sábado, 20 de fevereiro de 2010

Capítulo II: O CÃO E O PEIXE FRITO

A aldeia de Cambau, comuna do Kissongo, é a terra natal de Kaúia. O dia de nascimento é incógnito. Ninguém se lembrou de recorrer ao Comité da Aldeia ou ao comerciante para o registar num caderno de datas. O Soba Kambondondo lembra-se de ter sido num dia de caça. O milho estava nos celeiros e a terra recebia os primeiros preparativos para novas sementeiras. O herdeiro mestiço do colono israelita que habitou a região diz que foi num mês de Agosto dum ano que também não sabe precisar. Estava-se no fim da luta entre os irmãos kambuta e os mindele . Deve ter sido em 1974 ou 1975.


Ao contrário do que era hábito na aldeia de Cambau, onde os rapazes adquiriam o njine na pré-adolescência e a sangue-frio, Kaúia fê-lo junto ao enfermeiro, no mesmo mês em que recebeu a irmã Ximinha. O pai queria que o seu primogénito fosse estudar na União Soviética ou em Cuba. Só não sabia como nem quando. Foi daí que mandou cedo o filho à circuncisão. “Quem vai à terra do mundele não pode ir com kifutu ”, dizia Jorge Kaúia orgulhoso do seu filho que crescia em altura e em conhecimentos, à semelhança dos outros meninos da aldeia que tinham pai e mãe que trabalhavam, com lavra grande e fartura de alimentos e muita fruta.

Em casa, na aldeia de Cambau e nas circundantes de Calombe, Cabeba, Cuassola ou mesmo no Calongo, Kaúia e os irmãos recebiam a educação e a instrução comunitária. No Cambau os filhos eram considerados de todos e a sua educação a todos cabia. Aos cinco anos os rapazes entravam para a iniciação escolar onde as meninas ingressavam muito mais tarde ou nunca. Eram muitas as que não iam à escola. Os pais refilavam e opunham-se, mas as mães ganhavam sempre. Tudo porque naqueles tempos que se seguiram à dipanda os nascimentos estavam em alta e os muitos recém-nascidos ficavam à guarda das manas mais velhas, assim negadas à escola.

Com os seus aparentes cinco anos, a vida de Kaúia parecia maravilhosa. Brincava com os amigos à cabra-cega ou confeccionavam trotinetas de munzaza . Vezes sem conta escalavam montanhas para espreitar a vida íntima dos canta-pedras, aqueles roedores engraçados e furtivos, ou vasculhavam no bananal a vida dos ngelus . Passarinhos multi-cores, borboletas, cigarras, grilos e gafanhotos também faziam parte do seu dia-a-dia. Era nestas aves e insectos que se ensaiavam na caça aos animais de porte maior. Os veados, corças e javalis entre outros, estavam ainda confiados aos dikotas da sanzala , mas o dia de Kaúia chegaria também, tarde ou cedo. Sonhava também ele um dia presentear a sua mãe com um veado inteiro, tal como fazia o tio Kizoco à sua avó. Era isso que na aldeia valorizava o “filho-de-homem”.

A primeira vez que João Kaúia pronunciou uma palavra perceptível devia ter nove ou dez meses. Lembra-se ainda Kabezo, sua mãe, que Ximinha, a sua irmã mais nova, já estava na barriga. E Kaúia falou em Kimbundu, a língua da sua aldeia e dos seus pais e parentes. O português, língua dos mindele, tinha sido, até há bem pouco tempo, a língua usada apenas para responder a notificações no posto de Kissongo ou quando o soba fosse à vila de Calulo. Até o alemão W. Kruzik tinha aprendido a língua dos nativos para poder contratar a mão-de-obra para a tonga e convencer os aldeões a fazer “vale” na sua loja de campo. Chegada a idade escolar, havia a preocupação de saber o A-B-C-D e contar na língua do colono, o que não era nada fácil para quem aprendeu a pensar como sempre pensou o seu povo e desenvolver o conhecimento numa base filosófica sem registo escrito.

