domingo, 20 de dezembro de 2015

A POBREZA QUE O TUGA FINGE NÃO VER


Nos meses de Março, Abril e Maio, Portugal, e concretamente Lisboa, é uma cidade muito iluminada. Não porque noutras estações do ano falte luz ou energia eléctrica como aqui (Angola). Não. É o sol que se prolonga, para além do raiar que é madrugador. E quando o sol não se põe ao Atlântico, o angolano ou africano recém-chegado às terras de Vaz de Camões tem dificuldades em buscar a quentura dos colchões e lençóis que o aguardam no hotel ou noutra albergaria.

No centro da cidade de Lisboa, o El corte Inglês, a Praça de Espanha, a Fundação Gulbenkian e outras paragens que incluem restaurantes, bares e tascas para “frascos” (imperiais e pomadas) e cafés são referências quase que obrigatórias para visitas periódicas e diárias.

Há porém quem pretenda viver um feriado, visitando os enormes centros de compras ou mesmo, vestido à paisana, enfrentar a enchente na Praça do Relógio (uma espécie de Roque Santeiro organizado). Só que não tarda, a repetição mata o espanto e a preferência começa a ser a cidade subterrânea, o metropolitano de Lisboa, com a sua grandiosidade crescente, que nos remete há alguns séculos de atraso se não corrermos a bom passo e com qualidade.

Aqui, no metrô, surge então a importância do mapa de Lisboa, ou seja, dos transportes públicos da cidade. O Metrô, com as suas quatro linhas: a vermelha-Alameda/Oriente; a verde -Cais do Sodré/Telheiras; a azul -Baixa-Chiado/Amadora Este e a linha Amarela que vai do Rato a Odivelas é meio de transporte público mais procurado, quer por nacionais quer pelos turistas, levando-os aos mais recônditos sítios da capital lusa, às vezes, com os préstimos do comboio de superfície, das carreiras, do táxi e até de amigos. É para tal que existem os amigos, quanto mais não seja para pôr a "fofoca" em dia.

- Comué na banda, tá-se? - Pergunta o Pedro, 20 anos na tuga e sem meios ainda para regressar. Finge um sotaque lisboeta mas nota-se no encadeamento das palavras a fraqueza do vocabulário e a mistura entre português lusitano e um calão já arcaico deixado no auge da sua criação em Luanda.

- Yá! vive-se. Há crescimento.  - Responde-lhe o amigo João Manuel, turista de ocasião que frequenta uma formação profissional de duração intermédia.

E o teu regresso? – Ataca João Manuel, procurando encontrar uma resposta convincente sobre a sua estada na antiga metrópole, numa altura que até os tugas se colocam na fila da frente para atacar as terras deixadas em 1975.

- A minha volta? Daqui há nada. É só tempo de reunir uns farrapos e completar a mobília. – Justifica-se, enroladamente, Pedro que, ao que se diz, já dormita debaixo duma ponte quando não é a sobra da estátua dos heróis que o abrigam em tardes de sol abrasador.

São essas as conversas nos cafés e noutras andanças entre os que vão a Portugal em missão turística, estudos ou de trabalho e os que lá ainda estão nas bumbas precárias, nas pedreiras ou nos bares.

Pedro, um jovem nascido no Cazenga e que nas refregas de 1992 entendeu vender à socapa a cubata da mãe e emigrar para a tuga, que na altura “batia” é um dos que, envergonhados por nada terem amealhado durante o tempo de vacas gordas por lá e balázios por cá, enterraram a vida na copofonia para enfrentar o frio. Erguem hoje terras alheias a troco de migalhas, que dizem ser bem maiores do que aquilo que nos vai ao prato aqui no país, algo que até o pior dos cegos já vê e desmente.

Ainda na Tuga, é no metropolitano de Lisboa que a África se casa com a Europa civilizada. Em cada paragem, o modo poético de estar europeu é sempre cortado ou pela brutalidade de um homem do leste europeu que ignora a leitura dum jornal, preferindo a fala, ou pela harmónica de um pedinte qualquer. E os pedintes que aumentam dia após dia, são homens de todas as idades e sexos.

