terça-feira, 11 de março de 2014

O CARNAVAL DO RANGEL E A HOMENAGEM QUE FALTA A MAM-BRÁS

A coroa do carnaval de Luanda voltou ao Rangel, mercê da soberba actuação do União Sagrada Esperança, do bairro (agora distrito urbano) que me viu crescer e fazer-me homem. Foi no Rangel, entre a Rua da Ambaca, da Saúde, Comandante Cantiga, Rua do Paraná, Rua da Mão e do Povo, entre outras, que tomei contacto com o carnaval luandense, ainda no tempo do já finado “carnaval da vitória” que se realizava em Março, para assinalar a saída do último “carcamano sul-africano-racista” do solo pátrio, a 27 de Março de 1976, depois da invasão estrangeira que visava inviabilizar a proclamação da independência de Angla pelo MPLA.
No Rangel, dançávamos ao carnaval da vitória com o Grupo Atu Zemba, União Estrela do Kaputu (Zona 15), União Mãe Ya Ndengue, Andorinhas, União Povo do Rangel, União Juventude, e tantos outros que animavam o município inteiro, antes e nos dias do desfile. Agradava-me assistir aos ensaios e ver aquela gente alegre. Alegria espontânea e não comprada ou a troco de alguma distinção à marginal. E dançávamos eufóricos ao som da ngoma de lata, reco-reco, puíta, chocalho, etc. O rei e sua rainha vestiam-se à moda angolana e exibiam coroas feitas a base de ferros recortados e outros metais. Era tudo a base do improviso e da espontaneidade. A criatividade também morava connosco e já se dizia que corria no sangue.
Mas quem mais alegria dava aos munícipes todos, em especial às mamãs peixeiras e outras quitandeiras da praça das Corridas (hoje mais conhecida como praça do Tunga Ngó) e da Praça Nova (defronte a administração comunal do Rangel) e aos meninos e meninas da minha infância “rangelina”, era o Mam-Brás, exímio vocalista de carnaval, dançarino e tocador de ngoma. Mam-Brás sofria de algum distúrbio mental que não cheguei a definir e alimentava-se frequentemente de carne que lhe era ofertada pelas quintandeiras que apreciavam os seus toques e retoques de dança carnavalesca.
Depois da exibição, perguntava sempre:
- Há uma gordurinha? - O homem referia-se à miudezas que voluntariamente lhe eram ofertadas.
Seguindo o som do seu batuque, muitas crianças chegavam a se perder, dando lugar a outro tocar de lata, desta vez das famílias cujo petiz se perdeu no rasto da ngoma do Mam-Braz que continua o seu percurso.
- Nanhi wa ngi bongela kamona ka dyalê?! (Quem sabe do paradeiro de uma criança de sexo masculino?!)
Fruto disso, muitas mães preferiam mandar parar o Mam-Brás e tocar por alguns minutos à porta de casa, oferecendo-lhe depois aquilo que houvesse. Assim, as crianças deixavam de o acompanhar. Mas não era a mesma coisa. Ver o Mam-Braz tocar à porta de nossa casa e vê-lo exibir-se em rua livre ou na Praça das Corridas.
Mam-Brás foi um feitor e zelador do nosso carnaval de bairro. Carnaval alegre, sem preço, sem patrocínios, sem contrapartidas e que não era encomendado por ninguém. Mam-Brás corporizava essa alegria de quem estava e sentia-se livre na sua terra.
O Mam-Brás vivia na rua da mão, também conhecida por rua do “ti Avelino dos Santos”. Apesar de sofrer de distúrbio mental, tinha o reconhecimento e respeito de todos. Era prendado pelas mamãs que gostavam do som do seu tambor, da voz do seu canto e dos toques da sua dança, quer na rua ou nos mercados onde preferencialmente se fazia exibir. Nada cobrava. Apenas recebia o que lhe era dado de oferta no momento da exibição e fazendo do seu carnaval, sem época, o seu ganha-pão.
Mam-Brás, que ainda faz ecoar no meu ouvido a nossa alegria de criança esboçada com o refrão: Mam-Bragéé- é, Mam-Bragéé-é!,  É o meu homenageado neste carnaval de 2014, cujo vencedor, em Luanda foi o União Sagrada Esperança do Rangel que homenageou as vivências tradicionais de Luanda.
Que o próximo homenageado seja o Mam-Bragéé- é, Mam-Bragéé-é!
 

domingo, 2 de março de 2014

MULHERES DE KAMUNDONGO

- Tu kusiña kimbo lya vel´apo! (Encontrar-te-emos na aldeia celestial!) – Cantava de forma angelical o coro da sociedade de mulheres da IECA que acompanhou Celita Adolfo à sua última morada.