A idade da pré-kabunga coincide, na aldeia, com a da frequência ao njango . Kaúia tinha deixado de jantar na cozinha com a mãe e com a avó paterna Kikumbo. No Jango havia a educação masculina, a forja para a vida adulta que começava com a narração de lendas antigas sobre pessoas valentes e animais ferozes que era preciso dominar. Para alongar o serão, João Raimundo Kaúia “Xica Yango”, seu homónimo e avô, tocava kambanza e intercalava os contos com as canções do seu tempo. Os jovens e adolescentes recontavam o que tinham ouvido do velho e os meninos o recitavam todos os dias no início da “academia”. Era como a recapitulação da matéria da escola oficial. Depois vinham as anedotas contadas por jovens e homens de meia-idade, também eles responsáveis pelas lenhas que alimentavam a fogueira do njango e pela continuidade do lume que nunca se devia apagar. O njango era a fonte de iluminação para o povo da aldeia e tornava dispensável, para muitos, a compra das caixas de fósforo ou mesmo isqueiros de pedra alimentados a petróleo ou gasolina. No fim do serão, muitas vezes já sem luar, e como que passando a tarefa aos neófitos da turma, abria-se o espaço das adivinhas. Him, him, him, him... cantarolavam antes de formularem as perguntas livres à rapidez de quem tivesse a resposta na ponta da língua. Era o melhor momento!

Ao entrar para a escola da aldeia, feita de adobes, Kaúia encontrou novos amigos, antes desconhecidos, das aldeias vizinhas de Sengo e Calongo que ficavam a um e dois quilómetros da sua, com os quais partilhava as mesmas dificuldades. Não falavam o português exigido pelo professor Borracha e o kimbundu tornou-se proibido até no recreio. O professor castigava quem falasse a língua da aldeia na escola ou fora dela para forçar que os alunos aprendessem o mais rápido possível a língua deixada pelo colono. O português era para ele, até então, a língua usada nos comícios do comissário, nas reuniões dos instrutores da organização infantil do partido no governo, a OPA, vindos da sede da comuna, a língua que se lia nos livros e na gramática portuguesa do José Maria Relvas que descrevia a forma como falavam e escreviam os seus melhores utilizadores.

Em casa, a avó Kikumbo, sua protectora, não falava português e sempre que Kaúia estivesse com colegas não conseguia comunicar com ela, temendo que alguém o denunciasse ao professor Joaquim Borracha, o que aumentava as suas dificuldades. Já não se alimentava em condições porque desconhecia a denominação portuguesa dos mimos com que a avó o brindava e, pior ainda, entrou em rota de colisão com a velha que o chamava calcinhas, nome pejorativo com que os aldeões brindam os cidadãos vindos da cidade e com modos refinados. Desde que entrou para a vida escolar que o neto já não respondia às perguntas da sexagenária e nem solicitava o seu doce regaço. Sempre que tentasse fazê-lo era num português tão atabalhoado quanto envergonhado que a avó não entendia. Era preciso encontrar a paz. E a paz seria selada num sábado, na lavra, onde o rapaz se pôde abrir com a anciã, na sua língua de costume e sem a presença de intrusos. Apenas pássaros e borboletas pulverizavam o ambiente ensolarado daquele dia de nuvens fugitivas, testemunhando a confissão.

– A Kuku, ki tuzuela imbundu prossor io mbeta. Muene uandala tuzuela ngó putu! (Avó, sempre que falamos kimbundu o professor bate-nos. Ele quer que falemos apenas português.)

Da confissão resultou o entendimento. Neto e avó procurariam doravante por espaços cómodos para a troca de informações, presentes e desabafos sem temor. E a vida foi correndo. Kikumbo mais para a velhice e Kaúia mais para a adolescência, até que três anos mais tarde, já em Calulo e na escola número três, ao Kassequel, Gonçalves da Silva era o professor de Kaúia. Os alunos eram maioritariamente filhos de deslocados, também chamados de recuados, da comuna de Kissongo e das redondezas, com domínio ainda precário da língua que une o país, o português.

Gonçalves ensinava as ciências e a língua veicular. Estava-se no ano de 1984. A guerra apertava dia após dia. Os bens de consumo escasseavam e o lanche para os meninos dias havia, semanas não, exceptuando-se nas casas dos “camaradas” comissários e delegados municipais, que se faziam transportar em carros de marca Lada ou Niva. Esses eram os únicos que aos olhos do povo tinham nascido para as benesses do deus Lénine. Eram sempre os primeiros na distribuição dos géneros alimentícios e os únicos que nos comícios populares se abrigavam sempre debaixo do alpendre, ao contrário da massa popular que enfrentava o sol mesmo se acossada de sede.

