O dia estava agitado, como o vento frio que soprava impiedoso, parido e empurrado pela corrente gélida de Benguela. No vasto espaço ao redor do Estádio de Ombaka, agora metamorfoseado em ruelas e vielas por construções temporárias de stands, homens e mulheres se acotovelavam para passar, levantar ou pousar imbambas de toda sorte. O recinto fervilhava com a azáfama de feirantes vindos de todos os cantos de Angola: lá estavam 21 províncias e 326 municípios que representavam o povo, suas identidades culturais e as idiossincrasias de mais de 378 comunas.
ATURA-LITER-ATURA
Nesse espaço LITERÁRIO a sua crítica é muito BEM-VINDA. = ® Reservados todos os direitos ao autor deste Blog =
sexta-feira, 12 de setembro de 2025
A CAÇADEIRA DE KAPAYO
terça-feira, 5 de agosto de 2025
Entre chaladices e filosofias: A tessitura da trama em Chico, Bernardo e Mangodinho
A literatura de Soberano Kanyanga é marcada por uma oralidade vibrante, personagens profundamente humanos e uma crítica social que se entrelaça com humor, dor e sabedoria popular. Neste artigo, analisamos comparativamente três figuras centrais de suas crónicas: Chico "Pé de Muleta", Bernardo "Bebê" e Mangodinho, explorando a tessitura da trama em que cada um se inscreve.
“Vocês são burros. Vê lá se ainda não conhecem a cidade.”
A tessitura da trama é trágico-reflexiva, com forte ligação ao espaço comunitário e à memória colectiva. Chico é respeitado e temido, e sua voz carrega a autoridade da experiência vivida.
"Esses buracos estão a ser tratados como frangos: primeiro limpam, depois temperam com brita e só depois é que metem o óleo quente".
Ou quando ironiza a política local:
“Aqui, até os buracos têm plano de desenvolvimento. Só falta mesmo o orçamento” são exemplos de como o humor é usado para desmascarar o absurdo social. Bernardo representa a irreverência popular, e sua presença é marcada por leveza, mas também por crítica mordaz. A tessitura da trama é cômico-satírica, com ritmo oral e linguagem popular, aproximando o leitor da realidade angolana com riso e reflexão.
“Mangodinho é aquele que desafia a dor e ama a arte.”
A tessitura da trama em que Mangodinho se inscreve é densa, simbólica e introspectiva, com linguagem mais literária e menos episódica. Ele transcende o espaço físico e torna-se símbolo de transcendência.
Enquanto Chico actua em espaços comunitários rurais e Bernardo em ambientes urbanos populares, Mangodinho transcende o espaço físico, habitando uma dimensão simbólica. A linguagem de Chico e Bernardo é oral, rica em expressões locais, enquanto Mangodinho é tratado com linguagem mais introspectiva e literária.
Todos os três personagens partilham uma profunda humanidade e ligação visceral à realidade angolana, compondo uma tapeçaria literária rica, crítica e afectiva.
quarta-feira, 2 de julho de 2025
"HÁ DIAS ASSIM..."
A frase que dá título a esta postagem é do Armindo Laureano.
Quem me leva a recitá-la é a jovem escritora Unkulu D'Papel (Numélia Baptista Tchiteculo,
ou Tchite Unculo), natural do Huambo e contando apenas 20 anos.
Conheci a Numélia num das redes sociais. A princípio desconfiei:
_ Por que quer uma adolescente tornar-se minha amiga?
Explicou que lera o meu livro e o inspirou, dai ter procurado pelo autor de "O coleccionador de pirilampos". Passei a ler os escritos dela e a dar-lhe feedback. Apercebi-me pela comunicação social e redes sociais que já tinha feito a sua estreia como autora de um livro de ficção.
Em uma mensagem que me remeteu, Unkulu D'Papel disse que "me tinha como inspirador" e remeteu o seu livro com a dedicatória a mim dirigida.
