segunda-feira, 1 de julho de 2019

"BALA PERDIDA" ESTÁ FORMADA (IV)

Bernardo Manuel, mão no touch screen do telefone, outra mão no queixo a travar a cabeça. De baixo do boné só pensamentos, a pensar com corrida pensamentos que lhe correm como água rápida do Longa caudaloso no Kabutu.
- Por que Avança avançou com minha descendência de grande parecência sem me avisar? Como lá chegar e como informar a dona Pancha? - Sozinho em casa, Pouca Sorte matutava. Na boca, ora cachimbo, ora katula mbinza para aliviar pensamentos.
Os da escola estavam quase a chegar. Menos a mulher, dona Pancha, que voltava às seis e meia da noite.
- Papá, aquela moça da foto, nome dela verdadeiro é Sputnika Tatiana Manuel. - Informou Faz Tudo, antes mesmo de jogar a mochila sobre o sofá.
- Como assim, Fafá? - Bernardo era único em casa que encontrara um diminutivo para Faz Tudo, um nome que tinha transposto o quintal e o convívio familiar. Era faz tudo p'ra cá e p'ra lá, até na escola. Fátima era só mesmo na hora da chamada escolar ou de viajar, no aeroporto.
- Sim papá. Teclei com ela. Mora mesmo em Luanda e é filha da coronel Avança, da Escola Superior de Guerra. Falei-lhe que quero ser militar como a mãe dela e ela mandou-me procurá-la se acompanhada do papá ou da mamã.
- Mas como é que chegaste a ela? Como? Como é que faço da minha vida?
O questionário de Pouca Sorte seria cortado pela chegada de Ricardo, o filho mais velho, acompanhado de Mendinho, o derradeiro.
- Comué, Bué de Sorte? Conseguiste nos dar uma irmã mais velha?! - Atirou Ricardo, troçando e abraçando o pai.
Faz Tudo tinha, como lhe era hábito, feito tudo. As buscas, o processamento de informações, a hierarquização e a distribuição à mãe e aos irmãos.
Pouca Sorte fingiu um sorriso desconfiado. Olhou para o relógio do telefone e recebeu a informação horária que apontava para a chegada iminente de dona Pancha. Foi à garrafeira e tomou um trago, mais um, mais outro. Katulambiza-das-ponteras, de Malanji, deslizava na garganta como água e coragem de enfrentar caralmente dona Pancha ou se acobardar na kapuka tardava.
Olho na porta, lho no telefone, olho na garrafa. Pouca Sorte, corpo na terra pensamento no ar. Era ao mesmo tempo homem e vento.
- Que direi à Pancha quando chegar? - Murmurou.
- Pum, pum, pum, pum. - Não tardou o bater à porta.
- Quenhê? - Indagou Pouca Sorte, desejoso de encontrar um buraco para se enterrar.
- Dona de casa. A senhora que manda aqui. - Era desse jeito que Pancha respondia quando o inquiridor fosse o marido ou o filho mais velho.
No abre-não-abre, Pouca Sorte ficou-se entre a saída da sala e o portão. Sem forças para caminhar, sentiu-se um papel sem peso.
- Ricardo?! Vai atender a mamã.
O jovem, 20 anos feitos, correu da cozinha à sala como bala.
- Esteja tranquilo, papá. Já preparámos a velha.
- Boa noite senhor Bernardo Manuel, "Muita Sorte". Sabes o que trouxe hoje para ti? Adivinha. - Saudou Pancha que não deu tempo para resposta, exibindo uma revista soviética dos anos oitenta. Era uma Sputnik, coincidentemente o nome da filha até então oculta involuntariamente.
- Lê a revista e prepara os teus filhos para receberem a irmã. Está registada com o teu sobrenome e já tem formação e lar. Sabes como é tratada em casa dela?
- Não, mulher!
Aié? Devias começar a investigar mais. É Bala, apesar de ser Sputnika Tatiana Manuel, no bilhete!

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