João Manuel Kaúia, de seu nome completo, aparentava já dez anos e estava na terceira classe. Tinha um desafio duplo: aprender a língua que pouco sabia e enquadrar-se no seio dos demais colegas nascidos na pequena urbe e que o desdenhavam devido ao seu cantarolar que se parecia ao chilrear dos passarinhos. Parecia mesmo que imitava os pica-flores e os rabos-de-junco que cercavam a escola, naqueles tempos de voos fracassados do salalé. Porém, Kaúia sentia mais do que isso. Tinha saudades do amanhecer, das visitas às armadilhas e ratoeiras deixadas nas bermas das lavras e das pescas aos sábados e domingos, aqueles dias milagrosos em que "não havia escola". Custava-lhe também habituar-se sem a companhia do amigo Kakiezo emigrado para Luanda.

Na escola, enquanto se aprimorava no uso corrente da língua lusa, passava os recreios a solo ou em companhia de conterrâneos com quem ele "kimbundavam" ao intervalo. Recordavam os idos tempos no Kissongo, ainda sem guerra, nem recuas, com fartura de mandioca, carne de caça e peixe no rio Kixikumuna. Kaúia e amigos aproveitavam o intervalo para grandes viagens até à era dos bons tempos: do café madrugador da avó Kikumbo, do milho assado da tia Kifunde e das brigas de afirmação que deixavam os rapazes com a pele enrijecida e cheia de pequenas cicatrizes. Cada sinal no corpo tinha uma história. E eram essas histórias que cobriam o tempo de recreio.

Um dia, naqueles dias de muita ocupação do professor Gonçalves, em que era preciso passar a "pente fino" os cadernos, Kaúia adiantou-se na apresentação dos deveres ao mestre. Era a forma de ganhar tempo para a repetição dos exercícios errados. Os primeiros a entregar os cadernos eram sempre os primeiros a recebê-los. Era já hora de recreio. Ao regressar à carteira, Kaúia enfiou a mão debaixo da mesa e, debalde, o seu saquinho com um pedaço de bombó e ginguba já lá não estava. Todos os colegas tinham já abandonado a sala e alguém se tinha aboletado do seu farnel!

Kaúia, banhado em lágrimas, queria explicar, mas palavras não tinha. O seu raciocínio era em Kimbundu, língua que traduzia para o "pretuguês" em que ainda mal gatinhava. Pensou explanar na língua que dominava, mas era proibida naquele recinto oficial. A língua da sua gente era apenas para o intervalo com os amigos da buala e na informalidade da aldeia da Banza de Calulo. Aflito, quase a fazer-se em pedaços, Kaúia encostou a poucos metros da secretária do professor que, de óculos inclinados para os cadernos, simplesmente não ligava ao que se passava ao seu redor.

– Camá prossor! – chamava Kaúia.

– Diga! – respondia o mestre.

– Camá prossor…

– Diga!!

– Camá prossor…

– Diga!!!

À medida que o tempo passava, e com a fome a roer-lhe o estómago, Kaúia mais se chateava da desatenção que lhe era brindada pelo mestre. O professor, por sua vez, julgando serem daqueles queixumes próprios dos alunos primários em tempo de intervalo redobrava a atenção à correcção dos exercícios, até que Kaúia, não aguentando mais, atirou:

– Oh! io uamba hanji digó-digó, mbomba iami anhana!

(Oh! estás aí a dizer, diga- diga, o meu bombó foi roubado!)

Gonçalves aguentou-se apesar da forte vontade de soltar uma rizada. Esqueceu-se naquele dia de aplicar o castigo habitual ao falante da “língua proibida” em recinto oficial e aproveitou, ele também, o intervalo para apanhar ar fresco e alguns raios de sol, pois era manhã de cacimbo. O caso do furto seria resolvido depois do recreio.