Quatro Abraços-Os passos encantados que o vento soprou pelas palavras
Muito brigado, Numélia!
domingo, 1 de junho de 2025
Jornal Angola Económico | ESCRITOR SOBERANO KANYANGA
• O que o levou a escolher a temática da motivação no ambiente de trabalho, especificamente no contexto do então Ministério da Geologia e Minas?
que podiam advir da implementação de certas medidas como o transporte para os funcionários, o seguro de saúde, o maior controlo da pontualidade, a responsabilização, a clarificação das tarefas a atribuir ao colaborador, assim como estabelecer deadlines para a conclusão de tarefas, a melhoria da remuneração e da qualidade de vida no trabalho, a formação, entre outos aspectos.
• Quais foram as principais descobertas do seu estudo de caso em relação ao impacto da falta de motivação nos colaboradores?
= A gestão deve ser proactiva e transparente; a comunicação deve ser melhorada na verticalidade e horizontalidade; a política retribuitiva (remuneração) deve ser adequada e justa; os colaboradores devem conhecer os seus direitos e deveres e os materializarem; a capacitação deve ser contínua; deve haver mobilidade interna para que o colaborador execute as tarefas que saiba e goste; a organização deve responsabilizar os incumpridores; o ambiente laboral deve ser sadio e adequado; deve haver ferramentas e equipamentos de trabalho, etc. É preciso ler o livro.
• Como define a relação entre motivação e desempenho organizacional e que evidências apresentas em seu livro para apoiar essa conexão?
= A motivação é intrinseca. O empregador/gestor cria elementos potenciadores da motivação. Trabalhador que se reveja na organização e lute por ela, que esteja consciente de que as suas rendas provêm do seu trabalho, ou seja, que é reforço e não esforço, é um trabalhador motivado. Trabalhador motivado é produtivo e feliz no local de trabalho. Quem passe mais tempo no local de trabalho do que em casa deve sentir-se feliz e gostar de ir aonde presta labor. Motivação e produtividade estão relacionadas.
• Durante o processo de pesquisa, quais desafios encontrou ao abordar a questão da motivação no sector mineiro?
= Os desafios foram muitos e começam pela excessiva ideia de que "não se pode falar sobre o trabalho ou sobre o que se faz no trabalho" (cultura do secretismo), mesmo se tratando de um estudo sociológico e com fins académicos (serviu para Pós-graduação e Mestrado). Tivemos de iniciar por obter uma autorização do Ministro Francisco Queiroz, que gostou da iniciativa e autorizou de imediato. Todavia, levei mais de seis meses para recolher uma amostra de 70 inquiridos entre uma população total de 140 colaboradores. A falsa ideia do secretismo ou o desfoque total às questões que digam respeito à melhoria de determinadas práticas administrativas são males que ainda ensombram a administração pública. Em contra-senso, aquilo que se procura esconder aos colegas sai às redes sociais, uma prática que deve ser banida. Tivemos desafios, entretanto superados, pois a vontade de terminar o estudo, para compreender cientificamente a organização e propor melhorias, assim como terminar um desiderato académico, falaram alto. Devo ressaltar o empenho dos meus liderados do GRH, em especial a Helena Cuca, que ajudou bastante na mobilização e recolha do inquérito em que participaram todos os extratos da organização. Directores, chefes de departamento, chefes de secção, técnicos superiores de diferentes categorias, técnicos, técnicos médios, administrativos, operários, todos foram inquiridos.
• Como o lema das Jornadas do Mineiro, "Mineração Responsável, Futuro Brilhante", se relaciona com os temas abordados em seu livro?
= A apresentação pública do livro esteve enquadrada nos festejos do Dia do Mineiro que, para 2025, tem o lema "Mineração Responsável, Futuro Brilhante".
• Quais são suas expectativas em relação ao impacto que sua obra pode ter na maneira como as organizações pensam sobre a motivação de seus colaboradores?