Na linha azul do metropolitano, por exemplo, é presença obrigatória a de um cão kabiri, aparentando apenas dez semanas, viajando em ombro forte dum rapaz também nos seus dez anitos que chama a atenção de quem é atento a essas coisas. O silêncio corta até os murmúrios dos africanos sempre dispostos a debates. O rapaz faz chorar a harmónica com o farfalho de seus dedos. Não tarda, chovem moedas no copo descartável amarrado ao instrumento musical. A cena se transfere para a carruagem seguinte, e a pobreza ruma até à morte.

Os africanos mudam de linha mas a estória continua. A peça seguinte é executada por dois adultos de grande compleição física. Dir-se-iam, no nosso linguajar, “caenches” de primeira hora. Um leva no colo uma guitarra e o outro uma harmónica. Soa um fado e os portugueses são os primeiros a aliena-los com moedas. De repente, irrompe uma voz incómoda entre os africanos.

- Não há por cá subsídio de desemprego?

À pergunta se segue o silêncio e só as moedas falam no copo. A moda antiga de dar pão ao pobre ou uma sopa morreu. Era uma vez. Passou à história. Ao menino que se devia dar uma escola, pois o pepino ainda pode ser torcido, dão-se moedas e todos aderem até os Padres que se fazem transportar na carruagem. A formação profissional é negada aos jovens desempregados a troco de um fado barato e ainda dizem que problemas como estes só estão em África. Todos vêm, mas fingem não estar atentos ao que lhes queima a barba, porque só o Marburg em Angola é preocupação, só a Dengue em Timor ou cólera em São Tomé matam. Ninguém quer ver. E lá se vai o metropolitano com uma estória que já virou história.

Todos os dias em todas as paragens, o mesmo cão no ombro do mesmo rapaz, o mesmo fado na mesma carruagem e o mesmo dinheiro.
NB: Crónica (ainda actual) escrita em Lisboa, a 4 de Maio 2005. Publicada a 18 de Abril de 2015 no Semanário Angolense.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

REVISITANDO A HISTÓRIA E A TRADIÇÃO ORAL

Nkidyafuka: é o vocábulo bakongo que designa quem tem dívida há muito por pagar ou impagável. Essa condição em que se encontrava o meu primo Segunda João, a quem que ajudei a criar, levou-me a Mbanza Kongo, percurso de mais de 450 Km por terra, em estrada ainda bem cuidada, para o seu pedido de noivado, transformado em "casamento" na tradição bakongo.
- Na conservatória podem ir apenas os dois que se casam e os amigos, como também nunca se nega a separação. Para nós bacongo, esse é o nosso casamento. Envolvemos os familiares no acto e quando nos vêm comunicar separação, nós dizemos sentam ainda aqui, vamos conversar. É esse o casamento seguro, o que envolve as famílias. - Declarou o tio-sogro, no momento dos conselhos e recomendações.

Entre colinas que escoam abundante água pluvial para riachos e canais temporários, cresce o mosaico habitacional, destacando-se o tijolo (cor do adobe queimado e) que confere resistência e longevidade aos imóveis.
Para quem como eu não ia a Mbanza Kongo há dez ou mais anos, a cidade cresceu em tamanho e qualidade de vida dos seus habitantes: há mais casas e edifícios erguidos na vertical, há mais asfalto, largos e novos monumentos e, acima de tudo, mais sorrisos nos rostos das pessoas, longe do que um jornalista gozão tratou, em Abril de 2005, por "cidade de rua e meia".

A receber quem chega de Luanda está um monumento que representa o topónimo do antigo reino: um caçador (nkongo), munido de kanyangulu, outros instrumentos menores de caça, um valente cão (também necessário ao caçador) e acompanhado por uma senhora que leva os víveres e que, com certeza, confecciona a jinginga servida ao jantar.
Mas estou ainda no Ambriz, norte do Bengo, a caminho do Zaire, parado num posto de abastecimento de combustíveis, aproveito prosear:
- Mana, boa tarde!
- Boa tarde mano. Quer "arguma" coisa para consumir ou para levar?
- Para consumir. Um café, por favor. Pode ser com açúcar, mas tem de estar quente e forte.
Enquanto a jovem ligava a máquina aproveito provocá-la:
- Mana, como se chama quem nasceu no Zaire?
A senhora faz passear a mente que navega nos conhecimentos acumulados ao longo do tempo e da instrução e quase naufraga.

