Prefácio a:
Sobras
da guerra – segunda edição - de Ismael Mateus
A História, “relação entre duas
instâncias: o sujeito cognoscente e o objecto a ser conhecido” (Heródoto 484
a.C.-425 a.C.) manda-nos registar os traços e acções marcantes
de cada época das colectividades humanas, podendo esse registo ser feito de
forma directa, usando-se, para o efeito, documentos, metodologia científica e
registo histórico ou ser feito de forma indirecta, usando-se, enquanto fontes
alternativas à narrativa histórica, a crónica, a literatura, a oratura e outras
formas conhecidas e aplicáveis. É ela, a História, que nos faz conhecer o
passado, em suas múltiplas dimensões humanas, compreender o estágio hodierno e
corrigir/melhorar ou repetir o passado.
Em Sobras da guerra, Ismael Mateus faz-nos, por via do traço literário e conhecimento
de imensas realidades do seu tempo, percorrer o último quartel do século XX e as
duas décadas do século XXI, podendo os episódios ser situados em cidades e
vilas angolanas onde a burocracia, o narcisismo, o clientelismo e a subversão
de valores se impuseram, assim como nos subúrbios e campos onde o conflito
armado das distintas guerras angolanas fez dos homens meros objectos. E que
objectos?!
Ao folhear o livro, o leitor sentir-se-á como se tivesse
adentrado uma sala de cinema a oferecer-lhe conteúdos multitemáticos que se
estendem do:
a. libido-amoroso:
“Chamava-se Zaida Ferreira Dala e ninguém sabia donde era, nem como de um dia
para o outro ocupara aquela casa de quintal e muros altos …. Era uma mulher
carnuda, de grandes peitos de almofada e uma bunda fora do comum. Ao andar, as
suas fartas nádegas dialogavam uma com a outra… Nós, os miúdos do bairro,
esperávamos pelas suas aparições matinais e ao entardecer para apreciar o canto
do seu andar…”
b. policial:
“Ao longo da intensa formação de três anos ao lado do chefe Sousa, tinha andado
pelos becos e estradas mais perigosas da cidade. Tinha enfrentado gatunos,
bandidos armados e fechado bares nocturnos de má fama. Tinha conquistado também
o meu quinhão na fama de incorruptível, ganha pelo chefe Sousa… recebi com
naturalidade a indicação para um caso tão importante, que envolvia dinheiros e
a possibilidade real de suborno dos investigadores.
Ismael Mateus, conta-nos ainda como alguns se foram “safando”, com esquemas
e compadrios, fugindo disso e conseguindo aquilo, numa aversão ao que a lei de
então e a consciência colectiva demandavam indistintamente dos cidadãos.
·
Mas o pai sabe que não posso
trabalhar sem o documento militar!
·
Não te preocupes, o meu amigo
sabe. Lá não é preciso. Vai lá amanhã e fala com o inspetor Jacinto…
c.
Acção
pura: O livro traz-nos também recortes que nos fazem reviver a história militar
recente de Angola, com os ardilosos “comandantes de Lembá” e de outras bases
tantas a ceifarem vidas inocentes, na ânsia de juntar patacas fáceis. Sem
olvidar a festa pela morte alheia, como se viveu num ano não muito recuado, trago
Erich Hartman que atesta que “a guerra é um lugar onde jovens, que não se conhecem
e não se odeiam, se matam, por decisões de velhos que se conhecem e se odeiam,
mas não se matam.” Com certeza, tivemo-la e vamos tendo outras guerras
silenciosas, também violentas e mortíferas.
Em Sobras da guerra, o autor serve-nos o grito de um pai, Abel Puri,
que, como muitos, perdeu os seus e a esperança, gritando de vento em vento “…
Quem vai-me enterrar?” ou um afoito JP que, em busca de justiça açaimada, ganha
o cognome de “inimigo do Estado”.
Quem, afinal de contas,
leva o Estado a castigar os “poderosos” de ocasião e defender os injustiçados,
devolvendo-lhes uma nesga de luz e de esperança, enquanto integrantes de uma
mesma sociedade e terra em que nascemos e nos há de receber?
A inquietude do cidadão e escritor é recorrente e vem desde o “Bué
de Bocas” e ou “Recados ao (seu) chefe” que desfilaram em ondas hertzianas e
“papiro”. Ismael Mateus é, por natureza,
um denunciante de anormalidades sociais e, neste livro, lança um desarrimo
a comandantes e responsáveis pirrescos, à acomodação criminosa de gente de má índole
nas estruturas do Estado, órgãos de defesa e segurança e nos distintos escalões
da administração pública, aniquilando, subjugando as vítimas (das opressões
modernas), promovendo e endeusando os carrascos.
Numa altura em que o supérfluo e periférico ganham o altar e os media
nos brindam, dias sim e semanas também, com a execrável sacralização de
atentados à moral pública e a exaltação de polícia-político-predador, em
detrimento do trabalho e do mérito, pouco mais nos resta senão buscar o consolo
que, a mim, Ismael Mateus dá, ao apresentar-nos Sobras da guerra, e encontrar nela a inspiração em exemplos encorajadores fundados no
profissionalismo de Sérgio Romão, na grandeza e fineza de Rita ou ainda na honradez
de António Costa, como sinal de que nem tudo anda perdido. A moralização, a
punição e a administração de uma justiça que não olhe a castas impõem-se e pedem
luta tenaz de todos os cidadãos
dignos desse tratamento.
É por estas e muitas outras razões que - vai, certamente, descobrir no
livro – recomendo, vivamente, a leitura desta obra e a sua elevação a documento de consulta complementar
sobre a História recente de Angola.
Soberano Kanyanga, Sevilha, Outubro de 2022.
Prontos, assim, com este prefácio, vou procurar o livro, quero me sentir como tivesse adentro do cima.
ResponderEliminarConfesso, com este prefácio, levantou curiosidade em levar as temáticas: libido-amoroso e acção pura.
*errata:
ResponderEliminarcinema e não cima.
Ler e não levar