Caminhava exausta pela savana. Era tempo chuvoso e capim alto a mostrar apenas as cabeças de pessoas altas. O sol, bom para alegrar a vida e as sementes a querer ser vida, brilhava no alto dos céus de meio-dia, fazendo-a caloriar[1] como se tivesse atravessado um dos imensos rios a nado.
Perto de uma pequena floresta onde pacaças e alguns elefantes buscavam
sombra encontrou um animal inanimado, mas ainda com sinais vitais. Aproximou-se
corajosa, sem espingarda, nem catana, e verificou que a pacaça tinha sido
atacada por um crocodilo.
- Há carne para conduto, há "mahaki"[2], há pele para alparcata,
há chifres para soprar e levar mensagem distante. Haverá festa nas aldeias
todas. - Disse a formiga sortuda.
Com auxílio de um pau e uma pedra, desmontou um dos chifres do animal e fez
uma corneta. Ganhou mais força ainda. O cansaço que trazia tinha sido
literalmente anulado pelo achado. Era só a festa que lhe corria no sangue.
Subiu ao topo de uma kamunda[3] que se achava no centro de
cinco aldeias e gritou com toda a força que permitia o seu diafragma:
- Vocês aí, nessa aldeia onde se põe o sol, tragam baldes, facas e homens
fortes. Temos pacaça.
Virou-se à nascente:
- Mwa mama, lyatata. Tokano. Ambatano
l'ombya phala masaki ly langinga. Utana ly laphoko mwaxyale![4]
Ao norte e sul fez mesmos apelos e, num correr de pouco tempo, a floresta
encheu-se de homens e mulheres corajosos, cheios de vigor e vontade de uma rica
funjada de miudezas regada com maluvu[5].
As mulheres acondicionaram o sangue, o fígado, o coração, os rins, pâncreas
e pulmões em panelas. Com a água trazida nas cabaças as jovens raparigas
lavaram as tripas e os intestinos para a confecção de jinginga[6].
Os jovens, rápido acenderam uma fogueira para os assados de primeira hora,
enquanto os makota[7]
planificavam e repartição do animal pelas cinco aldeias. Depois seria a gestão
de cada soba, dividindo a parte a receber por cada lar da sua comunidade.
Essa cena já leva milênios. Porém, até hoje, quando a mulher se senta de
baixo da árvore do seu terreiro, a catar os piolhos na cabeça da neta, vem-lhe
à memória o grito, daquela formiga que achou no meio do capim uma mosca e
chamou todos os seus semelhantes das aldeias à volta para carregarem e
repartirem a carne do grande animal que era a mosca.
[1] Transpirar.
[2] Sangue para sarrabulho
ou para colorir a jinginga (Kimbundu).
[3] Monte, elevação ou
pequena montanha (Umbundu).
[4] Mulheres e homens,
venham. Tragam panelas para o sangue e as miudezas. Não esqueçam de trazer
catanas e facas Kimbundu).
[5] Vinho de palma ou
seiva de palmeira (Kimbundu).
[6] Miudezas: tecidos do
tubo digestivo, fígado e outros órgãos internos (Kimbundu).
[7] Os mais velhos (Kimbundu).
Texto publicado pelo GAZETA-Lavra e Oficina, UEA, 2021
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