* * *

E o dia em que abandonou o Kissongo, Kaúia lembra-se bem, como se fosse hoje mesmo. Era ainda pequenino e raras vezes se interessava com os assuntos dos mais velhos da sanzala. Naquele dia, havia disparos madrugadores por todo o lado. Não era hábito acontecer tanta bazucada de manhã. Do cimo da montanha, onde ficava a casa dos seus pais, via-se que o comissariado comunal estava em chamas e rodeado de estranhos que empunhavam armas de fogo. Ouviam-se também batucadas e canções estranhas entoadas numa língua também estranha que só ouvia falar nas roças de sisal.

O Comissário e a sua tropa tinham “desconseguido” resistir e, ao fugir de baixo de arbustos espinhosos, um galho agarrou-se-lhe ao casaco, junto à gola. Naquele sufoco e sem olhar para trás, o pobre coitado estava convencido de que alguém dos “bandidos” o havia alcançado.

– Por favor, me larguem só. Já não sou mais comissário. Fui exonerado há duas semanas e estava apenas à espera do meu substituto!... – Suplicou António Gaspar, o comissário Tony.

A cena ficou tão famosa e expandiu-se de tal modo que deu origem a uma canção relatando o facto. Até em Malanje, que fica do outro lado do rio Kuanza, foi feita um versão em Kimbundu que se reporta a um comissário da comuna de Kota, mas que na verdade era o do Kissongo. O cancioneiro reza que o comissário chorou amargamente e suplicou até que um curioso olhou para o lado e viu que o dimixi se ajoelhara perante um deus inexistente naquele lugar. Tão logo o povo soube de tamanha “medriquice” do comissário, fê-lo personagem da canção que ainda hoje faz furor nalguns folguedos.

– Comissário ya Kota kievu kibulu ualenga! Ualengela uoma muene ua zeka mu iango mamã!..

(O comissário de Kota tão logo ouviu disparos meteu-se em fuga. Fugiu de medo e dormiu na mata...)

Mas, recordação forte, forte mesmo, que ainda aparece nas noites em que o sono é contra-revolucionário e faz greve, é mesmo a grande caminhada! Já lá vão uns vinte anos, quando, em três dias, foi forçado a percorrer mais de cento e cinquenta quilómetros a pé... Desalojados por um dos beligerantes então historicamente aliado às forças de defesa sul-africanas, pais e filhos, na altura ele menor, tiveram de refugiar-se na montanha da Quibuma e de lá partir para o "exílio". Calulo estava em chamas.

Sem água nem comida, sem roupas nem medicamentos para as feridas abertas por estilhaços dum morteiro sessenta, sem horizonte, apenas andar e afastar-se do ribombar de canhões e daquele cheiro cadavérico que os cercava. Apenas andar, caminhar, correr, sem olhar atrás, nem para o sangue que rompia as veias dos corpos torturados pelo susto e pelo sol do meio-dia.

− Será que ainda estou vivo ou é um sonho? Me belisquem!, - ordenou.

Nos seus 15 anos, era já um homem destemido. Em férias em Luanda, travara já muitas lutas com bandidos do Rangel. E mesmo nas missões de militares adultos para o Kissongo e Luaty, estava sempre na primeira linha. Medo não era com ele, mas aquele dia, vigésimo sexto de Dezembro, era um caso ímpar. Cortava a mata cerrada com o mesmo ímpeto que os obuses lançados a partir do Quartel das Mangueirinhas , agora tomado de surpresa pela guerrilha. Andar no mato nunca fora problema para ele, não fosse aquele andar sem rumo, a fugir de quem não se sabia de onde vinha, nem por onde podia estar escondido para de repente montar uma emboscada e atirar à queima-roupa...

No topo da montanha, o que em tempos recuados fora objecto de brincadeiras de criança tornou-se num convívio forçado com os canta-pedras que não abdicavam do seu canto, o que os deixavam incómodos. Das encostas da vila, puseram-se a caminho da Banza do Mussende, num trajecto feito entre palmares e cafezais, revezando a picada com o asfalto serpenteante, evitando desta feita o contacto visual, à distância, com as pessoas de quem fugiam.