= O livro/estudo é um despertador quer para os colaboradores, quanto para os líderes. Foram levantados aspectos que, às vezes, nos passam despercebidos. Foram feitas recomendações também. O livro é por si, um começo e não um fim. As abordagens devem ser continuadas em outros prismas. Sendo resultado de um trabalho científico-académico, também pode servir de consulta a estudantes e gestores de RH.
quinta-feira, 1 de maio de 2025
"A FALTA DE MOTIVAÇÃO E IMPACTO NOS COLABORADORES" AOS OLHOS DE LÍZIA HENRIQUE
DALAI LAMA UMA VEZ DISSE “TODA ACÇÃO HUMANA, QUER SE TORNE POSITIVA OU NEGATIVA, PRECISA DEPENDER DE MOTIVAÇÃO”
Boa tarde a todos,
É com
enorme prazer que vos dou as boas-vindas a esta sessão tão especial de
lançamento do livro A FALTA DE MOTIVAÇÃO E O IMPACTO NOS COLABORADORES-
UM ESTUDO DE CASO NO MINISTÉRIO DE GEOLOGIA E MINAS, uma obra que
promete marcar não só os leitores, mas também o panorama literário nacional.
Hoje, temos a honra de
contar com a presença do seu autor, Luciano Canhanga |Soberano Kanyanga|,
uma figura que se destaca pela sua sensibilidade, dedicação à escrita e pela
forma como consegue transformar palavras em emoções vivas.
Luciano Canyanga
tem vindo a construir um percurso notável, seja através da sua escrita
envolvente, bem como da sua capacidade de observação da realidade.
Este, sempre esteve ligado
ao jornalismo e comunicação institucional, mas foi nas vestes de Director de
Recursos Humanos que se viu digamos, "forçado” a imergir nos desafios que
encontrou no então Ministério de Geologia e Minas, quando convidado a dirigir o
GRH, após colaboração em uma empresa extractiva (a Sociedade Mineira de Catoca)
Eventualmente, você
pergunte: Que desafios encontrou?
Meus senhores e minhas Senhoras estes desafios
encontram-se no livro!
O livro em destaque, aborda um tema crucial para o desempenho organizacional, especialmente no contexto do funcionalismo público angolano.
Este livro representa não
apenas uma contribuição valiosa para o campo de Recursos Humanos, mas também um
testemunho do rigor, da dedicação e da paixão que o autor deposita no seu
trabalho. Ao longo das suas páginas, somos guiados por uma análise profunda,
sustentada em investigação atualizada, metodologias sólidas e um espírito
crítico exemplar.
A pesquisa realizada revela,
que a falta de motivação é um dos principais factores que impactam
negativamente o desempenho dos colaboradores, sendo um desafio significativo
para a gestão de actividades no setor público.
Na referida pesquisa o
autor utilizou métodos quantitativos e qualitativos, incluindo questionários
aplicados a setenta funcionários, a fim de explorar as causas e consequências
da desmotivação no então Ministério de Geologia e Minas.
O estudo, realizado no
Ministério de Geologia e Minas, identifica que a ausência de políticas e acções
voltadas à motivação, como o reconhecimento, a remuneração adequada e
incentivos como o seguro de saúde e a formação, contribui para a desmotivação
dos funcionários, cujos resultados negativos para a organização todos os
gestores conhecem.
Entre as conclusões,
destaca-se o facto de a motivação estar diretamente ligada à recompensa e ao
estilo de liderança, e que as variáveis sociodemográficas influenciam os
resultados. É ainda sugerido, que as lideranças devem repensar as suas práticas
para melhorar o ambiente organizacional e a valorização dos colaboradores.
Para além do rico
conteúdo, que é uma nítida fotografia dos desafios com que se debatem muitas
das instituições públicas, para não dizer todas, o autor procurou, igualmente,
preservar a história de um colectivo de colaboradores que cada um ao seu nível,
procuraram prestar um serviço público digno e humanizado.
Hoje, infelizmente, não podemos dizer à nova
geração que no Largo António Jacinto (conhecido como largo dos Ministérios)
existiu um edifício que atendeu os Serviços de Geologia e Minas e,
posteriormente, o Ministério de Geologia e Minas, pois este edifício (mostrar a
contracapa) já não existe.
