terça-feira, 5 de agosto de 2025

Entre chaladices e filosofias: A tessitura da trama em Chico, Bernardo e Mangodinho

A literatura de Soberano Kanyanga é marcada por uma oralidade vibrante, personagens profundamente humanos e uma crítica social que se entrelaça com humor, dor e sabedoria popular. Neste artigo, analisamos comparativamente três figuras centrais de suas crónicas: Chico "Pé de Muleta", Bernardo "Bebê" e Mangodinho, explorando a tessitura da trama em que cada um se inscreve.

Chico "Pé de Muleta" – A tragédia como sabedoria
Em As Chaladices do Chico "Pé de Muleta", Chico é apresentado como um sobrevivente de um acidente infantil causado pela negligência alcoólica da mãe. A sua deficiência física torna-se marca identitária e símbolo de resistência. A narrativa constrói Chico como um educador informal, que mesmo embriagado, ensina geografia e identidade aos sobrinhos:

“Vocês são burros. Vê lá se ainda não conhecem a cidade.”

A tessitura da trama é trágico-reflexiva, com forte ligação ao espaço comunitário e à memória colectiva. Chico é respeitado e temido, e sua voz carrega a autoridade da experiência vivida.

Bernardo "Bebê" – O riso como crítica
Em As Chaladices do "Bebê", Bernardo é uma figura cômica e provocadora, que habita o espaço da barraca da Dona Páscoa e transforma o quotidiano em sátira. Suas frases ambíguas, como:“ 

Esses buracos estão a ser tratados como frangos: primeiro limpam, depois temperam com brita e só depois é que metem o óleo quente.

Ou quando ironiza a política local:

“Aqui, até os buracos têm plano de desenvolvimento. Só falta mesmo o orçamento” são exemplos de como o humor é usado para desmascarar o absurdo social. Bernardo representa a irreverência popular, e sua presença é marcada por leveza, mas também por crítica mordaz. A tessitura da trama é cômico-satírica, com ritmo oral e linguagem popular, aproximando o leitor da realidade angolana com riso e reflexão.

Mangodinho – A dor como arte
Mangodinho, personagem central de textos como o publicado em outubro de 2023, é construído com uma veia filosófica e existencial. Ele representa a dor transformada em arte, a coragem como essência humana, e a marginalidade como espaço de criação:

“Mangodinho é aquele que desafia a dor e ama a arte.”

A tessitura da trama em que Mangodinho se inscreve é densa, simbólica e introspectiva, com linguagem mais literária e menos episódica. Ele transcende o espaço físico e torna-se símbolo de transcendência.

Comparação entre os personagens
Chico, Bernardo e Mangodinho representam três formas distintas de construção narrativa na obra de Soberano Kanyanga. Chico é marcado por uma tonalidade trágico-reflexiva, funcionando como educador marginal e crítico da alienação. Bernardo, por sua vez, é cômico-satírico, provocador popular que usa o riso para expor o absurdo social. Mangodinho é filosófico-existencial, símbolo de transcendência e dor transformada em arte.

Enquanto Chico actua em espaços comunitários rurais e Bernardo em ambientes urbanos populares, Mangodinho transcende o espaço físico, habitando uma dimensão simbólica. A linguagem de Chico e Bernardo é oral, rica em expressões locais, enquanto Mangodinho é tratado com linguagem mais introspectiva e literária.

Todos os três personagens partilham uma profunda humanidade e ligação visceral à realidade angolana, compondo uma tapeçaria literária rica, crítica e afectiva.