- Mano, nasci "mborra" em Luanda. Minha mãe é que é daqui do Ambriz e o meu pai é que é de Mbanza (Kongo).
Mariana desviou a resposta que eu esperava, sendo, porém, fornecida por um seu colega que me a transmitiria em voz meio muda:
-  A resposta é "zairiense", kota. E justificou-se: zairense é do Congo Democrático. Nós aqui "samo" mesmo de Ambriz, ambrizetano (do Nzeto) ou mbanza-konguense que também se chama "zairiense".

João Nevumba, como se apresentaria já na hora de despedida, não se ficaria por aí na sua explicação e acrescentaria:
- Estou a ver que o mano está perguntar porque gosta mesmo de saber e parece que está mesmo a ir "na" capital. Mano, as pessoas de Mbanza não gostam muito "lhes" chamar "zairiense". Quando o mano chegar, se precisar referir, fala só mukongo que abrange todos do norte.

Acatei o conselho, joguei o café, meio frio, garganta abaixo. Engatei a mudança automática de progressão e rumei à cidade cujo símbolo apresenta cinco espadas que simbolizam igualmente número de topónimos por que já foi designada: Mpemba, Nkumba Ungudi, Kongo dya Ngunga, S. Salvador do Congo (depois do baptismo do Rei, tornando-se cristão) e  Mbanza a Kongo.

Nkongo, contam os guias do museu, é caçador na língua local. Terão os enviados de Diogo Cão, aportado em Matadi, perguntado como se chamavam aquelas terras, ao que os nativos vindos da caça entenderam que se lhes tivesse sido questionado "o que eram", tendo respondido "nkongo" (caçadores). O reino que possuía seis províncias geridas por "Manis" (titulo de governadores) tomou a designação de Congo, sendo Mbanza (capital) a Congo, na pronúncia e escrita dos comerciantes de bugingangas e anunciantes de Cristo,  o centro político para aonde os "manis" levavam os impostos recolhidos para custear a máquina administrativa. O detentor do poder supremo é Ntotila, em cujo Palácio repousa(va) uma frondosa árvore de três grandes ramos (são dois na actualidade) e uma fronde de folhas permanentes, sob cuja sombra eram efectuadas as audiências e os julgamentos. Perdeu-se na memória o nome da árvore (tipo). Porém, o facto de ter acolhido vários "kuhu" (boas vindas ou conversas introdutórias que para os ambundu equivale a mahezu) ela ganhou o registo de yala kuhu.
O residência real possuía ainda um espaço muito restrito para a lavagem e  tratamento do cadáver do rei finado (sungilu) para que fosse possível conservá-lo intacto até ao acto fúnebre que era procrastinado até à chegada do Mani que vivesse mais distante, chamados todos pelo som do tantã.

A casa mortuária real (mpindi a tadi) ficava a umas centenas de metros do Palácio, distância aproximada a que nos leva ao campo santo real, colado ao nkulu mbimbi (igreja antiga, a Sé com mais tempo a sul do Sahara).
Mas sobre Mbanza Kongo não é tudo. Sobre o desrespeito à mítica Yala Kuhu, contam-se estórias associadas à queda, nos anos 90 do sec. XX , de um elicóptero que, entre outros, vitimou o bispo da diocese local e também o despiste de um avião da companhia de bandeira, já no início do séc. XXI, que levou à morte o administrador municipal, para além do "sangue que a árvore jorrou, estendendo-se do espaço em que está o pavilhão desportivo até ao cemitério real, quando os brancos construíram a estrada, cortando o terceiro galho".

