal. Mais do que esses apontamentos, o meu convite é se encante no brilho deste “De Saulhimbo a Saurimo: Contributos para a história social, cultural e política da Lunda”, e percorra o livro de capa a capa, pois como nos lembra na página 143,“Kexi kwiva nyixenyi kumona!” (quem não se documenta/aconselha limita-se a ver/acatar o que lhe acontece ou dizem).

Quem conhece Domingos Kajama encontrará ainda, neste livro, um dos traços do autor: um falar vagaroso, com pausas, e assertivo.

Aliás, em todas as páginas do “De Saulhimbo a Saurimo: Contributos para a história social, cultural e política da Lunda”, Domingos Kajama parece falar em vez de escrever, ou melhor, escreve como se estivesse a contar as suas memórias/vivências: o que ouviu, o que leu, o que viveu e o que pensa, apresentando-nos um texto escorreito e convidativo, repleto de imagens, sons e ruídos (das águas, folhas e do vento) que também nos trazem mensagens.

É um livro que nos faz viajar no espaço e no tempo, apontando-nos caminhos lestos para um reencontro com a nossa identidade...

Boa leitura!

Soberano Kanyanga, Maio 2022.

 

quinta-feira, 5 de maio de 2022

UM "CARAPAU" NA CONSOLA

Era um dia de distribuição de peixe "fresco" que, na verdade, era congelado e raro em Kalulu. O ano, que quase se perde na memória, era 1988. Para quem fosse em visita, a vila estava cheia e agitada. Para nós era apenas "dia do peixe fresco" que faria diferença no almoço e na janta durante a semana. A kizaka, a kabwenya e outros condutos vezeiros estariam, por dias, em gozo de férias, dando lugar ao peixe "cozinhado", grelhado e assado, até acabar, pois poucos tinham meios de conservação.

Calhava vez sim, meses nunca, a chegada da câmara frigoríficas com peixe congelado que era distribuído pelas delegações municipais, empresas públicas, empresas privadas reconhecidas pelo governo e destes para as secções e destas aos trabalhadores.​
O autor desta prosa vivia com um primo professor primário na escola nº 3, na Banza de Kalulu. Por isso, estando ele a ministrar aulas, orientou o "irmão", que já era conhecido dos colegas, para ir à fila e receber as unidades que lhe eram "de direito". Vivia-se ainda o tempo da igualdade entre os iguais, embora havendo já diferença entre os que se mostravam diferentes do "povo em geral".​
Quem vai hoje a Kalululo, encontra, depois da Pensão da Tia Ká uma entrada. Era um largo quintal onde estacionava o camião frigorífico em que eram retiradas as caixas de carapau congelado, distribuído às delegações municipais, administrações comunais e outros organismos públicos e privados. Recebidas as malas, encontravam-se outros espaços para o retalho equitativo pelos
trabalhadores, salvaguardo o estômago largo dos delegados, comissários, chefes de secções e outros que recebiam mais do que a maioria.
Como em todos os tempos, Kalulu já tinha os pequenos "gregos" que andavam com uns artefactos de madeira com um um pico de metal com que "pescavam" nos locais de distribuição.​ Fazia sol e um pouco de poeira. Um dos grupos que procedia a abertura das malas de peixe congelado e distribuição unitária abrigava-se no passeio, debaixo da consola do edifício que comportava a EDIL (foto), hoje Pensão e restaurante. À frente estava o PCU (Posto Comando Unificado), cujas instalações acolhem o comando municipal da polícia.​

Um rapaz desconhecido controlou a desatenção dos distribuidores e receptores de carapau e, sem ser visto, pescou com o seu artefacto um peixe, colocando-se em fuga no meio da multidão.
Um kota, daqueles reguilas que não gostava de perder nenhuma contenda, pôs-se ao encalce do rapaz, desferindo-lhe um veloz pontapé que falhou no menino e acertou no vazio. O sapato, único do dikota, que era funcionário público, voou e encontrou descanso no cimo da laje consola.​ As horas que se seguiram foram para o mwadyakime encontrar uma escada que lhe permitisse reaver o pé direito do sapato castanho.
A rapaziada "pescadora" ficou dividida entre o olho no peixe e a estiga ao kota que perdera o sapato camossim​ por causa de um carapau.​ De lá em diante, os "sapatos de recreio com duas flores", que vinham da Jugoslávia, passaram a ser chamados "carapau".

Texto publicado pelo Jornal de Angola a 14.04.2022