Quão bom é ser leitor primário!
Sabe
o autor por que, numa imensa floresta de árvores preciosas e frondosas, como
aquelas que a Lunda tem e conserva, escolheu a mais fina e aparentemente
frágil. Se calhar, a escolha seja um presente, tal como enuncia numa das páginas
finais desse livro -Wakwaha cawana kexi kusopha nenyi! (Não se deve discutir o
valor de algo recebido de graça!)
E mais. O autor também ensina (pg. 131) que Wazeya mwe waya nyi nguali (o humilde
leva a perdiz). Por isso aceitei o desafio de percorrer as páginas deste livro
e mostrar, de forma resumida e convidativa, a riqueza textual e beleza estética
que o mesmo encerra.
O primeiro contacto com a
capa do presente livro converteu-se num espavento. Isso mesmo. A versão inicial
de título apontava para algo relacionado a “Diamante
e suas consequências”.
- Quer o Dr. Domingos Kajama
que eu prefacie um livro sobre diamantes, mesmo sabendo que não sou perito no
assunto, embora vinculado à indústria? - Não o disse, apesar de pensado.
Perscrutei a centena e meia
de páginas e fui levado, numa leitura sem paragens, até ao fim, mergulhando na
imensidão da Lunda, percorrendo seus caminhos e atalhos, suas ribeiras e correntezas
como as do Cassai, Tchicapa e Luachimo ou emprestando o ouvido às vozes ímpares
da ngoma contadora de história e
estórias.
A história geral ou total
de um povo ou região é, para mim, o somatório e síntese de vários relatos de
acontecimentos importantes que marcam o povo de um espaço geográfico. Uma
história é (ainda para mim) um constructo (inacabado), à medida que o recurso
aos distintos métodos de estudo, ciências auxiliares e métodos de (re)descoberta
de verdades importantes faz da Ciência Histórica um produto sempre por
concluir.
Apesar
de região já bastante etnografada e historiografada, o Leste de Angola é e
continuará a ser, por mais tempo ainda, um study
case, à medida que os historiadores se forem servindo de documentos
textuais (cartas, crônicas, ofícios, diários, relatos), vestígios
arqueológicos (objectos de cerâmica, construções, estátuas), representações
artísticas/pictóricas (quadros, pinturas, fotos) ou registos orais (testemunhos
pessoais transmitidos oralmente), entre outros.
Um dos vários aspectos
relevantes, e que você poderá conferir, é o cuidado que Domingos Kajama tem com
a língua, enquanto instrumento de trabalho e de comunicação. Kajama diz “conhecer e reconhecer a norma adoptada pelo
Estado angolano” mas pretendeu “optar
pela representação gráfica a que as pessoas estão mais habituadas” (pg.
14). E fê-lo bem, na medida em que o leitor precisa de perceber a narrativa à
primeira leitura.
Outra abordagem ousada e
arejada tem a ver com a necessidade de serem valorizados e (eventualmente) repostos
os topónimos originais, atendendo ao seu sentido etimológico e semântico nas
línguas de que são originários. Mwangeji, Lwavur, Sa Ulhimbo e Soacamombo são
exemplos do muito que você vai aprender ou se recordar ao terminar a leitura deste
“De Saulhimbo a Saurimo: Contributos
para a história social, cultural e política da Lunda” que traz também
respostas às perguntas que você terá já várias vezes colocado ou ouvido de
outrem:
- Quantas vezes ouviu
falar que “o povo Lunda não gosta de trabalhar”?
- Sabe quem trabalha e
sempre trabalhou na extracção manual e mecanizada de diamantes?
- Que relação há entre
Saurimo e a região portuguesa de Trás-Os-Montes?
- Focando-se na luta dos
contrários, já pensou nas vantagens e desvantagens da descoberta e exploração
de diamantes na Lunda?
O livro que Domingos
Kajama nos apresenta é uma combinação de “oratura” (fonte primária para a
historiografia africana) e literatura, baseada em documentos escritos.
Em “De Saulhimbo a Saurimo: Contributos para a história social, cultural e
política da Lunda”, Kajama traz-nos, para além de suas vivências de uma
vida inteira na Lunda e ao serviço da Lunda, aspectos que nos levam à
compreensão etnográfica, geográfica, jurídica e política da região que nos
mostra. O “estatuto dos vizinhos” (pg. 50) ou as integrações e disjunções entre
a Lunda e Malange é exemplo de narrativa histórico-política que vale apenas
ler, conhecer e compreender.
Mas Domingos Kajama
escreve mais: pregoa, neste livro, o despertar do homem do Leste angolano, cuja
aculturação, subjugação psico-social e política do então colonizador adormeceu
o seu “eu”. O livro em suas mãos é um despertador que o leva ao passado
histórico (pré-colonial), recordando-lhe a essência angolana e africana do povo
e região em causa. E Kajama diz também que “…
nem tudo foi mau. A Diamang procurou dedicar a sua atenção em conhecer,
divulgar e preservar os valores culturais dos povos” do Leste (pg.92).
Num
exercício raro, em que se combina a ciência moderna e a secular, porém sempre
actual, o autor fecha o livro com a representação literária da oralidade,
trazendo adágios do Leste de Angola que encerram conselhos, e alertas de vária
índole e de utilidade transversal. Mais do que esses apontamentos, o meu
convite é se encante no brilho deste “De
Saulhimbo a Saurimo: Contributos para a história social, cultural e política da
Lunda”, e percorra o livro de capa a capa, pois como nos lembra na página
143,“Kexi kwiva nyixenyi kumona!” (quem
não se documenta/aconselha limita-se a ver/acatar o que lhe acontece ou dizem).
Quem conhece Domingos Kajama encontrará ainda, neste
livro, um dos traços do autor: um falar vagaroso, com pausas, e assertivo.
Aliás, em todas as páginas do “De Saulhimbo a Saurimo: Contributos para a história social, cultural e política da Lunda”, Domingos Kajama parece falar em vez de escrever, ou melhor, escreve como se estivesse a contar as suas memórias/vivências: o que ouviu, o que leu, o que viveu e o que pensa, apresentando-nos um texto escorreito e convidativo, repleto de imagens, sons e ruídos (das águas, folhas e do vento) que também nos trazem mensagens.
É um livro que nos faz viajar no espaço e no tempo, apontando-nos caminhos lestos para um reencontro com a nossa identidade...
Boa leitura!
Soberano Kanyanga, Maio 2022.
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