segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

NO TEMPO DE CIPAIOS E CAPATAZES

No edifício rosado da vila crescente de Lumbala Ngimbu, Xavier Martins e Ernesto Del Ponte dividiam o corredor longo e estreito. Duas salas com portas paralelas se enfiavam ao fundo, ganhando janelas pelas laterais e pelos fundos, um arrojo da arquitectura daquele tempo oitocentista. Uma das salas era do administrador do posto e a outra era a do secretário.
Do outro lado estavam os cobradores de imposto indígena, os cipaios e seus cacetes, os serviçais e os queixosos e queixados. Mais longe, mas no mesmo quintal engalanado de flores que desbrochavam em todas as épocas, estavam as casas para as "sentinas": duas para os brancos da administração e um “covil” que servia a "negralhada" toda, onde homens e mulheres acossados pelas descargas fisiológicas se revezavam minuto sim, minuto sempre. Kapita era empregado auxiliar e cuidava de levar e trazer o que os brancos pedissem.
Certo dia, daqueles em que o céu parecia ter descido à terra, ameaçando queimar tudo e todos, Xavier na sua sala suava. Del Ponte também de suor molhava a malha da camisa estampada que quase lhe mordia o corpo torneado. Os dois se pareciam a nascentes de rios que se alargavam a cada chuva, a cada gota. Já tinham trocado os lenços pelas toalhas que mesmo assim não bastavam para se enxugarem. Água nos moringues já não havia.
Kapita, atrás dum monandege traquino, na vista do administrador se colocou.
- Ei, ó preto, pega uma bacia e traz água. Tens um minuto e meio. - Ordenou Xavier Martins, o administrador.
Dois passos à frente, outro grito e Kapita ainda sem descodificar o que lhe foi solicitado.
- Kapita! Outra bacia para mim, uma toalha límpida e um minuto e meio para a empreitada. - A voz de Del Ponte, um luso de descendência hispânica era inconfundível. O homem era dos principais queixinhas de Xavier Martins e culpado pelo desterro de muitos serviçais à roça Camokomoko, autêntica colónia de morte nos tempos da administração estrangeira no Leste de Angola.
- Coitado. Mbacia chamado por um e por outro, 'deve ser muito sério o que esse irmão aprontou'. - Kapita assim pensou e meteu-se mangueiras e laranjeiras abaixo, gritando e procurando por Mbacia.
- Mano Mbacia, ó Mbacia, se estás a te esconder é melhor se apresentar, porque o branco está a ficar vermelho. Mwata mutolo nyi secretario já informaram no sipaio e disseram que se o Minuto e Meio não vier contigo, ais mar água m sangue.
Kapita gritou até fazer-se ouvir por todos os que se tinham dirigido ao posto administrativo, sem que ninguém o pudesse ajudar. Nem Mbacia, nem Minuto e Meio se apresentaram.
Desolado, pensando nas palmatoadas que levaria por conta do fugitivo Mbacia que não pôde encontrar, dirigiu-se aos soluços ao gabinete do secretário Del Ponte.
- Sô secretario, Mbacia nyi Minuto e Meio ma lunga o ma pwo? (Bacia e o minuto e meio são homens ou mulheres?) 'Num li vistei casa tudo'. - Explicou numa mistura entre ucokwe e português.
Del Ponte, furioso, fez-se como flexa ao gabinete do administrador, informando que Kapita se tinha gozado deles e se recusado a dar-lhes água.