Termino com um sincero
agradecimento a Luciano Canhanga, não só pela obra que hoje nos apresenta, mas
também pelo contributo inestimável que tem dado ao desenvolvimento do
conhecimento.
Convido agora o autor a
partilhar connosco um pouco do seu processo criativo, das motivações por detrás
deste livro e, claro, do que podemos esperar ao mergulhar nesta leitura.
Muito obrigado a todos pela
presença.
Lízia Henrique
Em Luanda, aos 24 de Abril
de 2025.
domingo, 23 de março de 2025
AS CHALADICES DO "BEBÊ"
Nota prévia:
sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025
Um "VIJU" NO DIA DOS NAMORADOS
(Extracto de "O relógio do Velho Trinta)
Ao chegar da viagem, no aeroporto internacional de Mwangope, uma inusitada conversa entre pai e filho atraiu a atenção de Satula que fazia contas para se desfazer, sem dinheiro, daquele recinto.
_ Pai! _ Chamou o rapaz, dez anos, mais ou menos. _ O papá não está a viajar à África do Sul por causa do seu cancro na próstata?
_ Sim filho. _ Respondeu Basílio de Melo. Sessenta anos, mais ou menos, e cabelo algodoado a embermar a pista encefálica.
_ E porquê que o papá disse ao senhor que nos saudou que tem sida, se o exame do médico diz cancro na próstata? _ Voltou a questionar o rapaz na sua inocência.
Encostado a uma parede, Satula magicava o futuro. A reflexão durante a viagem remeteu-o para um estreito desfiladeiro. “Um empresário sem urnas e, pior ainda, sem as galinhas de ovos de ouro que eram os clientes ricos da zona baixa de Mwangope”. Faminto e cansado, sentia o chão a fugir-lhe. Faltava-lhe energia para se reerguer e chegar à casa. Decidiu caminhar até se acoitar debaixo de uma árvore, das raras que enfeitavam as ruas da cidade. Fez as contas do troco no bolso e traçou o plano: “andar num azul-e-branco até à casa custa, até ao fim do percurso que separa o Aeroporto a Vila Nova, um total de $400.00, valor dividido por 4 trechos de igual valor”.
_ Tenho que me meter mesmo neste carro da kandonga, que me vejam e comentem. _ Afivelou em voz baixa.
Umas vendedeiras da zunga que o ouviram a desabafar tentaram pôr conversa fiada, apenas para entreter.
_ Como é que um tio desses, assim com barriga tipo boss, vai andar no “conta novela” [1]?
_ Hum! Deve ser só barriga de mentira. _ Disse outra para depois troçar: _ Tio compra já mebendazol e num fica só com barriga tipo és boss, afinal é ‘mbora bichas.
Satula não deu importância à falácia e seguiu o seu caminho, trocando prosas com um companheiro de desgraça até à paragem mais próxima dos machimbombos.
_ Epá! _ Disse ele para o homem ao seu lado esquerdo _ Isso agora parece que está mais p’ro inferno do que para a urbanidade!
_ Sim, meu camarada! É só ver como andam as pessoas nos carros. Todos ensardinhados e a engolir cada vez mais poeira levantada pelos veículos...
_ É mesmo! Isso anda maluco! E nós que estamos mais no interior do que na capital sofremos mais ainda.
_ Pois é. _ Replicou Kitomangombe, o seu interlocutor, que vivia ininterruptamente na capital. Porém, a semana de ausência no Nordeste, também lhe causava estranhezas.
_ E como é que vais à casa? _Perguntou ainda Kitomangombe.
_ Epá! Eu me desenrasco... De qualquer meio que aparecer. Kupapata[2] ou mesmo “avó chegou” [3], tudo serve. _ Respondeu Satula, sempre irónico.
Kitomangombe seguiu o caminho do Roda Ponteiro e Satula dirigiu-se a uma agência bancária que ladeava a estrada da Revolução Bolchevique. Estava decidido em alugar uma viatura particular caso conseguisse dinheiro. Pretendia chegar cedo à casa, onde os filhos e a amada o aguardavam esperançosos. Afinal era Dia dos Namorados.