Mas o guia do museu, formado no Benin, em preservação de espaços históricos, a luz da candidatura da cidade de Mbanza Kongo a património da humanidade, não se fica por aqui e vai mais adiante nos detalhes da sua apresentação. Fala também do "Mbanda Mbanda, do clã Nenzako, de Maquela", uma espécie de Presidente do Tribunal Constitucional, a quem cabia entronizar o rei, e informa que "Mbanda Mbanda e o rei no trono nunca se podiam reencontrar. Se o rei fosse à terra dele, ele se ausentava. Se Mbanda Mbanda viesse à capital, também o rei se ausentava. Ele só se via com o Ntotila uma vez e para o entronizar", concluiu.
Entre História confrontável nos livros já abundantes e estórias de ouvir contar e entreter o visitante/turista, muito há ainda por ouvir e desvendar. O melhor mesmo é percorrer os cerca de 450km que separam Luanda de Mbanza a Kongo para ver ouvir e reter. E quiçá recontar também?!

Obs: texto publicado pelo Semanário Angolense de 11.12.2015

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

A TRIPLA GPS: D. PAULINA E SEUS DOIS MARIDOS


Nada do que se passava no bairro e arredores era do desconhecimento daquela dupla família. Os filhos andavam todos nas escolas do povo. Gaspar, coveiro na Sant´Ana, trazia dias sim, semanas sempre, as informações mais frescas de quem foi enterrado “congelado ou a quente”. Nomes de finados, biografias, figurantes e até conversas inéditas sobre poligamias e poliandrias praticadas pelos de cujus, ele sabia de cor.
Paulina era enfermeira do Hospital do Prenda e kitandeira em dias de folga. Doentes abastados, com família que conjuga o verbo ter. Doentes pedintes que se alimentavam de restos se sopas de quem podia e tinha. Doentes quase a conjugar o verbo ir, ela sabia de tudo. Na kitanda, outra  praça do ouvir dizer e contar como se estivesse no filme, Paulina era a maior contista. Falava sem tabu nem deontologia sobre as suas experiências hospitalares e sobre coisas que “até mesmo o diabo era capaz de duvidar”.
- Xê, mana Tonha, se mana Paulina está ta e contar cenas do hospital, é melhor ouvir com uma orelha e esquecer com a outra.
Já viste doente que sai de noite para ir assaltar banco e volta de novo na cadeira de roda? Contou que um dia um senhor, você lhe vê tipo coitado. À noite chegam os comparsas dele e lhe levam na cadeira de rodas até um carro.
- Mas assim lhe levam p´ra quê, Yeta? – Indagou Chica.
- É, Yeta, coisas que mana Paulina conta na praça é só já ouvir. Disse que lhe levavam para ir assaltar os bancos. Quando Judiciária chega e colhe já fotografia dos dedos, é mbora dum doente acamado do hospital. Isso mesmo se acredita?
- Hum! Aceita só já quem quer.
Paulina não só era boa falante como era realista. Dizia-se dona do seu destino e que espera “julgamento só de Deus”. Por isso ela fazia a tripla afectiva com Simão. Velho de Ambrizete que foi corrido pelos filhos sob acusação de feiticismo que nunca se comprovou. A lavra de citrinos que tinha decidiu doar ao sobrinho, filho de sua irmã, obrigando os filhos, que dizia ser apenas de sua mulher, irem trabalhar como assalariados do primo, o seu sobrinho. Acusaram-no “nganga”e lhe “kibetaram” até descarregar nojice nas calças. Coitado do velho Miguel saiu daí e encontrou dona Paulina que tinha acabado de chorar o seu homem, Gaspar Kaquarta que foi considerado morto num ataque dos fantoches quando saia dum funeral no Kitexe.
Ali mesmo. Se conheceram na estação dos Caminhos-de-ferro de Malanje. Velho Simão e Mana Paulina, mal se viram, paixão pegou. Amigaram-se. Na casa que Gaspar deixou havia um anexo de pau-a-pique que Velho Gaspar foi reconstruindo com blocos de cimento e areia da rua. Arranjar ripas para zincar o quarto não foi difícil. O emprego de marceneiro permitiu-lhe contacto com uma agência de fazer urnas funerárias e a serração da vila. Fazia os seus caixões e uns “mochos” que vendia às “kintandeiras”, colegas de Paulina nos dias de folga.
