O choro de
Joaquina, prima e amicíssima de Ndinha, tinha tanto de pictórico quanto de
realismo. As construções executadas pelos chineses e sua fraca durabilidade e
qualidade estavam na boca do povo. À semelhança dos anos setenta do século XX, quando
tudo o que fosse de fácil descartabilidade era atribuído a Macau, hoje também é
assim: carro que não dura é chinês. Mulher estéril é da China. Bebé que morre
precocemente é filho de chinês e até já se diz que doença de mulher grávida de
chinês é colo aberto.
Ndinha tem 25 anos
e uma estrada quase feita no campo do namoro. Entre simples deleite e busca de
parceiro já tentou de tudo. De miúdos do bairro Sete e Meio, ao Cazenga, a
jovens da baixa conhecidos em festas ou através de colegas de escola. As suas
amigas de infância estão já emancipadas e com nenés às costas. Ela não. Os
moços do bairro apartam-se dela como foge diabo da cruz.
A sorte de Ndinha tardava e era objecto de chacota por parte de meio mundo.
- Ndinha é lavra
comunitária e não dá para ter como nora. - Atestavam as mães conservadoras para
afastarem seus filhos da "dama do bom mataku", como também é tratada
pelos jovens mais ousados na apreciação dos atributos e distribuição de epítetos.
- Ó menina, -
apelavam as idosas do bairro, - estamos a ter ver só assim. A tua leva já
passou. Veio outra e também já são mães, menos você. Assim encalhaste ou
hipotecaste a nascença na ndumbaria[1]? - Questionavam
as idosas mais espevitadas, enchendo a boca de palavras, mesmo faltando nela os
dentes para a ngongwenha[2].
Certo dia cidade inteira
ficou sem água. Em busca do concorrido líquido da vida. Ndinha adentrou o
estaleiro da construtora China Ziang Do, tendo trocado olhares e depois gestos
com TON WANG, empregado daquela obra. Estava lançada a primeira semente. Depois
veio a rega, a sacha e o adubo. Até chegar a semente no seu ventre, não levou
muito tempo. Os parentes tomaram conhecimento e fizeram advertências.
- Os chineses são
população prisional. Não tarda, ele desaparece. Queres ver como se acorda
mijada? Dorme com criança! - Advertiu Gaspar Kaquinta, tio de Ndinha, sem que
ela lhe desse ouvido.
- Ó Ndinha, estás
a cuspir, nê? Toma então cuidado porque obra de chinês dura pouco! - Aconselhou
Joaquina, amiga e confidente.
Gaspar Kaquinta
foi mais longe e convidou mesmo a sobrinha a fazer ou reconhecer uma marca
especial ao seu asiático preferido, para que fosse fácil identifica-lo entre
tantos parecidos, na hora dum provável dikulu[3].
- Lhe põe um kirimbu[4] que seja só teu.
Na obra são muitos e fica custoso saber quem é quem. É preciso saber encontrar
a agulha no meio da palha e não deixar escapar o autor, em caso de necessidade.
- Aconselhou Gaspar, que a levou ainda a visitar a sua casa, construída há
menos de três meses e que já apresentava fissuras por todo lado.
- Lhe manda ainda
aqui ver a pouca vergonha dos conterras dele e ver se me ajuda a fechar os
abrigos das baratas. - Falou carregado de ironia.
Ndinha fez ouvidos
de mercadora. A conversa entrava por um ouvido e saia pelo outro até que os
parentes deixaram de pôr colher em sua sopa.
Transcorreu o
tempo. Ndinha engravidou e a barriga cresceu. Joaquina, enquanto amiga, foi
alertando para que tivesse cuidado e tirasse proveito da situação de gestante.
- Não pode te
engravidar assim, só à toa, sem nada. O cunhado Ton tem que te arrendar uma
casa e te assistir em tudo. Isso de se tirar frio no quarto do estaleiro, onde
enquanto um trabalha outro dorme na mesma cama, não fica bem a uma moça de família.
Manda-o arrendar casa e põe lá colchão e condições. Mulher com colo aberto tem
que dormir bem, comer bem e não fazer esforço. Se você arranjou já estrangeiro
é para ter boa vida e não mais essa de se arrastar na lama da amargura.
-Aconselhou a prima, sempre brincalhona mas atenta e pedagógica.
O tempo passou de forma
arrastada. Ao oitavo mês, quase nove, mas não era ainda altura do parto, Ndinha
pariu. Menina achocolatada pela mistura do negro dela e amarelo dele. Olhos
rasgados e preguiçosos de quem foi forçado a tê-los. Menina, primeira de cor na
família, cabelo era de pôr tesoura e vender às moças da carapinha dura.
As tias de Ndinha,
vindas de longe, levaram misangas[5], óleo de mupeke[6] e outras
oferendas para a bebé e a kivadi[7].
- Qual é o nome
que lhe deram? - Indagou Nga Zefa enquanto ajeitava a sacola repleta de
lembranças.
- Nome que lhe
deram é TonDinha, junção dos nomes dos progenitores. - Respondeu a tia Teresa,
parteira e conselheira da família.
Tudo parecia
correr de forma remendável. Ton apareceu com os seus irmãos gémeos. Comeram e
beberam até se fartarem. Fez-se festa. Ton prometeu casa e mobília, fogão e
televisão.
- Caça tê.
Telefisã també tê. Tá bom, nu tá bom?
- Tá bom. -
Confirmaram os parentes de Ndinha, embora cada vez mais cépticos.
O tempo, esse
recurso esgotável e não renovável, foi passado. Ton desapareceu, ou melhor,
mudou de looking[8] ou de obra. Ndinha, sem fraldas para
Tondinha, procurou insistentemente por ele e não o encontrou. Apenas outros
obreiros a ele parecidos e que respondiam:
- Ton Wang aqui no
tem!
Correram os dias
amargos. Tondinha adoeceu e de Ton nem uma nem duas. A família começou a temer
pelo pior, o que não tardou.
Tondinha levada às
pressas à pediatria do hospital de Kapalanca não mais respirou. Foi emprestar
sua cor aos tijolos.
De regresso à
casa, com a menina esticada e embrulhada em lençóis que recordam os céus,
Joaquina, desesperada, entornou uns frascos e no seu canto chorou cantando:
- Ndinha, minha
prima, eu te avisei. Obra de chinês não dura. Tio Gaspar te acordou. Ate à casa
dele te levou para veres que obra de chinês é maiuia! Tia Teresa, ‘infirmera’ de muito tempo, ainda te
avisou que barriga de chinês só dá colo aberto. P’ra quê tanta teimosia, minha
amiga? É mesmo só vontade de coisa pequena?!
Assim foi a
estória de Ndinha e seu querido Ton de Zuang Hoo.
[1] Prostituição
(termo ambundu).
[2] Pasta
feita com torrada de mandioca e açúcar.
[3] Problema;
embaraço.
[4] Marca;
carimbo (termo ambundu).
[5] Colares
(kimbundu).
[6] Óleo
de fabrico caseiro usado pelas mukubais (Huila/Angola) para adornar o cabelo.
[7] Parturiente
(kimbundu).
[8] Aparência
(do inglês Look).
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