Dos irmãos mais velhos e outros familiares nada se sabia. O Sabino, que era sargento do batalhão de luta contra bandidos, afecto às Fapla, tinha participado do combate perdido e escasseavam ainda dados sobre mortes e feridos. Os bandidos, de cujo aniquilamento se ocupava Sabino, tinham conseguido entrar, pilhar e incendiar a vila o máximo que puderam. Era o registo habitual das suas acções.

O César, que era da Oganização da Defesa Popular, uma milícia do governo, terá tido a chance de fugir ou o azar de ter sido capturado durante o reconhecimento madrugador dos atacantes. Algo dizia, entretanto, que o César tinha fugido, pois nas confrontações ele era sempre o primeiro a escolher o lugar da fuga, entre o mato ou o morro. Tal actitude custou-lhe a alcunha de Mato ou Morro. O André, coitado do kota André, era das Brigadas Populares de Vigilância (BPV), outra milícia governamental, e naquele 26 de Dezembro como estar vigilante? Tinha tomado as suas canecas natalinas e o peso da kimanda até lhe provocava incómodo. O caçula Bernabé havia sido atingido mortalmente e enterrado à pressa, uma hora e meia atrás. Uma bazuca se tinha apoderado da toca que repartia com o tio Kizoco e ambos estavam a ser chorados… apenas nos corações! Porque o vermelho do sangue ainda pintava as mãos e forças não tinham para soltar a voz saudosa dos que partiram de forma inesperada. Apenas a Ximinha se tinha livrado daquele calvário graças ao tio Kimbundu que a pedira para cuidar da sua primogênita em Luanda, havia já ano e meio. Ximinha estava também a aprender a ler no centro de explicações do Sr. António, um diminuído físico que não se cansava de “dar luz aos meninos vindos do interior” e amealhar algum. Era disso que vivia, aí junto ao centro Ngongo-ya-mona-a-Diala, no Caputo.

As feridas expeliam o máximo sangue que podiam. Mussende estava à vista, pelo menos a elevação. Já se tinha remetido para trás o Km 5, o Kateculo, Kienha e outras aldeias que acompanham a negrura asfáltica que se desfaz em pequenos cursos de água, rumo à Munenga. Sem paixão, o sol rasgava os lábios. Riachos se tinham tornado em “bocas de fogo”. Entre os leitos rochosos que já alimentaram muitas vidas, apenas lagartos e outros bichos rastejantes. Os insectos voadores carregavam lama para fabricar os seus ninhos e dar vida a seus semelhantes. Aos gritos resmungavam os estómagos vazios. Nem bombó, nem coconote tinham podido apanhar ao longo da caminhada até à Banza do Mussende, o lugar escolhido para parar e calcular o que se deixara na fuga. Era preciso lavar as mãos, chorar os mortos, contar quantos perfaziam a coluna e traçar o rumo seguinte: Se o retorno ou o avanço para uma terra que os recebesse como refúgio permanente. Seria Luanda?

Todas as informações recebidas, transmitidas de boca em boca, com acréscimos e decréscimos de palavras e frases inteiras, apontavam para um caos em Calulo.

− Viram o mano Sabino? - perguntou Kaúia a uma coluna que acabara de chegar ao Mussende.

− Epá! disseram-me que o sargento foi valente. Ainda conseguiu metralhar uns tantos fantoches, mas depois só teve mesmo é tempo de desmontar a agulha do ZG1 e meter-se a monte. Os filho-da-mãe vinham com muita força. - Reclamou Bala Icola, também ele militar. O Kota Bala estava meio fardado, meio à paisana e com a sua arma à tira-colo.

Militares e civis, todos fugitivos, caminharam quatro horas até à Banza do Mussende onde montaram um acampamento improvisado. O Comité, o Soba e outros aldeões ofereciam o máximo de compaixão e meios de que dispunham. Ainda reinava a solidariedade, mas a vida pendia para o pior. Até os caroços de dendém escasseavam e as frutas silvestres eram disputadas entre homens e macacos. Era tanta gente e tantas as necessidades. Procurava-se pelo que levar à boca, pelos desaparecidos, pelos sobreviventes e pela cura para os feridos, enquanto o choro dos que tinham partido para a outra vida aguardava ainda por um melhor momento. Aliás, perante tal cenário, os mortos estavam num descanso bem menos pesaroso.

