segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

A VIDEIRA E O EUCALIPTO

 (Um conto para a Lúcia Joelle Canhanga)

Desafiavam-se dias, tardes e noites durante doze anos.
- Ao pé de mim ninguém cresce. - Dizia o eucalipto ameaçador.
- Com o tempo, irei aonde eu quiser. - Desafiava a videira trepadeira.
Plantados no mesmo recinto e no mesmo ano pelo tio Mukalakadi, o eucalipto rápido assumiu o papel de ÁRVORE MAIOR. Era quem mais crescia, abafando as ervas e outras plantas que pretendiam firmar-se ao seu lado. Cresceu tanto que aos cinco anitos já era visto a dez quilómetros, dada a sua elevada altura.
Lento, horizontal e progressivo seguiu o pé de videira, deixando pelo caminho saborosas uvas que alimentavam os meninos do quintal, os pássaros e os cágados que eram os animais de estimação do tio Mukalakadi.
Com o tempo, a videira alcançou o arame farpado que encimava o muro e, sem pressa, se foi esticando até alcançar o eucalipto por um braço encostado ao muro do quintal.
- Cá estou eu. Duvide mais que não chagaria a ti. - Disse a videira entregando-se alegre ao sol.
- Deixe de me sufocar com tuas garras. - Reclama todos os dias o eucalipto que passa a vida a se sacudir para ver-se livre da videira.
É que o tio Mukalakadi já notou que os dois se tornam atractivos para os pássaros que já constroem ninhos nos ramos do eucalipto. Era algo antes impensável.

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

SOBRAS DA GUERRA AO OLHO DE SOBERANO KANYANGA

 

Prefácio a:

Sobras da guerra – segunda edição - de Ismael Mateus

 

A História, “relação entre duas instâncias: o sujeito cognoscente e o objecto a ser conhecido” (Heródoto 484 a.C.-425 a.C.) manda-nos registar os traços e acções marcantes de cada época das colectividades humanas, podendo esse registo ser feito de forma directa, usando-se, para o efeito, documentos, metodologia científica e registo histórico ou ser feito de forma indirecta, usando-se, enquanto fontes alternativas à narrativa histórica, a crónica, a literatura, a oratura e outras formas conhecidas e aplicáveis. É ela, a História, que nos faz conhecer o passado, em suas múltiplas dimensões humanas, compreender o estágio hodierno e corrigir/melhorar ou repetir o passado. 

 

Em Sobras da guerra, Ismael Mateus faz-nos, por via do traço literário e conhecimento de imensas realidades do seu tempo, percorrer o último quartel do século XX e as duas décadas do século XXI, podendo os episódios ser situados em cidades e vilas angolanas onde a burocracia, o narcisismo, o clientelismo e a subversão de valores se impuseram, assim como nos subúrbios e campos onde o conflito armado das distintas guerras angolanas fez dos homens meros objectos. E que objectos?! 

Ao folhear o livro, o leitor sentir-se-á como se tivesse adentrado uma sala de cinema a oferecer-lhe conteúdos multitemáticos que se estendem do: 

a.      libido-amoroso: “Chamava-se Zaida Ferreira Dala e ninguém sabia donde era, nem como de um dia para o outro ocupara aquela casa de quintal e muros altos …. Era uma mulher carnuda, de grandes peitos de almofada e uma bunda fora do comum. Ao andar, as suas fartas nádegas dialogavam uma com a outra… Nós, os miúdos do bairro, esperávamos pelas suas aparições matinais e ao entardecer para apreciar o canto do seu andar…” 

b.     policial: “Ao longo da intensa formação de três anos ao lado do chefe Sousa, tinha andado pelos becos e estradas mais perigosas da cidade. Tinha enfrentado gatunos, bandidos armados e fechado bares nocturnos de má fama. Tinha conquistado também o meu quinhão na fama de incorruptível, ganha pelo chefe Sousa… recebi com naturalidade a indicação para um caso tão importante, que envolvia dinheiros e a possibilidade real de suborno dos investigadores. 

Ismael Mateus, conta-nos ainda como alguns se foram “safando”, com esquemas e compadrios, fugindo disso e conseguindo aquilo, numa aversão ao que a lei de então e a consciência colectiva demandavam indistintamente dos cidadãos. 

·         Mas o pai sabe que não posso trabalhar sem o documento militar! 

·         Não te preocupes, o meu amigo sabe. Lá não é preciso. Vai lá amanhã e fala com o inspetor Jacinto… 

c.      Acção pura: O livro traz-nos também recortes que nos fazem reviver a história militar recente de Angola, com os ardilosos “comandantes de Lembá” e de outraS bases tantas a ceifarem vidas inocentes, na ânsia de juntar patacas fáceis. Sem olvidar a festa pela morte alheia, como se viveu num ano não muito recuado, trago Erich Hartman que atesta que “a guerra é um lugar onde jovens, que não se conhecem e não se odeiam, se matam, por decisões de velhos que se conhecem e se odeiam, mas não se matam.” Com certeza, tivemo-la e vamos tendo outras guerras silenciosas, também violência e mortíferas.

Em Sobras da guerra, o autor serve-nos o grito de um pai, Abel Puri, que, como muitos, perdeu os seus e a esperança, gritando de vento em vento “… Quem vai-me enterrar?” ou um afoito JP que, em busca de justiça açaimada, ganha o cognome de “inimigo do Estado”.

Quem, afinal de contas, leva o Estado a castigar os “poderosos” de ocasião e defender os injustiçados, devolvendo-lhes uma nesga de luz e de esperança, enquanto integrantes de uma mesma sociedade e terra em que nascemos e nos há de receber?

A inquietude do cidadão e escritor é recorrente e vem desde o “Bué de Bocas” e ou “Recados ao (seu) chefe” que desfilaram em ondas hertzianas e “papiro”. Ismael Mateus é, por natureza, um denunciante de anormalidades sociais e, neste livro, lança um desarrimo a comandantes e responsáveis pirrescos,  à acomodação criminosa de gente de má índole nas estruturas do Estado, órgãos de defesa e segurança e nos distintos escalões da administração pública, aniquilando, subjugando as vítimas (das opressões modernas), promovendo e endeusando os carrascos.

Numa altura em que o supérfluo e periférico ganham o altar e os media nos brindam, dias sim e semanas também, com a execrável sacralização de atentados à moral pública e a exaltação de polícia-político-predador, em detrimento do trabalho e do mérito, pouco mais nos resta senão buscar o consolo que, a mim, Ismael Mateus dá, ao apresentar-nos Sobras da guerra, e encontrar nela a inspiração em exemplos encorajadores fundados no profissionalismo de Sérgio Romão, na grandeza e fineza de Rita ou ainda na honradez de António Costa, como sinal de que nem tudo anda perdido. A moralização, a punição e a administração de uma justiça que não olhe a castas impõem-se e pedem luta tenaz de todos os cidadãos dignos desse tratamento.

É por estas e muitas outras razões que - vai, certamente, descobrir no livro – recomendo, vivamente, a leitura desta obra e a sua elevação a documento de consulta complementar sobre a História recente de Angola.

 

Soberano Kanyanga, Sevilha, Outubro de 2022