quarta-feira, 1 de maio de 2013

O FALSO LEÃO


Nota: Este conto é parte do esboço de livro "As travessuras do Jacinto"
Apesar das travessuras do Jacinto as férias do fim de ano lectivo tinham corrido bem para ele e para os tios. Os primos estavam todos felizes porque tinham ganho novas brincadeiras. O natal tinha sido maravilhoso e todos os meninos tinham ganhado muitos presentes que o tio Wandisyapo comprou na loja do Sô Venâncio.
Wandisyapo e a irmã, Naxitula, tinham combinado que Jacinto regressaria à casa acompanhado do primo Bernabé, enquanto o irmão mais novo, Xendi Vali, ficaria com o tio. Lito que estava adoentado voltaria à casa mais tarde.

No dia em que Jacinto e Bernabé receberam a notícia de morarem juntos na vila de Munhango[1] quase não dormiram. A curiosidade de Bernabé era tanta e queria que o primo lhe falasse sobre como eram as águas dos rios, os animais, as frutas da mata e das lavras, os peixes dos rios os chilrear dos passarinhos e tudo mais.
- Oh primo, conta então ou não queres que eu vá contigo. – Ameaçou Bernabé, em jeito de troça.
- Bebé! Arruma a tua mochila. Os teus olhos te vão contar ao longo da viagem. – Respondeu-lhe Jak, como era tratado Jacinto no seio familiar.

 - E tu, Jak, já arrumaste a tua mochila? - Ripostou Bernabé.
- Ainda não. Mas eu sei onde andam as minhas coisas e não será difícil.

- Olha para isso. – Bernabé mostrava o cantil que ganhara como presente por ter transitado de ano académico. – Vai ser útil ao longo da nossa viagem até à casa da tia Naxitula. - Disse.
- Ai é? E vamos mesmo a pé? – Perguntou Jacinto a zombar.
Os dois já tinham combinado gastar o dinheiro da passagem em guloseimas[2] e fazer o percurso de dez quilómetros a pé. Conheciam o caminho e eram também conhecidos dos aldeões daquela região onde bastava dizer de quem se era filho ou neto para logo ser acolhido em qualquer aldeia por onde se passasse.

No domingo, dia em que o comboio faz o percurso Lwena-Byé, os meninos foram à estação dos caminhos-de-ferro acompanhados por Wandisyapo, pai de Bernabé e tio de Jacinto.
Os rapazes, que já tinham o dinheiro da passagem, fingiram dirigir-se à bilheteira de modo a despistar Wandisyapo. E conseguiram mesmo ludibriá-lo, pois tinham conseguido de véspera uns bilhetes que já não tinham validade. E foram estes que mostraram ao pai a quem se despediram.
- Papá, não adianta esperar pela partida do comboio. Jak e eu já somos grandes e o papá pode ir descansado. Quando chegarmos, a tia vai ligar para dar notícias. Não é isso Jak? – Perguntou Bernabé.

- Sim, tio. – Respondeu Jacinto, a fingir que subia no vagão, puxando pela mão do primo.
Mal Wandisyapo marcou os primeiros passos em retirada, os dois trapaceiros desceram do vagão e meteram-se a caminho do mato que liga as embalas[3]. Na mata serrada do Moxico, em direcção ao pôr-do-sol, os dois aventureiros transpuseram riachos e contornaram montanhas, deleitando-se, ao longo do percurso, com muitas frutas: umas colhidas de pomares que iam encontrando e outras silvestres. Viram também um passarinho preto, amarelo e vermelho que lhes fez recordar a bandeira de Angola.
- Jak! Olha aí o Angola-Avante! - Exclamou Bernabé, o primeiro a ver o passarinho no cimo de uma árvore.
- Angola-Avante é o hino nacional. Esse aí é cor-de-bandeira. - Corrigiu Jak que era um ano mais velho do que o primo.

Depois de caminharem cerca de uma hora JAC e Bebé sentaram debaixo de uma árvore frondosa para descansar e conversar. O mutismo e o cansaço já se tinha apoderado deles.
Jak puxou da mochila a sua bússola para ver em que direcção estavam, enquanto Bernabé prospectava com o seu binóculo[4] o que se passava à volta. Foi neste instante que viu, não muito longe do local em que estavam, uma cabra do mato que corria perdidamente.

- Jak, Jak! Uma cabra do mato está a correr em direcção ao rio. Queres ver? Deve haver um leão atrás dela!
- Hum, leão? - Balbuciou Jak acossado de medo.
- Sim aqui há leões, leopardos, hienas, onças e outros animais ferozes. Doutra vez - contava Bebé – o papá caçou um leão velhinho que rondava o curraval do Soba. Só a juba dele? Parecia um espantalho. Era um bicho assim…

Bernabé descrevia o animal enquanto Jak, já quase sem forças nas pernas, sorvia uma porção de água do cantil. Foi no mesmo instante em que Bebé, também ele sedento, esticou a mão para receber o cantil.
- Está aqui. – Disse Jak.
- Mam![5] Estou perdido. - Gritou Bernabé que se meteu a correr pelo mato.
Nisto, Jak que tinha pensado que o primo fugia duma fera, também se meteu em fuga pelo mato mas foi por um outro atalho.
Andaram perdidos no sertão[6] cerca de hora e meia até que se reencontrarem numa aldeola, já proximo do Munhango. Estavam exaustos, sedentos e famintos.
- De que fugiste Bernabé? - Questiounou Jak aborrecido.
- Não foste tu que disseste que o leão estava aí? Ou querias que eu servisse de almoço do bicho? - Respondeu Bernabé também agastado.
- Eu não me referi ao leão. Esticaste a mão para receber o cantil e eu te disse “está aqui” o que pedias.
- E por que te meteste também a correr? - Voltou a perguntar Bernabé já mais calmo.
- Fugi porque ao te ver com o “pé no ngimbo” [7] pensei que tivesses visto, na verdade, um leão!
 

[1] Vila ferroviária que fica na fronteira entre as províncias angolanas do Bié e do Moxico.
[2] Reboçados, chocolates, amêndoas e outras doçarias.
[3] Grandes aldeias rurais; vilarejos.
[4] Instrumento com lentes ampliadas que permite ver de longe.
[5] Interjeição em língua cokwe que expressa admiração ou espanto.
[6] Mata; floresta.
[7] Correr a bom passo.