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(Extracto de "O relógio do Velho Trinta)
Ao chegar da viagem, no aeroporto internacional de Mwangope, uma inusitada conversa entre pai e filho atraiu a atenção de Satula que fazia contas para se desfazer, sem dinheiro, daquele recinto.
_ Pai! _ Chamou o rapaz, dez anos, mais ou menos. _ O papá não está a viajar à África do Sul por causa do seu cancro na próstata?
_ Sim filho. _ Respondeu Basílio de Melo. Sessenta anos, mais ou menos, e cabelo algodoado a embermar a pista encefálica.
_ E porquê que o papá disse ao senhor que nos saudou que tem sida, se o exame do médico diz cancro na próstata? _ Voltou a questionar o rapaz na sua inocência.
_ Respondeu Basílio, um conhecido empresário de Mwangope, desfazendo-se da incómoda pergunta do garoto que não percebeu a ironia. _ Olha, filho, vê aí se há algo que te agrada. _ Emendou.
Encostado a uma parede, Satula magicava o futuro. A reflexão durante a viagem remeteu-o para um estreito desfiladeiro. “Um empresário sem urnas e, pior ainda, sem as galinhas de ovos de ouro que eram os clientes ricos da zona baixa de Mwangope”. Faminto e cansado, sentia o chão a fugir-lhe. Faltava-lhe energia para se reerguer e chegar à casa. Decidiu caminhar até se acoitar debaixo de uma árvore, das raras que enfeitavam as ruas da cidade. Fez as contas do troco no bolso e traçou o plano: “andar num azul-e-branco até à casa custa, até ao fim do percurso que separa o Aeroporto a Vila Nova, um total de $400.00, valor dividido por 4 trechos de igual valor”.
_ Tenho que me meter mesmo neste carro da kandonga, que me vejam e comentem. _ Afivelou em voz baixa.
Umas vendedeiras da zunga que o ouviram a desabafar tentaram pôr conversa fiada, apenas para entreter.
_ Como é que um tio desses, assim com barriga tipo boss, vai andar no “conta novela”[1]?
_ Hum! Deve ser só barriga de mentira. _ Disse outra para depois troçar: _ Tio compra já mebendazol e num fica só com barriga tipo és boss, afinal é ‘mbora bichas.
Satula não deu importância à falácia e seguiu o seu caminho, trocando prosas com um companheiro de desgraça até à paragem mais próxima dos machimbombos.
_ Epá! _ Disse ele para o homem ao seu lado esquerdo _ Isso agora parece que está mais p’ro inferno do que para a urbanidade!
_ Sim, meu camarada! É só ver como andam as pessoas nos carros. Todos ensardinhados e a engolir cada vez mais poeira levantada pelos veículos...
_ É mesmo! Isso anda maluco! E nós que estamos mais no interior do que na capital sofremos mais ainda.
_ Pois é. _ Replicou Kitomangombe, o seu interlocutor, que vivia ininterruptamente na capital. Porém, a semana de ausência no Nordeste, também lhe causava estranhezas.
_ E como é que vais à casa? _Perguntou ainda Kitomangombe.
_ Epá! Eu me desenrasco... De qualquer meio que aparecer. Kupapata[2] ou mesmo “avó chegou”[3], tudo serve. _ Respondeu Satula, sempre irónico.
Kitomangombe seguiu o caminho do Roda Ponteiro e Satula dirigiu-se a uma agência bancária que ladeava a estrada da Revolução Bolchevique. Estava decidido em alugar uma viatura particular caso conseguisse dinheiro. Pretendia chegar cedo à casa, onde os filhos e a amada o aguardavam esperançosos. Afinal era dia dos namorados.
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[1] Nome atribuído aos autocarros devido à lentidão e demora que levava os frequentadores a contarem a novela apresentada na Tv para evitar a fadiga.
[2] Motocicleta.
[3] Motorizada de três rodas; vulgarmente usada pelas idosas provenientes das lavras ou dos mercados, transportando mercadorias.
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Publicado pelo Jornal de Angola a 16.02.2025
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