quarta-feira, 15 de julho de 2015

A CAÇADORA DE HISTÓRIAS PERDIDAS


Ela tem 35 anos e foi sempre seu sonho constatar in loco algumas das coisas que tinha aprendido nos livros do ensino primário do seu tempo.

Apesar de ter nascido depois de Agostinho Neto, Senje ainda estudou nos livros daquele tempo que se seguiu a revolução, onde os manuais escolares levavam o aluno ao pais inteiro.

Estudou a floresta de Maiombe e "o tronco da árvore", Cacuaco e "a vida na comuna", Lunda e "Cazaji e Mona Quimbundo", Quibala e "as sepulturas em pedras" como monumentos históricos, bem como Mandume ya Ndemufayo e o seu túmulo em Oiole. "Ekuikui II, escola número 80 do Huambo", entre outras histórias e estórias do planalto eram já "pão de cada dia" por ter nascido no planalto do Vye.

Convidada pelo marido e acompanhada pelos filhos, Senje foi surpreendida com uma pequena urbe do Leste de Angola que lhe tinha colado ao ouvido. Fora obrigada a decorar o texto do livro de leitura da terceira classe. Era obrigação, naquele tempo, quer soubesse ou não ler, recitar nas aulas os textos de leitura.

Nessa sua aventura de conhecer as emblemáticas localidades descritas nos livros de leitura escolar já tinha estado em Cacuaco, onde não mais encontrou as salinas e as fábricas, nem os peixes que "brilhavam como prata na areia". Os pescadores que encontrou eram uns biscateiros sem história nem paixão pelo mar. Acto continuo, seguiu no seu jeep à ainda comuna do Úcua, descrita como "a mais pequena, onde vivia a Ana, prima do Dudu, Beto e Tito que eram de Cacuaco". No Úcua, nem os personagens nem as vivências pôde reconhecer. Apenas animais quase vivos, a sagrar, pendurados em espetos e a aguardar por compradores. Desiludida, partiu para Quiculungo onde a "fazenda que o livro apresentava em fogo" era desconhecida de todos.

- Por que nos mentiram tanto? - Perguntara aos jovens que encontrara sem que deles obtivesse resposta. Mas não desistiu e Senje continuou a marcha, procurando dar sentido aos conceitos.

Chegou ao Leste e alimentou o sonho de conhecer "Cazaji e Mona Quimbundo" que ficavam a mais de meia centena de quilómetros de Saurimo. Seria o cumprimento dum velho desejo. Tudo o que aprender, através dos livros eram relatos sobre "um povo bravo na luta e que se dedicava ardentemente à agricultura do arroz, mandioca e outras culturas, à pesca, à caça e ao artesanato" que muita água lhe enche a boca, agora que vai conseguindo alguns kwanzas fruto do seu novo emprego. 

- Aonde vamos, marido?

- À fronteira.

- Com a Zâmbia ou Congo?- Insistiu Senje ao marido que se mostrava pouco dado a conversa. Na verdade queria manter o segredo quanto ao destino.

- Fronteira com o Congo Democrático que é o vizinho com quem mais terreno partilhamos. Vamos comprar "bubús". - Ironizou o marido, sempre atento à condução e pouco dado a falas.

Senje e os dois filhos, rapaz kasula e menina, se deleitavam com as paisagens naturais abundantes naquelas paragens.

- Papá, olha praia. - Atirou o kasula, ao que a irmã corrigiu:

- Não é praia. É rio.

- Também tem árvore, papá. - Voltou a alertar o rapaz encantado.

Senje ainda aproveitou apelar aos filhos para que não distraíssem o papá que estava atento à estrada e aos carros com que cruzavam.

Era tarde chuvosa e com visibilidade reduzida, para além de trafegarem na rodovia uns "kazukuteiros" em velocidade acima do convencional.

- Mas é mesmo para a fronteira que vamos? Quanto tempo levaremos? - Insistiu Senje.

- É sim e estamos quase a chegar. - Garantiu o marido depois de confirmar o contador de distâncias  do veículo  que registava já 51  dos 52 quilómetros que separam Saurimo do antigo posto militar colonial, também tida em alguma literatura histórica como  "a primeira capital da Lunda", antes de Henriques de Carvalho fundar a cidade associada hoje ao brilho dos diamantes.

Não tardou o grito de alegria.

- Eh, eh! Mona Quimbundo do livro da terceira! Obrigado pela surpresa. Era mesmo meu sonho conhecer essa localidade que já tirou muitas lágrimas a meus colegas da terceira.

Percorreram  a comuna, um antigo posto militar na expansão militar que se seguiu à Conferencia de Berlim, quando os portuguese precisavam de mostrar aos parceiros europeus que detinham o domínio sobre as terras de Mwatisenge, a leste da colónia de Ngola, e definirem com os belgas e ingleses as fronteiras das possessões saídas do encontro realizado na Alemanha entre 1884 a 1885.

Adentraram a comuna do "artesanato, pesca e agricultura" que não viram. Da agricultura ressaltavam apenas algumas estacas de mandioqueira que se perfilavam paralelas à estrada, uma produção que indiciava ser mais para auto-suficiência do uma produção direccionada ao mercado. As poucas cantinas estavam repletas de produtos importados e peça artesanal nem mesmo o largo da escola ou o da administração colonial tinha. Nas cantinas ninguém tinha visto ao longo do ano defunto.

- Artesanato ,aqui? - Era só mesmo no tempo de Agostinho Neto. - Atirou um idoso interpelado, acrescentando que "o único ganho que tivemos foi de sermos mais conhecidos do que a própria província e a sua capital. Todos os pioneiros da escola do país inteiro sabiam que existe uma circunscrição em Angola com o nome de "Mwa Cimbundu" e cujo povo pratica a agricultura, a pesca e o artesanato" - Explicou o septuagenário, sorridente.

Passaram pelo hospital comunal que possuíam uma ambulância. A escola tinha uma  placa a indicar "inaugurada por S.Exa. Primeiro-Ministro Nandó". Visitaram o Centro de Acolhimento de Menores e foram ver as antigas instalações da administração colonial: umas em ruínas que reclamam reconstrução ou substituição, para acabar com as "casas de kazumbis", e outras já refeitas do ostracismo a que haviam sido votadas durante os anos de "trungunguismo".

- Papá, quem vive nessa casa dos "cazumbis"? - Perguntou o kasule, atento a cada pormenor da viagem.


Nota: texto publicado no Semanário Angolense de 14.03.2015

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