Nasceu algures. Longe no tempo e na geografia. A Lunda foi terra de desterro, no tempo dos contratos camuflados, pagos com fuba rejeitada, peixe podre e porrada, se refilasse. Kaputu estava no poder e o mumbundu de abaixo da vida de um cão colonial morto de sarna.
Vila Luso e Vila Teixeira de
Sousa são os únicos nomes de terras distantes de que se lembra. A sua embala,
no planalto do Vye, é desconhecida do mapa mundi e por mais que a grite
ninguém dela tem memória. Longe da terra, dos pais e dos folguedos de juventude
mutilada, passeiam-lhe no pensamento apenas os pássaros, as danças à volta da
fogueira com aquelas kafeko de seios encajuados e o cheiro da chuva. Sim, o
cheiro da chuva caída na madrugada do dia da desgraça.
Pelo Luso apenas passou quando fez
a sua primeira viagem naquele comboio movido a brasas de eucaliptos. Pela
Teixeira de Sousa apenas parou para ser acorrentado ao pescoço com outros
vyenos e conduzidos à Bed Ford que os levou à vila Henrique de Carvalho, escala
para Portugália, numa empresa de diamantes.
- Meus akunlu, meus
antepassados, meus espíritos - cantava dia e noite quando folga houvesse – mostrem-me
onde estou e que caminho devo tomar para regressar ao kimbu.
Os amigos, outros contratados mbalundu, alcunharam- -no de «Cinco Litros». Seu nome, Katimba Kevala, há muito tinha caído no esquecimento. Na roça, na mina ou em casa de um patrão ocasional, carregando picaretas ou cascalho, Katimba Kevala levava sempre uma mochila às costas, na qual estava alojado um garrafão de cinco litros repleto de kacipembe ou walende. Uma cortiça evitava a evaporação e o entorno do destilado que lhe chegava à boca através de uma canalização arrojada.
Um dia, quando chamado para
capinar o terreno à volta do posto de socorro da Companhia Kamanga, encontrou
já umas tubagens minúsculas que servem para canalizar o soro fisiológico.
Chegado à casa, juntou a arte ao
engenho e do garrafão alojado na mochila à sua boca foi meio caminho. Qualquer
biscate em casa de gente com dinheiro servia para abastecer o seu garrafão de
cinco litros.
Aguentou os dois anos de
contrato, uma forma de moderna escravatura luz-e-tana, como peça de trabalho
força- do. A dureza do acampamento fê-lo construir uma palhota com duas
divisões: o dormitório e outro que chamava de cozinha. Na verdade, não passava
de quatro paus planta- dos no solo, um tecto de capim e uns ramos barreados que
travavam os bichos acossados pela chuva e os ventos mais violentos do Nordeste.
Resistiu às mulheres mais
adornadas da região e às kaxinakaji carentes de calor. O seu calor era o
conteúdo do seu garrafão de cinco litros. Esse sim, era o seu melhor amigo e
consolo em dias de má memória.
Embora ferido na carne e na
mente, Katimba Kevala guardou sempre o sonho de liberdade, a esperança de ver
os seus semelhantes na posição dos brancos que mandavam, que queixavam à
administração, que batiam de forma indiscriminada, que faziam do corpo do negro
seu saco de treinos. E fez um plano.
-No dia do pagamento. Ekumbi lyo
kufeta ekumbi lyange. (O dia do pagamento é o meu dia). E comprarei
caçadeiras e pólvora. E inverteremos as bandejas. Treparemos montanhas.
Gritaremos alto também. Era sua canção encriptada em língua gentílica. Poucos a
sabiam decifrar.
Os homens trazidos pelo comboio
estavam visivelmente esgotados e as mortes eram notícia constante. A farmácia
já registava uma gritante carência de antibióticos e, mais dias menos dias,
aquela colónia estaria sem homens. A companhia decidiu chamar o intermediário,
também conhecido como contratante, para pagar os escravos e levá-los de
volta. Em substituição pediu homens fortes. Mbalundu jovens que não tenham
desperdiçado vidas no walende ou kangonha. Lopes da Sé, o funante para seus
conterrâneos, era o homem que percorria as al- deias interiores com cipaios à
caça de nativos, cuja força de trabalho vendia aos belgas e ingleses da
Companhia Kamanga. Foi chamado pela companhia para receber a paga: a sua e a
dos serviçais mbalundu.