--------
[1] Nome atribuído aos autocarros devido à lentidão e demora que levava os frequentadores a contarem a novela apresentada na Tv para evitar a fadiga.
[2] Motocicleta.
[3] Motorizada de três rodas; vulgarmente usada pelas idosas provenientes das lavras ou dos mercados, transportando mercadorias.
=
Publicado pelo Jornal de Angola a 16.02.2025
segunda-feira, 27 de janeiro de 2025
O "PROSTÍBULO" DO ANDRÉ
Durante os anos 90, no coração da regedoria de Kuteka, havia um gaveto discreto entre duas alas do edifício da Kuditemo Lda., o maior fornecedor de kuribotices da época. Nesse canto esquecido, funcionava um serviço público modesto, quase clandestino, onde reinava uma máquina Konica — a famigerada fotocopiadora que, com seus ruídos metálicos e cheiro de toner, parecia ter vida própria.
Ali trabalhava André Kitongo, jovem culturista de 25 anos, cuja presença era tão aguardada quanto o café da manhã. As secretárias e o pessoal do expediente dirigiam-se a ele com uma mistura de respeito e urgência. Na sua ausência, deixavam os documentos por fotocopiar sobre uma velha mesa de madeira, marcada pelo tempo e pelos cantos lascados, acompanhados de recados em post it de todas as formas e cores: corações, tiras estreitas, tons quentes e frios, verdes-alface e amarelos desbotados. Com o tempo, André desenvolveu uma habilidade quase mística de identificar o remetente e a urgência apenas pela cor e formato do papel.
Na sala, além da Konica e da mesa, havia um sofá gasto, de estofos cansados, que durante anos acolheu as horas de descanso de André. Era ali que ele repousava entre uma cópia e outra, sonhando talvez com músculos maiores ou com os mistérios por trás dos recados que recebia.
André não descartava os post it. Guardava-os com zelo numa caixinha de papelão, onde cada bilhete era uma peça de um puzzle que só ele parecia entender. Alguns eram memoráveis:
“André, quero frente e trás. Jéssica.”“Querido André, hoje quero só de trás.” – Bela.“Andrezinho, hoje tens de fazer rapidinho. Quero duas de trás.” – Rosa.“André, sem demora, estou sem muito tempo. Quero de frente. Rápido...” – Andresa.
Com o tempo, o serviço foi transferido para outro local, por conta de obras de restauro. O gaveto ficou para trás, esquecido, como um segredo mal enterrado. A caixinha permaneceu ali, entre o pó e o silêncio, testemunha muda de uma rotina que já não existia.
Vieram os tempos de abandono. O edifício, outrora funcional, tornou-se abrigo de mendigos, vagabundos e mulheres da vida. O sofá, antes trono de André, virou leito de passagem. Alguns recados, curiosamente, foram materializados — não por André, mas por outros que ali encontraram refúgio e sentido nas palavras soltas.
Anos depois, chegaram os homens da empresa restauradora. Vasculhando os escombros, encontraram a velha mesa, o sofá desbotado e, por fim, a caixa de post it. Ao lerem os bilhetes, sem qualquer contexto, imaginaram histórias que não existiam, fantasias que não eram reais. E assim, entre risos e especulações, apelidaram aquele cubículo de “prostíbulo do André”.
Mal sabiam eles que ali se escondia apenas um capítulo singelo da burocracia de outrora — um lugar onde a rotina se escrevia em cores e onde cada recado era apenas um pedido de cópia, envolto em afecto, pressa e papel adesivo.
terça-feira, 10 de dezembro de 2024
BEM-VINDO, CDA WELLCOME!
As lojas eram do povo. Os governantes também. Até os malucos tinham donos, os seus parentes que deles cuidavam e com eles se preocupavam. Havia malucos, mas não os víamos desnudados e famintos como agora. Para o acesso ao pão, faziam-se filas nos depósitos, mas os malucos também comiam.
sábado, 2 de novembro de 2024
A IMPORTÂNCIA DO HOMEM NAS VIDAS DE UMA MULHER
Domingo cinzento de um mês chuvoso. Tudo parecia andar preguiçoso: o cantar madrugador dos galos, o uivar matinal das lobas ciosas, o acordar das gentes cansadas da tonga semanal e o acumular das nuvens do céu ainda acinzentado, sem sol nem fundo azul. Apenas três vozes se ouviam na sanzala.
