sexta-feira, 1 de agosto de 2014

AMOR A MACAU

O choro de Joaquina, prima e amicíssima de Ndinha, tinha tanto de pictórico quanto de realismo. As construções executadas pelos chineses e sua fraca durabilidade e qualidade estavam na boca do povo. À semelhança dos anos setenta do século XX, quando tudo o que fosse de fácil descartabilidade era atribuído a Macau, hoje também é assim: carro que não dura é chinês. Mulher estéril é da China. Bebé que morre precocemente é filho de chinês e até já se diz que doença de mulher grávida de chinês é colo aberto.

Ndinha tem 25 anos e uma estrada quase feita no campo do namoro. Entre simples deleite e busca de parceiro já tentou de tudo. De miúdos do bairro Sete e Meio, ao Cazenga, a jovens da baixa conhecidos em festas ou através de colegas de escola. As suas amigas de infância estão já emancipadas e com nenés às costas. Ela não. Os moços do bairro apartam-se dela como foge diabo da cruz.

A sorte de Ndinha tardava e era objecto de chacota por parte de meio mundo.
- Ndinha é lavra comunitária e não dá para ter como nora. - Atestavam as mães conservadoras para afastarem seus filhos da "dama do bom mataku", como também é tratada pelos jovens mais ousados na apreciação dos atributos e distribuição de epítetos.
 
- Ó menina, - apelavam as idosas do bairro, - estamos a ter ver só assim. A tua leva já passou. Veio outra e também já são mães, menos você. Assim encalhaste ou hipotecaste a nascença na ndumbaria[1]? - Questionavam as idosas mais espevitadas, enchendo a boca de palavras, mesmo faltando nela os dentes para a ngongwenha[2].

Certo dia cidade inteira ficou sem água. Em busca do concorrido líquido da vida. Ndinha adentrou o estaleiro da construtora China Ziang Do, tendo trocado olhares e depois gestos com TON WANG, empregado daquela obra. Estava lançada a primeira semente. Depois veio a rega, a sacha e o adubo. Até chegar a semente no seu ventre, não levou muito tempo. Os parentes tomaram conhecimento e fizeram advertências.

- Os chineses são população prisional. Não tarda, ele desaparece. Queres ver como se acorda mijada? Dorme com criança! - Advertiu Gaspar Kaquinta, tio de Ndinha, sem que ela lhe desse ouvido.
- Ó Ndinha, estás a cuspir, nê? Toma então cuidado porque obra de chinês dura pouco! - Aconselhou Joaquina, amiga e confidente.
Gaspar Kaquinta foi mais longe e convidou mesmo a sobrinha a fazer ou reconhecer uma marca especial ao seu asiático preferido, para que fosse fácil identifica-lo entre tantos parecidos, na hora dum provável dikulu[3].
- Lhe põe um kirimbu[4] que seja só teu. Na obra são muitos e fica custoso saber quem é quem. É preciso saber encontrar a agulha no meio da palha e não deixar escapar o autor, em caso de necessidade. - Aconselhou Gaspar, que a levou ainda a visitar a sua casa, construída há menos de três meses e que já apresentava fissuras por todo lado.
- Lhe manda ainda aqui ver a pouca vergonha dos conterras dele e ver se me ajuda a fechar os abrigos das baratas. - Falou carregado de ironia.
Ndinha fez ouvidos de mercadora. A conversa entrava por um ouvido e saia pelo outro até que os parentes deixaram de pôr colher em sua sopa.
Transcorreu o tempo. Ndinha engravidou e a barriga cresceu. Joaquina, enquanto amiga, foi alertando para que tivesse cuidado e tirasse proveito da situação de gestante.
- Não pode te engravidar assim, só à toa, sem nada. O cunhado Ton tem que te arrendar uma casa e te assistir em tudo. Isso de se tirar frio no quarto do estaleiro, onde enquanto um trabalha outro dorme na mesma cama, não fica bem a uma moça de família. Manda-o arrendar casa e põe lá colchão e condições. Mulher com colo aberto tem que dormir bem, comer bem e não fazer esforço. Se você arranjou já estrangeiro é para ter boa vida e não mais essa de se arrastar na lama da amargura. -Aconselhou a prima, sempre brincalhona mas atenta e pedagógica.
O tempo passou de forma arrastada. Ao oitavo mês, quase nove, mas não era ainda altura do parto, Ndinha pariu. Menina achocolatada pela mistura do negro dela e amarelo dele. Olhos rasgados e preguiçosos de quem foi forçado a tê-los. Menina, primeira de cor na família, cabelo era de pôr tesoura e vender às moças da carapinha dura.
As tias de Ndinha, vindas de longe, levaram misangas[5], óleo de mupeke[6] e outras oferendas para a bebé e a kivadi[7].
- Qual é o nome que lhe deram? - Indagou Nga Zefa enquanto ajeitava a sacola repleta de lembranças.
- Nome que lhe deram é TonDinha, junção dos nomes dos progenitores. - Respondeu a tia Teresa, parteira e conselheira da família.
Tudo parecia correr de forma remendável. Ton apareceu com os seus irmãos gémeos. Comeram e beberam até se fartarem. Fez-se festa. Ton prometeu casa e mobília, fogão e televisão.
- Caça tê. Telefisã també tê. Tá bom, nu tá bom?
- Tá bom. - Confirmaram os parentes de Ndinha, embora cada vez mais cépticos.
O tempo, esse recurso esgotável e não renovável, foi passado. Ton desapareceu, ou melhor, mudou de looking[8] ou de obra. Ndinha, sem fraldas para Tondinha, procurou insistentemente por ele e não o encontrou. Apenas outros obreiros a ele parecidos e que respondiam:
- Ton Wang aqui no tem!
Correram os dias amargos. Tondinha adoeceu e de Ton nem uma nem duas. A família começou a temer pelo pior, o que não tardou.
Tondinha levada às pressas à pediatria do hospital de Kapalanca não mais respirou. Foi emprestar sua cor aos tijolos.
De regresso à casa, com a menina esticada e embrulhada em lençóis que recordam os céus, Joaquina, desesperada, entornou uns frascos e no seu canto chorou cantando:
- Ndinha, minha prima, eu te avisei. Obra de chinês não dura. Tio Gaspar te acordou. Ate à casa dele te levou para veres que obra de chinês é maiuia! Tia Teresa, ‘infirmera’ de muito tempo, ainda te avisou que barriga de chinês só dá colo aberto. P’ra quê tanta teimosia, minha amiga? É mesmo só vontade de coisa pequena?!
Assim foi a estória de Ndinha e seu querido Ton de Zuang Hoo.
Obs: Publicado no Semanário Angolense, 13.09.2014.



[1] Prostituição (termo ambundu).
[2] Pasta feita com torrada de mandioca e açúcar.
[3] Problema; embaraço.
[4] Marca; carimbo (termo ambundu).
[5] Colares (kimbundu).
[6] Óleo de fabrico caseiro usado pelas mukubais (Huila/Angola) para adornar o cabelo.
[7] Parturiente (kimbundu).
[8] Aparência (do inglês Look).

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