Cinco Litros tinha acabado de
chegar do alambique quando foi avisado que o pagamento e o regresso estavam
para dias. Colocou-se junto ao muro do quintal de Lopes da Sé que não demorou
em chamá-lo para arrumar as imbambas que levaria à nova missão de rapina.
«Cinco Litros» atento ao trabalho
e aos detalhes do que ia acontecendo em casa do luz-e-tano Lopes da Sé,
assistiu à chegada da mala de dinheiro que o angariador de escravos modernos
escondeu de baixo da cama. Findo o trabalho, fingiu despedir-se e rumar à sua
palhota. Mas apercebendo-se da saída de Lopes para festejar a mala cheia e
tomar umas imperiais com o primo que chegara da metrópole, Cinco Litros abeirou-se da casa e fez-se cama abaixo, levando para um esconderijo que abrira
na sua cozinha a apetecível mala do pagamento.
A noite foi de rusgas e
interrogatórios. Todos os contratados e empregados livres estavam sob o olho da
pidesca judiciária. As saídas foram suspensas e as compras nas lojas sob o olho
atento do comerciante que tinha um menino pronto para avisar a polícia. Os que
apresentassem notas de cem angolares eram automaticamente despojados do valor e
encaminhados à administração, onde eram recebidos com valentes palmatórias até
descobrirem o que não fizeram.
Cinco Litros manteve-se tranquilo. Foi gastando as no- tas inferiores nos seus alambiques, uma a uma.
As maiores levar-lhe-iam a cumprir o sonho guardado a sete chaves. Fazia o seu
trabalho diário e nunca a polícia desconfiou dele. Viveu à grande, na sua pequenice,
mês e meio, até que as cédulas inferiores se esgotaram. Aos seus consortes
dizia apenas que estava a "gastar o fruto do seu trabalho durante dois
anos de penúria.
-Estou a consumir o meu sangue e
o suor de anos de escuridão.
Ninguém o levava a sério, dado o
seu estado de kacipembado permanente.
Sem dinheiro miúdo, Cinco Litros
levou uma cédula de cem angolares ao alambique de Kexilemba, mulher respeitada
na Lunda. Pediu para que a trocasse em notas miúdas que gastaria inteirinhas na
sua destilaria.
-Vou tentar – Concordou a mulher,
católica praticante e temente ao Deus trazido pelos colonos.
A mulher tentou e acabou detida. Os seus negócios conhecidos pelos brancos da companhia permitiram sus sol tura. Mas a nota retida ficou.
Era sábado. Lopes da Sé e o administrador Xavier Martins estavam insatisfeitos em ver o tempo passar sem
que uma pista sobre a mala do pagamento tivesse sido encontrada. Um padre bufo
foi recrutado sacristia adentro. Kexilemba, domingueira, foi ao
confessionário do padre pide.
- Filha de Deus, como vão seus
negócios? - perguntou o padre pidesco, procurando conversa.
- Os ningócio vai bem, sô padre.
- Então conta-me quantas notas de
cem angolares recebeste nesta última semana.
- Só uma, sô padre.
- E de quem recebestes os ricos
angolares? É voz de Deus que te pergunta, minha filha.
- É do Cingo Litro, sô padre...
Enrolada pelo padre, Kexilemba o
segredo do dinheiro contou. E seu irmão entregou.
Cinco Litros foi amarrado e
deitado sobre a roda da Bed For. A sua sorte estava dependente do resultado do
desbarate que sofreria sua casa.
Homens fortes, provenientes doutra
margem do Luachimo, foram enviados à palhota do infeliz. Arrancaram o colmo e
nada. Desplantaram os troncos e nada. Enxadas, picaretas e pás um metro de
terra removeram.
À primeira picaretada a relva foi
aos ares.
- Fogo! Fogo! Lenge-no!
Correram os menos corajosos e
pasmaram-se os mais destemidos. O contacto entre metais, picareta e mala me-
tálica do pagamento fez estalar uma fagulha. Estava descoberto o segredo.
Lopes da Sé encarregou-se ele
mesmo de desembraiar a Bed Ford e despedaçar -Cinco Litros, cujo corpo foi
alimentar os répteis famintos do Luachimo.
Não se sabe exactamente há quanto
tempo ocorreu isso, mas até hoje sua fama ainda corre o leste e o trecho do rio
em que foram jogados seus pedaços é conhecido como a lagoa do Cinco Litros.
Nota: adaptação de uma estória
contada pelo ancião Jorge Lopes, em Mwono Waha, Saurimo, a 11 de Novembro 2014.
Publicado pelo Jornal Cultura de 15.03.2023
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