Registisso, Ignorisso e Esquecisso, contemporâneos desde a mukanda e feitos amigos para a vida, caminham em direcção à area em que fizeram lavras. É lá também onde se produz o Kanyome que afugenta o frio mais intenso de Cyapya Ndalu e transforma os homens reservados e silenciosos em falantes e filósofos momentâneos. Ignorisso é um deles. Sem esse aditivo, contam-se-lhe as palavras proferidas durante uma marcha conversante de hora e meia que abate seis quilómetros.
Naquele dia, a conversa era fiada. Registisso e Esquecisso, os que sempre tomavam a iniciativa, não teinham anunciado nada. Nadinha. Os primeiros duzentos metros, depois do ponto de encontro que foi a Escola do Povo, tinham sido de surdina colectiva. Apenas a respiração barulhenta de Ignorisso os fazia co mpanhia, até que, fazendo recurso à memória, Registisso abriu um dos capítulos de sua vida.
_ O meu pai morreu em 1982, aos 42 anos, de doença natural, cárdio-respiratória. É normal num contexto anormal em que vivíamos no início da década de 80. Talvez pela doença que o apoquentava, desde adolescente, não tinha uma estrutura corporal robusta e atraente. Viam-se-lhe os ossos e vezes há em que se lhe podiam contar as costelas desenhadas no corpo desnudado. Era, todavia, um homem dedicado e esforçado como bom trabalhador agrícola, caçador e pescador nos rios da região em que habitou. Era engenhoso. Criou peixe em um rio que não os possuía. Hábil na caça com cães. O que dele melhor se falava era a sua habilidade em levar carne para casa. Evitava tomar makyakya e não fumava. Já a minha mãe era o inverso na sua mocidade. Fumava em cachimbo (era princesa e atrevida). Como a nossa casota era pequena (redundância propositada), os seus desentendimentos rápidos chegavam aos meus atentos ouvidos. "Feio, pobre, etc." Lembro-me de ouvir estas e outras expressões que ele geria com elegância e muito silêncio.
Os dois amigos ouviam sem interromper. Algo comovidos. Algo ansiosos em ouvir a próxima nota, até que Esquecisso interrompeu.
_ E nunca os viste a lutar? Teu pai tinha paciência. Eu quando o sangue me ferve não admito abusos...
_ A vias-de-factos, terão chegado apenas uma vez, mas longe de meus olhos. Cheguei a tal conclusão porque ambos estavam arranhados.
_ E que achavas do teu pai, em relação à tia que era mais dada a trafulha? _ Questionou Ignorisso.
_ Aos meus olhos, o meu pai valia pouco perante a minha mãe que se gabava de possuir poder: poderio político, por ser princesa, e poderio económico, por ter parentes em Luanda que sempre a podiam auxiliar financeiramente em caso de alguma necessidade mais premente. Ele, era uma espécie de "cão-de-merda que não tinha onde morrer". Mas, era um bom pai. Carregava-me ao ombro eu para a escola e ele para a tonga. Queria ter um filho professor" que, depois, ensinasse as outras crianças a sair da escuridão. Ele sabia assinar, lia e escrevia as cartas de outros parentes da aldeia. Em contrapartida, a minha mãe, sobretudo depois de viúva, esforçou-se em criar os filhos. Com e sem marido exerceu poder, mas nunca chegou a ser homem. A masculinidade é doação única e divina!
À medida que a prosa de Registisso ganhava profundidade, a cadência do passo aumentava e o destino se encostava mais aos olhos. Nisso de visitar o guarda-memórias, Esquecisso também visitou as suas e trouxe ao conhecimento dos companheiros uma situação ainda recente.
