terça-feira, 1 de janeiro de 2013

A MORTE DO VELHO XINGA

Este texto é parte do livro "O Coleccionador de Pirilampos"

Makenzo e a cunhada discutiam, manhã cedo, sobre as causas da morte do avô.

Xinga Wanga tinha morrido, passavam seis dias. Era véspera do komba-di-tokwa[1] e mesmo a família mais próxima não estava esclarecida quanto ao que levou o Mais-Velho ao mundo do descanso sem fim.

- Mas oh cunhado, de quê então que morreu o vosso avô? - Perguntou Dina, irmã jingongo[2] de Diana, a mulher de Makenzo.

O jovem, trinta e três anos às costas, idade de Cristo, pensou, repensou e reteve a resposta.

- Cunhada, está um pouco difícil dar resposta consentânea.

- Morreu de consentânea? - Que doença é essa então.

Makenzo tinha a mania de falar bom português. Era professor dessa cadeira e não media os níveis de literacia dos seus interlocutores que eram todos os dias surpreendidos com as novas aquisições do Professor Kenzo, como também era conhecido.

- Olha Dina, sua tola, consentânea não é doença. Doença mesmo é uma jovem ter um dicionário em casa e não o consultar. Isso é que provoca um mal maior aos jovens vivos. Deixa lá o avô Xinga que ele está bem na terra do descanso.

Kenzo e Dina eram tão amigos que não havia fronteiras nas suas conversas e os ataques verbais de Kenzo já eram vitaminas para Dina que se deleitava em ouvir palavras desconhecidas do seu pobre vocabulário. Aproveitava, também ela, lozar[3] às suas amigas sempre que podia. Só que com um senão: nem sempre os vocábulos correspondiam aos contextos.

-Mas, o avô então morreu de quê? - Insistiu ela, já meio cabisbaixa por não ter conseguido obter a resposta que prometera às amigas do bairro indígena.

- Olha, gostaria que não insistisses nisso. Vamos chorar o Mais-Velho e acabou. – Disse Makenzo, num tom duro, como quem quer pôr ponto final à conversa.

- Mas as pessoas me perguntam. Sabes que sempre que vou ao mercado ou noutro sítio elas me confundem com a Mana Diana e perguntam se avô do marido morreu de quê.

Kenzo deu duas voltas sobre a palmeira que ensombrava o quintal. Era uma árvore nova que tinha dado os primeiros cachos de dendém. Tão jovem quanto eles, Kenzo e Dina. O professor recuou e respondeu:

- Morreu de parede!

- Hum? De parede?

Dina não se conteve e soltou um grito desesperado: - Waéééééé! Avô finale morreu mbora de parede, já viram azar?

O grito espantou os demais familiares que preparavam a batata-doce, a lambula[4] e a kisângwa[5] para o último dia do óbito.

- Mana Joana, você que é enfermeira antiga, me diz ainda. Parede também é doença? - Indagou Zeferino Gaspar, um vizinho que acompanhava a conversa.

- Oh Sô Zeferino, você com essa idade toda ainda não sabe o que são doenças e o que são brincadeiras do Kenzo que gosta de inventar palavras para impressionar as moças do bairro indígena?

- Oh tia Joana, mas o Kenzo falou com uma seriedade que me pareceu ser verdade. Deve ser nova doença. – Interrompeu Sá Domingas, conhecida interpretadora de sonhos no bairro. Há muito que é tida como a melhor vidente de Luanda e já comprou dois Hiaces e um turismo nesse seu ofício. É por isso uma senhora de respeito que quando abre a boca até as mulheres mais rabujentas do Sambizanga lhe dão ouvidos. Quando não tem pacientes com sonos por interpretar, Sá Domingas vende peixe no Roque Santeiro, seu negócio desde jovita[6]. É também a fornecedora de peixe aos vizinhos do bairro indígena que deixaram de ir ao mercado. É por isso que está no óbito do Mais-Velho Xinga Wanga.

A intervenção de Sá Domingas serviu para conter os ânimos por apenas alguns instantes. Era uma conversa de livros, de ciência e não de sonhos nem de peixes. Aquela doença prognosticada pelo professor Kenzo, um filho que todos viram crescer até se formar no estrangeiro, era estranha. Se o morto fosse outra pessoa, o Velho Xinga teria mesmo exclamado madiwano[7], como ele fazia sempre que algo estranho acontecesse. O burburinho começou novamente a ganhar corpo e só parou quando Kenzo voltou a pôr os pés no quintal de chapas de zinco com uma caixa de cerveja Biker entre as mãos.

- Mano Kenzo, nosso rapaz de confiança, - chamou carinhosamente Sá Domingas - nos explica ainda esta doença que matou o avô. Sabes que amanhã é dia de komba-di-tokwa e as coisas todas têm que estar bem esclarecidas para as pessoas irem embora para as suas casas sem dúvidas. Consentânea é doença de quê, meu filho? - Questionou Sá Domingas suplicante.

- Avô Domingas, eu estava a explicar a esta pacóvia da cunhada Dina que não tinha uma resposta certa sobre a morte do avô que, calculo, tenha morrido de parede. É uma forma satírica de amainar a minha dor. Na verdade, o avô morreu de uma contusão causada pela derrocada dos adobes[8] quando dormia na sua choupana.

- Ah! Agora sim. Então foi a parede que o matou, não e? - Questionaram as senhoras em coro. – Então o menino tem razão. Morreu mesmo de parede! - Concluiu Sá Domingas.



[1] - Do kimbundu varrer as cinzas; cerimónia que acontece no sétimo dia da morte de alguém.
[2] - Do Kimbundu gémeo.
[3] - Do Kimbundo Ku loza; o mesmo que disparar.
[4] - Sardinha.
[5] - Bebida feita de múkua ou milho e açúcar.
[6] - Adolescente; jovem.
[7] - Interjeição em kimbundu; o mesmo que azar.
[8] - Blocos para construção feitos de barro cru.

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