O boné policial estava esquecido na ponta de um arbusto cortado para alimentar fogueira e cuja cercania guardava a descarga intestinal de alguém que na véspera se alimentara de milho.
Sa Ufuku caminha à frente dos filhos e sobrinhos, em coluna, apesar de poderem andar aos pares. Cimene-mene, o filho kasula, foi quem viu o chapéu.
- Apanhar não é roubar gritou, fazendo atenção de se dirigir ao achado, que estava a metro e meio da picada.
- Xé! Toma cuidado. Não sentes o cheiro que vem da mata? Deve haver aí qualquer azar. Deixa o chapéu e vamos embora. Está a nascer sol. - Alertou o ancião, tentando despistar o filho de uma desgraça.
«Deve haver cadáver por perto», pensou sem o dizer.
Traquina, Cimene-mene, fazendo
descaso do aviso do velho, deu um salto e pegou o boné.
- É meu e ninguém me recebe. -Alertou.
- É da polícia. - Disse-lhe o primo
Lwanya.
- Então deve acontecer qualquer
coisa estranha aqui. Assim o autor dessa pouca-vergonha é polícia?! Vou
apresentar queixa na esquadra. –Desabafou Sa Ufuku, endireitando o cachimbo na
boca.
O desfiladeiro do amor, caminho
que trilhavam, é uma linha longitudinal de 2,5m de largura. Foi assim apelidado
pelos jovens que o frequentam para seus namoricos longe dos pais e dos
incómodos da polícia, que proíbe aventuras amorosas em viaturas nessa zona.
O desfiladeiro parte da Estrada Nacional para sítio incerto. A única certeza que se pode inferir é a de que ele não atravessa o Lwacimu que se apresenta à sua frente, numa distância de três a quatro quilómetros. O rio rosna cansado de tanta caminhada solitária ainda pela frente e de tanto desrespeito que tem de aturar até se afundar no Kasay que o
morre no Nzadi e este no grande Kalunga-Lwiji. Pelo percurso deixa lágrimas e
alegrias. Leva detritos também e aos magotes.
No desfiladeiro do amor, lebres e
humanos revezam-se na permanência e nos actos procriativos. Os primeiros mais
ao estilo e ambiente natural. Os segundos encapuzados pela noite e pela
distância. Estes, trancados em máquinas rolantes, embaciam vidros na noite fria
de Agosto e, mesmo com fome de carne, não se entregam à vontade de caçar
carne tenra de lebre nutrida. Afinal, é carne fresca que levam consigo, nas
viaturas de luxo cedidas pelos patrões. Nessa paz amorosa, lebres e láparos
ainda trôpegos dão azo aos seus zigue-zagues banhados pelas luzes que se perdem
no matagal nordestino.
As orgias são nocturnas, assim
como as lebres são noctívagas, e acontecem longe dos olhares da polícia que só
de vez em quando, ao meio do mês e ao final de semana, quando o pão e a
gasolina se tornam raros, se dirige ao desfiladeiro para surpreender alguns
incautos apaixonados, negociando a soltura daquilo que no dizer dos homens da
farda azul é «motivo de prisão imediata».
É assunto ocorrido na mata e tudo
deve ficar resolvido aqui mesmo, concorda-se previamente.
- Aceito a proposta, senhor polícia. Só discordo da inoportuna visita, quando estava já na hora «H». Pior que tudo é ter-me estorvado e por cima me aplicar multa. Onde é que já se viu isso? – questiona o desfilador.
- O senhor atentou à moral
pública...
- Moral pública?! Como assim?! -
É moral pública sim e o senhor não tem nada que reclamar. Essa é uma via
pública, construída para as pessoas passarem e não um sítio de imoralidade.
- Namorar é imoralidade?! O
senhor não namora?
- Ó senhor, haja respeito. Eu
tenho mulher e não sou como o senhor que deve estar com uma miúda que não é sua
senhora.
- Senhor polícia, respeito-o e exijo o mesmo respeito.
Primeiro, é que a via é privada. É do dono do terreno da quinta que deve existir
lá mais adiante. Segundo, o senhor vai ter de me provar que a menina não tem
compromisso comigo. Terceiro, o senhor mente quando diz que não namora,
porque mesmo com as senhoras lá de casa também se namora.
A equipa do autuante continuava
na viatura de carroça aberta, a espera do produto da caça. Uns aproveitavam
fumar, enquanto um outro se tinha metido na mata, se calhar, para se desfazer
da comida triturada pelo estômago.
E o debate prosseguia entre os
dois homens.
- À noite aqui só passam lebres,
senhor polícia. – Argumentou o desfilador.
- Então é atentado ao pudor. –
Sentenciou o agente, já com os documentos do autuado no bolso da sua farda
desbotada e a reclamar substituição, para forçar a «gasosa≫
ou o «saldo».
- Discordo senhor polícia. Pudor
das lebres ou dos colegas frequentadores do desfiladeiro para o mesmo fim que
me trouxe? Isso que está a fazer, senhor agente, é ilegal e sem respaldo na
lei.
- Ai é? Queres evocar lei aqui?
Então vamos à esquadra. – Ameaçou o agente.
- Como é que vamos à esquadra se fizemos um pré-acordo para resolvermos aqui mesmo o assunto por ter ocorrido
na mata e à escuridão?
-Então passa a «gasosa» e não se
fala mais no assunto. Olha que somos quatro na patrulha!
Joca pôs a mão debaixo do assento
e sacou um saco com refrigerantes. Por sorte, eram mesmo quatro as latas que
comprara antes de se fazer ao desfiladeiro.
- Estão aqui, chefe! Como o
senhor pediu, estão aqui as gasosas. São quatro e mais duas águas.
Sem contra-argumentos, Kamosu encaixou o
golpe do espertalhão do autuado (não contava com essa de gasosa de gasosa
mesmo), pegou no saco, - abriu uma delas e provou-a. Estava ainda fria e
engoliu-a toda, num só trago. Quase a engasgar-se, bateu-se no peito e soltou
um muxoxo.
- Porra, pá! Por que é que não me disseste que estava muito gelada? Se a gripe me pegar vais aumentar na multa. – Ameaçou, algo sarcástico. Em seguida, jogou o saco à patrulha e, mãos no bolso, devolveu a carta de condução.
-Boa continuação e volte sempre. –Despediu-se, engatando marcha inversa até à boca do desfiladeiro.
- Volte sempre?! Esses gajos pensam que sou o multi-caixa deles? Sacanas, desta vez bateram na rocha: quer gasosa, leva gasosa! - Disse, algo inchado com a proeza, à companheira, que já tinha largado um mar de lágrimas.
A intrusão policial fora para
Joca e Cajó um balde de água na fogueira.
- Tudo estragado, possas, pá! – Atirou o desfilador, furioso com a «mota que (já) não pegava».
No dia seguinte, sábado da
lavoura para os funcionários públicos e para os aldeões das redondezas, seria
recomposta a cena em várias versões pelos caminhantes que se deparariam com os
trilhos e o sémen asfixiado nos preservativos espalhados pelo sítio.
- Isso é que é atentado ao pudor! - Desabafou Sa Ufuku, dirigindo-se com o boné policial à esquadra da aldeia para
tirar satisfações ao comandante.
- O povo confia na polícia para
acabar com a pouca-vergonha, mas a própria polícia, afinal, também se mete lá?
Isso é atentado à moral, senhor comandante! - Rematou Sa Ufuku, sem nada mais
dizer.
Sem comentários:
Enviar um comentário