Xavier Martins, um flexa que já tinha sido capturado nas guerras de conquista do Leste, pegou, com as próprias mãos em Kapita e o acorrentou pelo pescoço, juntamente com outros dois empregados que se faziam passear pelo quintal. Foram mandados à roça Camokomoko desbastar uma montanha durante as manhãs e cortar lenhas durante as tardes.
Lá ficaram, os três, cinco anos, sempre labutando acorrentados ao pescoço. Até às "sentinas" sempre juntos: Kapita, Katonde e Sandumba...
Num Novembro de mangas fartas, sede na hora doze acompanhava a fome da fuba levada pela chuva. Na frondosa mangueira, habilidosamente, decidiram subir e desfrutar-se de polpa que cumpriria as duas funções: matar sede e fome num só trago.
Mangueira acima se fizeram. Lá foram os trigémeos. Uma formiga brava, entretanto, sangue humano queria sugar e Katonde, o do meio, não foi poupado.
- Wawé, ndifa! (Ai, morro!) - Exclamou em umbundu.
Pretendendo desfazer-se do incómodo quebrou o galho. Outro abaixo acolheu a corrente. Katonde e Sandumba num lado e Kapita noutro balouçando.
- A suku a tatê, tukutise ño (Deus pai. ajude-nos). - Gritava Kapita.
- Capatajééé, Tukwase! (Capataz, ajude-nos!) - Replicavam apelos, em ucokwe, Sandumba e Katonde.
Mukwa Kuxaha, o cipaio, e Mukwahenda, o capataz, fizeram-se meteram-se a caminho. Um com a espingarda e o cacetete e o outro com o chicote.
- Toma a chave, liberta um e depois o da outra ponta. O do meio desce com a corrente. - Ordenou o cipaio.
O capataz trepou, mas o coração pesou-lhe a alma. Na sombra, o cipaio arma na mão, pronto a atirar.
- Sô cipaio, “quarente” está complicado desamarrar”. em só me ajudar. - Iscou o capataz.
- Desce de lá seu sebo e se eu conseguir resgata-los, coloco-te na condição destes desgraçados. – Ameaçou o cipaio antes de concluir: - Dou-te a espingarda e atira neles, antes de eu cumprir em ti minha promessa. Desce de lá, pá!
Mukwahenda também temendo pela sorte. Livrou-se da árvore. Fez-se à sombra, caçadeira na mão. O cipaio descalçou as botas, arregaçou as mangas e ajeitou os calções de caqui. Embravecido agarrou a árvore como quem lhe pega pela garganta. Confirmou as chaves dos cadeados no bolso. Subiu ao colmo. Sedento de sangue soltou valente bofetada a Kapita que apenas suspirou antes de levar o rio de saliva ao rosto do assassino.
- Ai é? É la em baixo que vamos ajustar as contas.- Verberou alto.
Mukwa Kuxaha, soltou Katonde e voltou ao lado de Kapita que sangrava na boca. Quando o cipaio se preparava para descer, Mukuahenda, o capataz, deu-lhe a provar do veneno.
- Tuááá! - A bala certeira de caçadeira abraçou-o de morte. Fez-se silêncio e depois o eco além savana. O cheiro de pólvora e as aves predadoras fizeram-se anunciar. Era sangue e pedaços espalhados pelo matagal.  
Kapita e o capataz meteram-se mata adentro. Catonde e Sandumba seguiram a caminho do caudaloso e pantanoso Lunge-Bunge, não se sabendo qual foi a sua sorte. Outrossim, ficou registado que o corajoso capataz e os seus troféus entregaram-se ao Movimento.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