Foi nesse ambiente que Kaúia se alistou noutra coluna de jovens que decidiu chegar ao Dondo, pela marcha, percorrendo mais de cento e cinquenta quilómetros. Essa foi a última caminhada inesquecível de sua vida, pois até Luanda ainda teve tempo de apanhar o último comboio daquela era.

Agora, mais de vinte anos passados, Kaúia é pedreiro numa “esferoviteira” brasileira. A mini-paz de 1994 devolveu-o à vida civil e já sem a mãe Kioza, refaz na grande cidade o tempo perdido e, é de casa ao serviço que, rememora as grandes andanças dum tempo que a sua memória teima em reter.

Sempre que há avaria no carro de transporte do pessoal, o patrão dá-lhe dinheiro para a passagem no táxi, mas a chuva, as estradas por acabar e a nova lei contra a arruaça fazem com que se ande mais a pé do que em carros que nunca chegam a tempo... Kaúia e Kakiezo, seu amigo de infância, são colegas e levam cinco horas de marcha entre a localidade do Zango e a do Benfica, em Luanda.

Num passo médio, contornam charcos e curvas com mestria. As curtas paragens são compensadas com passos corridos. Conhecem o mapa dos musseques melhor do que ninguém e nem mesmo a escuridão os engana. A lua, as estrelas e o sol fazem a vez do relógio. Em mochilas que carregam às costas, levam desodorizantes, sapatos e camisas passadas que vestem a poucos metros da empresa, antes de se juntarem aos outros colegas. Todos eles trocaram os gatilhos por colheres de pedreiro, formões, serrotes e outros objectos de trabalho, ganhando o seu pão a troco de suor e força.

Na Obras Primas ninguém pergunta a ninguém como chegou nem a que hora partiu de casa. O trabalho fala mais alto do que as condições postas à disposição para o exercício da profissão que é controlada por um capataz de barriga cheia e calva a desafiar um aeródromo militar.

− Cada um vira-se como pode! − Costuma desabafar o capataz Valdez também apelidado por “Vale Dez”.

É durante as pausas, entre um bloco e outro ou uma fiada e outra, que Kaúia vê perfilarem-se no pensamento as incontáveis pessoas que se fazem à estrada em busca do "pão burro" de cada dia. Apenas uma questão não entende e se calhar jamais entenderá.

− Por que há tanto carro na capital e cada vez mais gente a caminhar? − responda quem souber…

***

Em finais de semana, vez por outra, dava-se ao luxo de um passeio, uma ida até à Ilha, olhar palmeiras e o mar e ouvir o chilrear de pássaros. Sonhar é próprio do homem e as planuras marítimas convidam, ou melhor, forçam qualquer um à introspecção e à meditação. Aliás, mais força exerce o mar sobre quem, como o Kaúia, tenha vivido muito tempo no interior. Ah! Como ele lembra ainda dos primeiros tempos em que, chegando junto ao mar, ficou a pensar que nunca tinha visto um rio com uma só margem. E aí, na sua ingenuidade de homem simples, foi perguntar a um grupo de miúdos caluandas onde ficava a outra margem…

Como troco à pergunta recebeu ele insultos. As crianças desataram a rir e a chamar-lhe de boelo. Noção de rudeza das palavras ditas não tinham aqueles mendigos de peixe abandonado na praia. Apenas se espantavam do facto de um mais velho não saber o que para eles era tão trivial. E, às tantas, um dos mais faladores, atirou:

− Ei meu? Vai ver. Tu não sabes que esta água é salgada?

E o Kaúia, que ainda não estava convencido quanto à questão da outra margem, não foi de modas e, não acreditando em “piolhos” tão mal educados, foi provar a água…

− Issunji ! Quantos sacos de sal deitaram aqui, p’ra fazer isso? − questionou, deixando-se ouvir pela rapaziada.