A octogenária nascida e crescida na missão de Kamundongo (Kuito-Bié), onde se formou e louvou, manifestara, em vida, o desejo de ser sepultada junto de seus familiares e contemporâneos cujos restos repousavam já em Kamundongo.
 
Os filhos, sobrinhos, netos e bisnetos, contados em centenas, não fizeram mais senão cumprir o pedido da antiga diaconisa.
 
- Vamos levar a avó a Kamundongo e cumprir com o seu último desejo. - Afirmaram entre tristeza e alegria.
 
Tristeza porque era uma biblioteca que ia a enterrar. Alegria porque a sua obra apontava para um descanso merecido ao lado do Senhor. Dai a canção “Tu kusiña kimbo lya vel´apo!”
 
A missão de Kamundongo fica a 22 quilómetros da capital biena. À semelhança das missões homólogas do Chilesso, Dondi, Chissamba, Chilume, Vouga, entre outras, Kamundongo viu nascer e formou homens e mulheres que tiveram um papel relevante no surgimento da consciência nacionalista angolana, na luta pela emancipação dos angolanos e no processo de criação da nossa nação (ainda em curso).
 
Inicialmente como professora de artes e ofícios e mais tarde como parteira, Celita Adolfo, nascida em 1928, foi uma mulher que fez o máximo que pôde pelos homens e pela sua IECA de que foi diaconisa. Teve, por isso, a merecida homenagem de despedida na Igreja Central do Kuito, também designada por “Catedral da Paz”, e um elogio fúnebre à dimensão da Grande mulher que foi.
 
Troço da picada que nos leva a Missão de Kamundongo
Em Kamundongo, localidade alcançável em tempo chuvoso apenas com recurso a carros todo-o-terreno e com pontecos a reclamar por reparações, as árvores frondosas que guardam a memória de notáveis homens e mulheres da sociedade Biena e não só, acolheram as centenas de pessoas que foram ao último adeus a Celita.
 
Uns cantando, outros acompanhando apenas os coros mas guardando reverência e expressando nos seus rostos comoção, outros ainda mais soltos nos gestos e mais alegres nos semblantes, duas mulheres se destacam entre a multidão.
 
Uma é idosa. Tem o netinho às costas. Setenta ou mais anos, indicam as rugas e a flacidez da epiderme. Está toda apossada de tristeza, como quem quer dizer, mas sem força, sem fôlego “sempre estivemos juntas, por que me deixas nesta cidade provisória”? Despejada de quase tudo, dos amigos de infância e adolescência, das colegas dos coros em que cantou, despojada talvez de filhos e netos ao longo das carnívoras guerras travadas no planalto central angolano, a idosa só podia oferecer a sua comoção, enquanto panos já envelhecidos de tantas lavagens cobriam seu corpo quase secular como também amparavam o “nekulu” que cabriolava despreocupado nas costas.
 
Noutra frente, uma jovem há pouco saída da adolescência, disputava com as amigas o melhor cabelo emprestado e grife da tarde carente de sol e chuva. Com um vestidinho colado ao corpo, como se fosse sua pele, e a mostrar as encostas das nádegas, a jovem estava pintada à moda mulher da vida. E, como nestes eventos a vaidade e a petulância vivem juntas, lá estava ela totalmente singular, exibindo as chaves de uma viatura que seu trabalho honesto e limpo ainda não permitem comprar. Se calhar, esteja também a sonhar com uma despedida e um  repouso eterno em Kamundongo… Porém, para lá chegar, terá antes de conhecer e seguir as peugadas de Celita Adolfo e ter como guião a fé, boas obras, honestidade e moderação.
 
Kamundongo, Kuito, 04 de Fevereiro de 2014.