terça-feira, 1 de setembro de 2015

JULGAMENTO DE MAKOJI


- Mana me dá só água, por favor. - O moço suava por todos os poros.
- Estás a “coloriar” assim porquê? Não tem água.
- Mana, me dá só água, você “és” minha professora no Mwa Cisenge. – Replicou o jovem pedinte, tentando buscar compaixão.
- Mas estás assim com tantos galos (hematomas) na cabeça porquê? - Voltou a questionar a dona de casa, por sinal, ex-professora do jovem.
- Estamos aqui, no soba, num “makoji” que estão a negar “na” família do indivíduo que lhe apanhamos. Já se experimentamos lá um bocado (lutamos um pouco).

A irmã da professora ainda tentou acudir o diálogo entre o homem acossado pelo fogo da peleja e a ex-professora que não queria ver sua casa inundada de gente atrás do líquido que mata a sede.

- Mana, “lhe dá” só uma caneca. Isso é pecado. – Acudiu, dirigindo-se para a cozinha.
Assisti a luta que decorreu a metros da casa onde me encontrava a petiscar funje com kizaka e kabwenha que para os tucokwe é xima nyi ixi, nyi matamba.

As meninas presentes na festa de aniversário duma lactente tanto dançavam ao “do cotovelo” como se esmeravam na cyanda que é ritmo e dança local, aprimorando os toques e contornos eróticos daquela balada. As que melhor executavam a dança eram agraciadas com elogios da assistência ou mesmo alguma pecúnia. A maralha toda vibrava ao som da música “Moyo” de Xavitu mwana Kakolu.
Perante o sofrimento e as súplicas do jovem, ferido por fora e queimado por dentro, que precisava de enviar algumas gotas de água boca adentro, decidi dar-lhe a minha garrafa que fica de reserva que estava no carro. A água devia ter a temperatura ambiental, a rondar os 33 graus célsius, mas ele tragou-a num piscar de olho.

- Obrigado, meu mano, ngunasakwila cinji. - Replicou na língua que me pareceu dominar melhor. Articulava os fonemas e as construções frásicas como um bagre nadando em águas tropicais turbinadas pela chuva.
O bairro é Terra Nova. O município Saurimo. A numeração indicava: AMS-TN-ZA-14… O falar alto de gente exaltada despertava quem por lá passasse. Eram vozes e músculos a gritarem altos. Enquanto na rua a razão da força imperava entre os partidários do acusado de colheita em ceara alheia e dos acusadores, ao que se dizia, sem provas materiais, lá dentro, na cyota do soba, era a força da razão, fundamentada com adágios seculares da terra, quem mais vociferava.

Apesar de bairro periférico da capital lunda-sulina, muitos habitantes preferem ainda recorrer à autoridade tradicional e ao direito consuetudinário para dirimir as suas querelas. A polícia e os órgãos vocacionados à administração da justiça andam a leste do que se passa no interior do(s) bairro(s), ou melhor, ninguém se lembra deles quando o assunto não atinge proporções irresolúveis no foro tradicional.
Primeiro os músculos, depois o soba e a fixação de indemnizações aos ofendidos. É assim no interior dos bairros e das aldeias nordestinas. Episódios sobre makoji (adultério), ofensas e danos morais e ou materiais, acusações de práticas feiticistas, etc., fazem parte do menu das queixas que chegam ao soba.

Às vezes, os músculos tentam resolver (sem o sucesso esperado) parte do problema ou medir a pulsação familiar. “Assim já, se você lhe dá uma boa surra, pode dizer no soba para ficar já assim”, contou-me o amigo que suplicava por uma gota de água que nem “Lázaro e o Rico”. É que quem não frequenta aqueles lugares, acha que todos têm razão. Vociferam, ensaiam poses para peleja. Mangas normalmente arregaçadas e calças com os joelhos enlameados por causa das “basulas”.
Lá dentro, porém, há ordem. A autoridade e o juízo do soba são incontestáveis. Todos concordam com a eficácia da justiça e justeza da lei e observam silêncio, entrecortado apenas pelo desfilar de adágios não muito acessíveis ao entendimento dum jornalista "mukwakwiza". O soba dita a sentença e todos batem palmas, os da parte do queixoso e os da parte do queixado. Os que estão fora deixam de mandar vozes ao vento e ficam expectantes. Espreitam pela porta de gradeamento mas nada vislumbram. Não tarda, queixado e queixoso saem abraçados, como se de amigos de longa data se tratassem. O soba recomendou paz e cumprimento da sentença para que o mal não se reproduza entre a família.
- Ides em paz e não voltem a lutar! – Terá ordenado a autoridade tradicional.

Quanto a mim, que precisava de matar toda minha a curiosidade e ouvir as partes, recebi apenas um consolo do meu primeiro interlocutor:
- Mano, obrigado pela água, mas o soba disse que você não pode entrar para falar com ele. Tinha que ser família das pessoas que se deram “mulambeno”!

O queixado promete cumprir a indemnização para o makoji que entretanto jura não ter cometido. Mas cumpre. Makoji não é só quando se chaga a vias de facto. Ter a intenção de passar o outro pelas costelas dá, em termos de interpretação do direito consuetudinário, no mesmo que adultério.

- É “catoqueiro”? Um milhão de kwanzas! - Dizem que para esses o valor baixou, dado que trabalhar numa empresa de “kamanga” já não rende tanto quando rendia há dez anos.
- É bancário? Um milhão e meio. - Ninguém explica porquê, mas cogita-se que seja pela facilidade com que alguns se fazem aos empréstimos ou juntam os cêntimos alheios.

Mas o “lavrador” era camponês e ficou-se pelo cabrito, galinhas e kibutos de bombô. A garina permaneceu com o esposo que viu sua “honra lavada”?!


Nota: Texto publicado no Semanário Angolense, edição de 07.03.2015.

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