Foi a gargalhada geral e o máximo da gozação. Cansado de zombar com o infeliz Kaúia, o mesmo miúdo que tinha ordenado a prova da água, mudou de tom e, com vaidade e muito atrevimento, começou uma longa explanação, seguida de gestos largos e expressões ainda mais vivas, num linguajar que Kaúia desconhecia:

− Prontos… Esquece mô kota. Eu já marei!… Meus, fitem a boca que aqui o vosso “dji” vai explicar ao dikota que veio do mato “comu’é qui é”. − Mô mano, esse mambo não é rio. Esse mar todo, vem lá da Tuga, passa nas Guiné e Cabo Verde, passa no São Tomé e, “despois” de passar aqui, ainda sobra mais bué de mar p’ra ir “inté” nos Brasiles, Cubas, às Chinas e muitos outros sítios ainda! Lá na minha ‘scola vi um mapa bué big que tem tudo isso! Tem muito mais mar que terra que a malta pisa, meu!

Na sua humildade, Kaúia agradeceu. Fez uma festa na cabeça do “professor” e, pensativo, meteu-se num candongueiro que o levou até à Mutamba. Dali, seguiria no maximbombo 33 até ao Cazenga. Não via nada nem ouvia ninguém. Só aquele miúdo esticando os bracitos finos para lhe dizer o grande que era aquele mar…

No autocarro é um falar alto e agressivo que o arranca da assombração e é também o achar que aquela voz não lhe era estranha de todo.

– É pá! Cheira a chulé nesta merda, pá! Poças, com esta gripe estou tramado!

Já não tinha dúvidas. A voz era de alguém conhecido. Apenas o busto é que não encontrava enquadramento na memória carregada de tantas memórias. Kaúia levantou a cabeça e, olho no olho, reconheceu uma marca no rosto de Fifas.

– Meu avilo , meu! Comué? Sou o Kaúia. Como estás?

– Eu sou o Fifas, meu. Tás magro meu... Família, mulher e putos, quantos?

– Ainda meu. Cheguei há pouco da vida militar!

No fundo do autocarro que soluçava para se desfazer dos buracos, Man-Xaxo, como era por todos conhecido, apesar de se chamar Fernando, ouvia com nostalgia os retalhos de uma vida vivida anos em comum, mas continuou calado por mais um tempo. Fernando fora, na adolescência e na juventude, quem no grupo mais falava, daí a alcunha de Man-Xaxo. Enquanto andou na tropa foi uma peça fundamental na diversão dos companheiros e até estava para receber patente. Pena foi que no combate que “apagou” o temível Ndumba Inene uma bala encravou-se-lhe no tornozelo, fazendo-o voltar a Luanda onde agora é guarda numa empresa criada por um conhecido chefe do Corpo de Polícia Popular.

O destino tinha-os separado fazia tempo. Aportados em Luanda, por força da guerra civil, eles, rapazes na década de oitenta, deram que falar nos becos do México, ao Rangel e Sete e Meio, ao Cazenga. Pululavam sempre juntos pelos musseques e levavam uma vida de irmandade.

– Fifas, tens visto aquela malta do Sete e Meio? O Ambrosito, o Carlitos de Catete, o Kitembo da Quibala, o Man-Xaxo... – Questionou Kaúia.

Era a dica que esperava para entrar em cena! Fernando sabia que haviam de falar dele. Então, dos fundos silenciosos do maximbombo irrompe um vozeirão:

– Olhem avilos, estou aqui! Man-Xaxo, presente! – e prosseguiu, numa toada muito especial que era o seu cartão de visita: – “Filho da dona Eva do Golungo Alto... Sete e Meio, número quatro, Zengá”...

Espanto total! Era assim que o Man-Xaxo se apresentava desde a infância. Era ele mesmo! Os três amigos, naquele mesmo lugar, tantos anos depois. Que maravilha!

– Esanju! – Retrucou uma velhota do Catchiungo, encostada à cadeira do motorista, como quem diz “que pequeno é esse mundo”, enquanto afivelava um sorriso de nostalgia. Quem sabe quanta gente gostaria ela de reencontrar também, depois daquela saída forçada das terras planálticas do Huambo.

Os três amigos repartem a alegria que contagia os demais companheiros da viagem do Baleizão ao Zamba 1, num articulado que gemia em cada paragem e arranque, serpenteando nas curvas e contra-curvas como jibóia repleta que foge de caçadores furtivos das Lundas.

– “Comué”, onde vivem vocês? – perguntou o Fifas.