A ZUNGA E A BERRIDA DOS KABOMBAS


FI-DA-CAXA! é para mim uma interjeição e não "palavrão". É nessa acepção que  espero entendam a utilização do étimo nessa crónica.  

Fi-da-caxa! Estorvaram-me a prosa com o kamba de ofício. Nosso encontro foi inesperado.
Eu o imaginava em Katumbela e ele contava-me em Sawlimbu. Ali mesmo no chão do aeroporto, rua primeira de quem espreita o Kasekel
[1], eu saído do cheiro e clima doutro mundo a apanhar balanço para nova vida na Ngwimbi[2], ele no intervalo duma acção de kudilonga[3], cruzamos, cara-a-cara. Se um fosse kilapeiro[4] do outro não teria nem buraco para se esconder.

-Epá! Confrade, não te imaginava aqui e plenamente hoje. Vieste em bumbas[5] ou em turismo sobre rodas? - Metralhei-o, logo logo, com perguntas.
- Yá. Vim numa formação. É preciso nos aperfeiçoarmos. Estou já há umas semanitas. - Defendeu-se.
- Yá. Tenho lido o teu diário, mas pensava que fossem escritos buscados dum baú recente.
- Pelos vistos estás a chegar... tens novidades literárias?
Mal começamos a falar sobre um dos aspectos que nos tornam umbilicais, a escrita e as publicações para Novembro, quatro carros da patrulha conjunta, entre fiscais e policias, pararam repentinamente colados a nós, com os "comandos" a pularem por cima dos zungueiros
[6] de saldo e mawanas[7] de sol. Parecia kitota[8] nos tempos do mano Barbudo ou rusga do luz-e-tano Poeira quando encheu as cadeias pidescas de revoltosos tunda mindele[9].
O resto da prosa, depois de minutos de separação, porque cada um de nós (mais ele do que eu que ando kasimbado
[10] nestas guerras de fiscais contra vendedeiras) fugiu para sitio diferente e distante para escapar daquele "assalto", foi apenas um chau apressado com o coração em alta rotação.
- Fidacaxa dos fiscais! Com as zungueiras até parece que fizeram curso de pular, puxar, apanhar coisas esquecidas ou caídas na fuga e guarda-las rápido e de caxexe
[11] no carro. - Atirou o puto Sofrimento Moderno, também conhecido no aeroporto por SM, que obteve o contributo de um colega de desgraça:


- Yá. Tipo nada. Mwadyé
[12] distraído pensa que não houve nada. Tipo guerra relâmpago do Adolfo da Alemanha quando queria reino mundial de mil anos. Mas "lhe" saiu pela culatra.
 - A quem é que entregam as coisas kasumbuladas na rua? - Perguntou ainda uma mana, Belita nome dela, enquanto limpava a nova ferida do encontrão que teve com uma arca antiga de vender bebidas.

Resposta, ninguém só lhe deu e vai ficar toda a vida com a raiva dela sempre que olhar para a cicatriz.

Os magalas a exibir banga[13], pareciam que treinaram comandos no Cabo Ledo para irem metralhar os carcamanos[14] reaganistas-malanistas e seus  apaniguados mwangolês[15] no Kwitu Kwanavale de 1987.

- Fidacaixa! Força deles é só com os zungueiros de cuecas, saldo, magoga[16], fio dental de mulher que quer já já e mawanas de sol. No tempo em que barbudo nos intimidava eram capazes até de andar com a cauda entre a muxaxala[17]. Cambada de gregos! - Raiva de Miguelito era grande que nem mesmo o desabafo carregado de alguma malícia atenuou a força da pedra que aquela acção lhe calcou no coração.

 
Quem também lhes xingou, com todos os verbos, tempos e modos, foi Mariquinha que viu entornada a sua bancada de magoga e "bebe-me-deixa"
[18].
- Com grego igual não torram farinha. -Atirou. - Por que não vão ainda se medir capacidade com os gregos do Sambila, do México, do Sete e Meio, do Ngwanhã, dos Ossos, do Saber Andar, da Fubu e doutras bandas onde a polícia é quem bate continência aos bandjus? Gregos de meia tigela, mazé pá! Quando o Barbudo nos ameaçou empurrar o comboio com os beiços andaram aonde? Me totolei
[19] só no pé!
E eu, repleto de vivências, mochila nas costas, pé no ngwimbu
[20] para soltar ao vento o que meus olhos viram e meus ouvidos registaram. Saí voado!




[1] Bairro de Luanda; areal (grafia kimbundu).
[2] Calão de Luanda; alusão à capital de Angola.
[3] Aprendizagem; ensino; curso (kimbundu).
[4]Devedor; calão de Angola.
[5] Trabalho (calão).
[6] Vendedores ambulantes; do kimbundu zunga=andar sem destino.
[7] Óculos de sol (calão).
[8] Guerra.
[9] Saiam os brancos; alusão à luta pela independência (kimbundu).
[10] Calejado (calão); alusão a quem tem muitos kasimbus (anos) de ofício.
[11] De soslaio.
[12] Individuo (calão).
[13] Estilo; exibicionismo.
[14] Assim eram designados os invasores sul-africanos no tempo da guerra em Angola.
[15] Angolanos (calão).
[16] Sandes.
[17] Entre as nádegas.
[18]Refrigerante em PET de meio litro.
[19] Tropecei; bati (kimbundu).
[20] Nuca (calão).