domingo, 17 de setembro de 2023

O OCTOGENÁRIO DE AREEIRO

Depois de mês e meio na estranja, a comer saladas, caracóis e sóis que nem um boi, Mangodinho estava já naquela fase de ignorar os mendigos que enfeitam Lissabone e a coleccionar moedas para a janta.

Hospedado em Areeiros, paredes meias com Roma e Alameda, decidiu, ao quadragésimo sexto dia, caminhar uma hora, até Entrecampos, e jantar na tasca "A camponesa", onde contava encontrar a "Oriana de Entrecampos", que já desfilou nessa coluna, e comer a preço quase de banana amassada.
Fazia sol, intenso ainda, apesar de relógio apressado para nove da noite, hora em que fecham, regra geral, os serviços.
Mangodinho foi a passo intermédio. Sem pressa, mas também sem perda de tempo em montras e outros "fura-bolso".
Olho no telefone, olho no caminho, Mangodinho fez quarenta e cinco minutos até chegar à A camponesa. Estava "caloriado", cansado, faminto e sedento. Ansioso para mandar goela abaixo uma imperial gelada e um cozido à tuguesa, prato cheio-e-barato, pensava no estalar dental das cartilagens das orelhas do ngulu assado e no borbulhar, entre carnudas bochechas, daquele álcool dourado, repleto de lúpulo, cevada e água do Tejo.
- Vai ser uma delícia! - Soliloquiou, vindo-lhe rios à boca como cão faminto à beira de ossadas na grelha.
Encontrou, porém, A camponesa encerrada.
Era preciso voltar à origem e encontrar em atendimento a churrasqueira "Fome de Leão", local que frequentava desde que abandonou Sete Rios e se instalou na Avenida João XXI, Praça Sá Carneiro.
Foi no regresso à procedência, num passo mais comprometido, que viu dois idosos junto à estação de Areeiro. Galhofavam, tomando uma pomada e fazendo a boca com caracóis. Era por cima do passeio, junto à entrada de uma tasca. Os velhotes daqui são fiéis à tasca de sempre, assim como Mangodinho foi ao encontro de A camponesa de Entrecampos.
Um deles, o que parecia mais idoso, estava em viagens permanentes, à passagem de musas ousadas ou bem prendadas corporalmente. A mente ele não avaliava. Era mesmo o corpo que colocava o seu pescoço num vai-e-vem. O octogenário levava o pescoço e a cabeça ao sol poente, acompanhando uma transeunte e fazia-os voltar ao sol nascente quando passasse, em sentido oposto, outra mulher digna de espanto e contemplação.
"O belo deve ser contemplado", dizia um filósofo helénico.
Junto ao prato e copo, fazia ligeiríssimas paragens. Afinal, "a mão é quem mais conhece a boca". Tinha a consciência plena de que jamais, nunca, falharia o garfo ou o copo à boca!
Quem disse que velhice é cegueira?!

Publicado pelo Jornal Cultura a 7 Dezembro 2022