sábado, 10 de setembro de 2016

O IRMÃO PIRIGO


Gabava-se de rua em rua e de sol a sol. Era por todos conhecidos como um grande devoto e nas discussões bíblicas tinha fundamentos até para derrubar alguns clérigos menos preparados. "Foi a guerra que me tirou do ministério. O meu nome já 'encosta ‘na' lista dos 144 mil que vão 'no' céu!” Afirma convicto.

No bairro e na igreja que frequentava, era até então chamado de "irmão Catorze-Quatro", em alusão aos três primeiros algarismos que na numeração árabe ganham, à direita, três zeros para completar o número dos escolhidos, que segundo o livro da bíblia cristã, Apocalipse 14:01, vão governar a terra com Cristo, num executivo que terá o seu palácio no alto dos céus.

Na terra, dizia o irmão Catorze- Quatro, ficariam as mulheres e homens de boas obras, mas que pela sua inconsistência, não chegavam a atingir a excelência cristã. O patamar em que se julgava estar.

Catorze-Quatro tinha todos os versículos de Apocalipse e Salmos 115:16 bem sublinhados e abria-os prontamente para se defender sempre que fosse afrontado por jovens reformistas e inconformados com a maneira como o templo físico era governado pelos “kotas” da velha guarda. Era também o primeiro recurso àqueles que se iniciavam na “pregação da palavra” ou que participassem de debates inter-eclesiais.

Filho de uma camponesa alfabetizada e de um comerciante de fuba e peixe seco, Catorze-Quatro nasceu numa missão evangélica protestante e lá fez toda a sua instrução preparatória, até à chegada da idade militar que lhe “roubou o sonho de se tornar pastor ordenado”, quando já frequentava o curso propedêutico no Seminário Emmanuel Unido do Ndondi, no planalto angolano. Manteve, porém a vocação sacerdotal e fazia questão de se gabar de ser “um dos poucos escolhidos que conhecerão e trabalharão 'caralmente' com o Messias no seu governo vindouro e sem fim".

Já a descrever a curva dos cinquenta e com a berma encefálica apinhada de algodão, Pinto Kwononoka, de sua graça, lutava para ser elevado à categoria de diácono, ao mesmo tempo que se esforçava em ser um “velho-jovem", aderindo a todas as modas físicas ou virtuais que lhe chegavam pelas redes sociais.

Era um “velho actualizado”, diziam os mais novos. Há já anos que as suas roupas se pareciam à pele colada ao animal ainda vivo. Os seus telefones eram todos de último grito e tinha plano infinito de internet que lhe permitia passar a vida a dedilhar, mesmo durante os cultos dominicais. Na igreja, para não dar nas vistas enquanto trocava mensagens, escolheu um lugar estratégico para a sua nova mania: senta-se próximo de um pilar de sustentação com uma saliência que faz um ângulo recto, onde disfarça o aparelho em que palavreia com os amigos durante o culto. E foi levando a sua "santidade de mentira" com a “cipala” semi-lavada até ao dia em que foi chamado para abençoar o ofertório da igreja.

- Irmão Catorze-Quatro, leva-nos a Cristo em oração! - Pediu o reverendo Kabwiza.

O dia era de sol. A subida de temperatura era acompanhada com o vigor das vozes corais dos grupos alfa e ómega e dimatekenu nyi dizubilu. Cantaram garbosamente os coros, um a um, fazendo "descer o céu à terra". Para uns, a arrebatamento estava para segundos. O pastor tomou a palavra para agradecer os coros e os “dizimistas” do primeiro domingo daquele mês de sol e chuvas fartas.

"Convido o nosso querido papá Catorze-Quatro para nos levar a Cristo em oração", anunciou o reverendo.

Catorze-Quatro que, apenas ouvira o peido do pastor mas não percebera, se manteve pregado no acento corrido de madeira e a olhar para a “auto-cipala” que tinha acabado de fazer para brindar a amiga com quem teclava ao telefone, até que o pastor voltou a apelar, num tom mais audível e algo sério. "Irmão Catorze, abençoe a oferta, por favor".

Sem desligar o telefone, o benquisto irmão Catorze, o mais falado da congregação, elevou as mãos ao alto, antes dos habituais dois passos que separam o orador do assento, e começou a sua evocação:

- Meu Deus, mô papá, abre teus olhos e estende a tua mão aos nossos jovens. Cada dia há mais desvios. O "pirigo" está em cada esquina, em cada beco, em cada telefone, meu Jesus. Faz do teu espirito santo um pastor atento, mô papá, para nos proteger dos lobos presenciais e virtuais, mo Dedê (...) Aqui mesmo na ngelú, enquanto oramos, outros se preparam para nos devorar psicologicamente. Uns são nossos irmãos no templo e nossos inimigos na rua. Mô Dedê, sabes o tudo quanto nos falta e nos enfraquece. Derruba grilhões, retira as pedras de tropeço dos nossos caminhos… Em nome do teu filho, nosso irmão na carne, que espero me receba no seu governo celestial, te peço infinitamente. Amem!

Catorze-Quatro baixou as mãos, abriu os olhos, e ao descrever aos 180 graus, deparou-se com uma circunferência formada por jovens no seu canto preferido. Enquanto orava, a loira que do outro lado aguardava pelo "selfie", foi enfeitando o telefone do irmão Catorze-Quatro com mensagens eróticas e imagens, umas em estado animalesco e em poses “kamasutranas”, que divertiram, nos quinze minutos da sua longa petição de “perdão e abertura dos bolsos", os jovens que rápido se abeiraram das suas máquinas: um potente telefone e uma interlocutora da conversa virtual “bem calibrada” fisicamente e com tudo à mostra.

Quando se dirigiu ao assento, foi recebido com um criativo "irmão Catorze, temos de redobrar a vigilância e vergar cada vez mais o joelho, os telefones estão cheios de perigos”, ao que respondeu com um cabisbaixo “sim, irmãos. O mundo é um ‘pirigo’ permanente”, dando-se conta do "cinema sem bilhete” que proporcionou à miudagem, ao mesmo tempo que eliminava, uma após outra, as mensagens eróticas e imagens com a “cipala” e o "peito alto" da “kindoza” que se parecia a uma “kuribeka” barata e caçadora de tesouros.

"Irmão 'Pirigo'", irmão Pirigoéé?! - Zombam hoje os jovens, dentro e fora da igreja, sempre que Catorze-Quatro põe a cara fora do quintal. A sua fama ainda corre o Rangel, pois apesar do acontecimento levar já décadas, os miúdos que se tornam adolescentes e jovens ainda escrevem, e cada vez mais, em todas as ruas onde é conhecido: "por cá também passou o irmão 'Pirigo!'"

Texto publicado pelo Semanário Angolense a 19.09.2015

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