domingo, 1 de março de 2015

O TIO, O PASTOR E O GREGO DO SETE & MEIO

Depois de a "Classe de Kwanza-Sul" se ter emancipado do cargo de Kalemba, eu era o centro da disputa ao domingo, entre o casal que me adoptara para criação.

Órfão aos oito anos e deslocado de guerra, aliás, “recuados”, era esse o vocábulo dos anos 80 do século XX que designava aqueles que tinham abandonado suas terras de nascimento em busca de protecção nas cidades controladas pelas forças governamentais, no tempo da República popular de Angola, eu era árvore de caule flexível e que não resistia ao vento.

Explicando os termos: Classe é um espaço de culto entre os Metodistas Unidos, onde realizam encontros matutinos ou nocturnos, ao longo da semana. Cada membro da Igreja Metodista Unida frequenta, normalmente a classe do seu bairro.

De Maio de 1972 a Julho de 1983, um grupo numeroso de kwanza-sulinos residentes em Luanda e seus descendentes que tinham frequentado vários templos Metodistas da capital decidiram em fundar a sua classe que anos mais tarde veriam ascender à categoria de cargo ou “Igreja” como designam os locais de culto ao domingo. Entre eles havia também alguns malanjinos, kwanza-nortenhos e outros provenientes do centro norte e centro sul. Porém, os “kikís”, como são designados na intimidade os kibalistas e seus conterrâneos do Kwanza-Sul, eram a maioria. Se calhar, daí o nome “Classe Kwanza-Sul” não ter enfrentado resistência.

A "Classe Kwanza-Sul" subordinava-se à “Igreja”(templo) de Kalemba, que fica nas traseiras do cemitério de Sant’ Ana, ao Kilamba Kyaxi. Em 1983, a Classe emancipou-se, separando em termos de frequência dominical o casal que me tinha como tutores. Ele, também um kwanza-sulino, preferiu continuar na Kalemba onde tinha amigos e próximo da casa da filha. Na “igreja de Kalemba os ovimbundu e ambundu do centro estavam em maioria, embora lá cultuassem também catetenses, como a família da minha contemporânea Luzia Mateus Pedro. Ela, a esposa do meu tio, decidiu frequentar a novel “igreja” que ficou baptizada com o nome do profeta que levou os escravos israelitas do Egipto à terra prometida de Israel, Moisés. Como quem dá de beber e de comer aos filhos é a mãe, tive de segui-la e recorrer ao tio apenas para os conselhos e o dinheiro para o ofertório. Aliás, ele fazia questão de dar-mo todas as manhãs de domingo, antes da nossa separação de casa.

A caminho da igreja eu e a tia seguíamos caminhos distintos. Ela ia com as suas amigas da classe, e eu com os meus kambas da EBF (Escola Bíblica de Férias e do Pavilhão Infantil). O regresso é que era comum, devido as compras, à porta do Supermercado Nzala Ikola ou nas bancadas da Praça das Corridas (hoje conhecida apenas por Praça do Tunga Ngó).

Num domingo em que a tia não fora à Igreja, por razões que a memória se encarregou de apagar, caminhava em direcção à Moisés, com os meus amigos, quando a metros do Nzamba 1 nos deparamos com gente reunida à volta de um homem que falava sem cessar. Havia muita gente. Uns eram devotos e outros meros curiosos como nós que paramos para ver e depois contar aos ausentes. Uns sentados e outros em pé. Era uma nova confissão religiosa e um pastor muito eloquente. Daqueles que o meu amigo Murtala satirizou em música por “pastor murras”. O homem tinha sobre o púlpito um livro “Verbo Divino” que coincidia com a sua verborreia. E todos o ouviam, até os que se dirigiam ou saiam de outras “ngelús” bebiam e comiam um “koxitu” daquele sermão que aos cristãos mais treinados lembrava o Sermão do Monte, proferido pelo nazareno coroado Rei Celestial.

O “pastor murras” falava sobre o comportamento dum bom crente da sua igreja que “deve dar a face esquerda depois de apanhar uma valente galheta na face direita”. E continuava ele:

- Irmãos e irmãs, fui enviado pelo nosso pai, tal qual foram enviados os profetas da antiguidade. Um bom cristão tem de saber perdoar…
Os seus ouvintes seguiam-no atentos e, entre ligeiras pausas, recebia aplausos e assobios dos que se mostravam contentes, até que um “grego” do Sete e Meio irrompeu dentre a multidão com um “é mentira”!

Empolgado, “o pastor murras” esqueceu-se da pregação e soltou um veemente “vai para o carvalho, seu bandido!”

Foi a dispersão total dos que seguiam e se sentiam empolgados com aquele parlatório. Dos aplausos, passou a receber "mixoxu" de meio mundo.

Felizmente chegamos a tempo ao nosso Pavilhão Infantil para cantar o “kasanje-kasanje” do tio Farias, “Margarida Morena” da mana Cândida ou “o elefante que incomoda muita gente”.

De regresso a casa, aguardei pelo tio que chegava às duas da tarde e informei-o sobre os dislates dum pastor, seguido de perguntas “se pastor que é quase deus também ofende”.

- Como assim, sobrinho? No Kwanza-Sul o vosso pastor mordeu a língua?

- Não tio. Foi um pastor de rua que respondeu a um grego do Sete e Meio com um duro palavrão.

- Ai é? - O ancião procurou por palavras conciliadoras para “lozar” o seu conselho habitual, sem ter de desprestigiar o homem do verbo fácil, nem desencorajar-me de ouvir a palavra sagrada.

- Meu sobrinho, faz sempre o que te digo, mas nem sempre o que faço. O diabo está sempre á espreita e o tio ou o pastor pode errar. Aliás, não foi o pastor quem ofendeu o grego. Foi diabo quem se serviu de sua boca!

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