_ Olhem! Vocês sabem que no mês passado estive na capital onde fomos nos despedir do irmão da minha ndona. Nas poucas vezes em que conversei como amigo com o meu recém-finado cunhado pude saber do sofrimento por que todos passamos em vida. A desvalorização por parte de quem decidimos caminhar juntos, mesmo nos entregando às causas até ao último esforço. O quê que somos aos olhos delas?
_ Somos meros "cão-de-merda", recebidos com reclamações, resmungos e bafos, atirando-nos ao "rosto" os nossos insucessos, mesmo nunca deixando de tentar o melhor. _ Responderam Registisso e Ignorisso que, desta vez, interagia como nunca.
Empolgado, Esquecisso continuou com as indagações.
_ Para que valemos mesmo? Vocês sabem?
_ Pra nada! _ Respondeu Registisso, complementando o amigo.
_ O que eu assisto é que os filhos já existem e alguns são grandes. A sexualidade abranda. Algumas vezes (quase sempre), na hora do "vamos ver", o indivíduo é recebido com reclamações, quando não são ataques e ou dislates. Que fazer?
_ Nada! _ Respondeu desta vez Ignorisso.
_ Volto à estória sobre os meus pais. _ Atirou Registisso. A minha mãe foi viúva por três vezes. Um individuo que morreu sem deixar história, o meu pai que morreu aos quarenta e dois anos, deixando quatro filhos e o sucedâneo de quem a minha mãe teve um filho. Amo a minha mãe como ninguém. Todavia, me pergunto até hoje:
O que faz os homens morrerem antes das mulheres, vocês sabem? _ Atirou provocante, sem, no entanto, dar tempo a respostas.
_ Nos dias que correm, a minha mãe não pára de elogiar o bom homem que foi o meu pai. Já lá se foram 42 anos. É a imagem que lega aos netos e às minhas irmãs mais novas que tiveram menos convívio com o papá. Fez a sua parte. Engoliu os sapos e sorveu igualmente a água do charco. Morreu herói. Talvez, um dia, sejamos também lembrados assim, como herói que foi vilão! Se calhar, tal como o meu pai, o teu finado cunhado tenha já sido transformado em querido e saudoso herói e nós, quiçá, no post-morten, venhamos a sê-lo também. Que acham?
Ignorisso e Esquecisso que o ladeavam estenderam os braços e o envolveram num abraço. Estavam já prestes a chegar ao alambique do Ensinisso, irmão mais novo de Ignorisso que estava a destilar kanyome para o seu alambamento.
_ Olha, mano Registisso, quem deve ouvir novamente a nossa conversa é esse miúdo que quer ter mulher, apontou o irmão mais velho, antes mesmo do kwata-kwata.
=
Publicado pelo Jornal de Angola de 27.10.24
terça-feira, 1 de outubro de 2024
AS CHALADICES DO CHICO "PÉ DE MULETA"
_ Vão, mas escrevem o que vos disse, seus analfabetos. Vila é lá. Aqui é Kakungulu. Se querem se gabar que estiveram na vila é melhor amanhã pegarem mota e chegarem lá. Estão aqui os vossos tios que vieram da capital. Pedem já. Mota é só cem!
=
Publicado pelo Jornal de Angola a 29 de Setembro de 2024.
quarta-feira, 11 de setembro de 2024
O ÚLTIMO POLÍCIA
A patrulha, transportada em turismo branco, estava parada na rotunda do Cemitério do Alto das Cruzes e abordava, aleatoriamente, viaturas que vinham do Largo do Ambiente e do Miramar em direcção ao Kinaxixe.
domingo, 11 de agosto de 2024
O KAMBWIJI DE 10 KG E OS 250 ANOS DA VELHA ROSÁRIA
A idosa na foto é a minha mana Maluvu-a-Kyoko ou Rosária Albano. Calculadamente, deve ter 80 ou mais uns anitos. Porém, diz que "se eu (narrador) tenho 50, ela não pode ter menos de 250 anos" e justifica que me viu a nascer quando ela já era mãe de uma kalumba.