Tudo que fosse sobre compra e encomenda de caixões para pessoas vivas, moribundas ou mortas, o velho Simão sabia e contava também à sua dona e os miúdos, pelos “furutos” da casa aproveitavam também captar umas conversas, nem sempre completas que levavam à rua, aos amigos e vezes tantas aos professores também.
Por sua vez, nas horas em que supunham que os miúdos estivessem já dormitando, “hora do vamos se o galo canta”, os miúdos aproveitavam ligar as suas antenas para ouvir os relatórios diários que Paulina e Simão trocavam, antes do cantar do galo que era num silêncio sepulcral.
Ano e meio depois daquela morte chorada do vizinho Gaspar Kaquarta, homem que facilitava todos os enterros dos vizinhos e parentela, com Paulina já amigada e o kota Simão a dar uma de tio Matoso “lundulou”, o dono de casa reapareceu. Tinha sido raptado pela guerrilha e o seu corpo foi confundido com o de um infeliz companheiro de desgraça que era militar da ODP, também mestiço.
No dia em que o vizinho apareceu, com os olhos dele todos rasgados, o bairro todo se pôs em fuga.
- Vizinho coveiro ressuscitou! – A berraria ecoava por todas as ruas da Vila da Mata.
- É quê? Vizinho fez quê?
- Ressuscitou. O “covero” apareceu! “Lengeno”! – Gritava-se.
E todos fugiram, até Paulina e os três filhos, menos o velho Simão que continuou na sua cadeira de fitas a enxotar as moscas que saboreavam o sumo da sua ferida na perna.
Como protagonista e vilão dum filme de acção. Cara-a-cara, olho no olho. Gaspar a dizer com o coração “quero entrar, deixa-me entrar”. Velho Simão, apesar da idade, a dizer também, apenas no coração, “aqui, seja quem for, morto ou vivo, aqui não entra”.
O “bilo” silencioso foi de uns cinco minutos. Ninguém disse nada nem fez nada. Ficaram só a se estudarem até             que cada um tirou a mais acertada ilação.
- Você é o pai dos meninos, não é? É o Senhor Kaquarta. Então saiba que a notícia que chegou na tua família foi de que o senhor foi abatido. A tua família chorou, fizeram um funeral sem corpo  e, depois do luto nossa mulher me admitiu aqui para cuidar dos meninos. O terceiro está já na barriga. – Explicou Simão.
Gaspar deu-lhe um abraço cheio de energia. Os dois foram abraçados à sombra da figueira que espalhava folhas pelo quintal. Gaspar abriu também seu saco de memórias e foi narrando o que se passou durante o tempo todo e o que pretendia fazer com seu regresso.
- Mano, a vida que nos falta viver é pouco. Casa, você aumentou lá “kabucado”. Os filhos, você educou lá “kabucado” e aumentou mais um que está a vir. Se Paulina concordar, podemos viver aqui os três. Ela com os filhos fica na casa grande. O anexo de dois quartos, dividimos, um é teu outro é meu. O resto é conversa de homens crescidos.
O cavalheiros selaram o acordo e quando os ânimos se amainaram, Paulina que fora buscar refúgio em casa de uma colega do hospital regressou com os monas à casa em clima de paz total.
A tripla viveu mais décadas. Paulina ainda pôde dar mais quatro filhos aos maridos que foram se revezando na procriação. Os de Gaspar Kaquarta são clarinhos e com olhos rasgados. Os de Simão Meso ma Nkala são pretinhos como carvão e duma altura que desafia a trepadeira. Juntos os filhos eram seis. Com os pais, a equipa era de nove e tratada carinhosamente por “família GPS”, iniciais de Gaspar, Paulina e Simão, mas também por saberem de tudo o que se passava na Vila da Mata. Os filhos, todos varões, compravam e vendiam informações nas escolas em que estudavam e contavam aos pais. Paulina via e ouvia na Clínica do Prenda e na Praça “Ajuda Marido” e levava para casa, partilhando com os maridos e os filhos. Gaspar que voltara ao seu antigo emprego no campo santo de Sant´Ana, atendia e assistia aos mais diversos funerais e reproduzia as imagens vocais aos de casa.
Simão que fabricava e atendia os compradores de urnas também tinha as informações frescas sobre bairros e ruas onde havia ou haveria “komba” e canjica. Viveram do seu jeito, enfrentando a curiosidade e “mexerequice” duns vizinhos mais inconformados, até que a cova os chamou, um a um.

Obs: texto publicado pelo Semanário Angolense.