– Eu? ‘stou no Zango, ali mesmo ao lado da cabina de luz queimada. Fiz uns biscates e vou ver a velha que ficou no Cazenga. Estive na tropa e regressei há dois anos. Fui levado à força, em 1992, depois daquela mini-paz. Agora sou segurança privado, tomo conta do cão do ministro, ou ele toma conta de mim, não sei lá muito bem… tipo os dois “se cuidamos” – ironizava Man-Xaxo.

– E tu, kamba Fifas?

– Fui pescador. Vivia na Boa Vista, agora estou no Kalumbo, onde nos atiraram...

– E lá é fixe? – indagou Man Xaxo, expectante. – Tem energia? Nós, no Zango, a luz está a nduta .

– No Kalumbo ‘stá-se mal. Dizem que vai melhorar, mas ‘tamos a ver só. Por enquanto são os fofa-ndó que nos acodem, embora o preço da gasolina tenha subido...

Man-Xaxo e Fifas monopolizavam o diálogo, perante uma ávida assistência que os rodeava. Outros assuntos do dia tinham deixado de ter validade. Até mesmo as zungueiras deixaram de contar a novela do dia anterior que era tema central nas viagens de machimbombo. Kaúia, recém-chegado à civilização, aguardava pela palavra que não tinha e abanava a cabeça aprovando o diálogo. Queria intrometer-se e fazer um “triálogo”, como faziam no antigamente, no Sete e Meio. As suas vivências recentes eram, porém, outras. Eram combates travados nas matas, nas chanas , carne humana em pedaços e outros horrores que, se calhar, os amigos nem sequer tinham ouvido falar. O seu disco rígido estava repleto de outros filmes duma vida dura vivida à força e com dispênddio de muita força.

– Epá! Dizem que os chineses é que vão colocar a luz no Kalumbo quando terminarem no Golfe, no Zengá e noutras bandas... – Fifas não abrandava e nada conseguia cortar a dualidade.

– Hum… quem disse? É pura mentira! Esses muadiés sabulam . Dizem que já desviaram o kumbú dos chinocas para novas bandas onde estão os militantes do Manda-Chuva.

– Mas isso é verdade? – intrometeu-se um espectador na conversa. Era o Joaquim Kahinza, também ele residente no Kalumbo. – E nós que também somos militantes, mas estamos em minoria nos bairros?

– Olha, vou levar o assunto ao camarada coordenador do bairro. Isso não pode ser assim! – era o rosto franzido de Fifas, perante a anuência silenciosa de Man-Xaxo.

A conversa ganhava novos contornos e novas intromissões, não fosse um candongueiro que, numa manobra perigosa perdeu os travões e foi embater num pilar erguido por uma construtora mesmo na berma da estrada, fazendo um morto e três feridos como resultado. Foi o fim inesperado do tema.

Da confusão de mirones resultou que os amigos acabaram por se dispersando e Kaúia, já perto do destino, seguiu um tanto desconsolado. Tinha tanto para falar e lhe encheram os ouvidos com histórias que não entendia e outras que não queria entender. E mais aquela água toda que não lhe saía da cabeça…

***

Sábado de sol intenso e muita poeira levantada por carros apressados numa estrada quase despida de asfalto carcomido por chuva abrilena. Os homens respiravam a custo. Na comissão do bairro a reunião começou com minutos de atraso, quase uma hora. O coordenador, Bala Icola, tinha recebido orientações superiores para tarefas de importância capital. Falariam naquele dia sobre eleições, criminalidade e outros temas diversos que inquietavam a população. Era preciso resgatar a motivação do eleitorado e procurar prosélitos para a causa. Afinal de contas o sufrágio estava à vista.

Fifas já tinha planificado meter o assunto da energia na hora do debate sobre a bandidagem no bairro. – Não anda ela casada com a escuridão? – questionou-se.

O coordenador atirou o corpo pesado contra a cadeira mais alta, puxou uma garrafa de água. Engoliu uma porção e começou a pôr ordem na assistência que mostrava impaciência, reclamando do calor e do roncar do estómago vazio.

– Viva o presidente Baltazar!

– Viva!

– Viva o nosso glorioso partido Manda-Chuva!

– Viva!

– Vivam para sempre os ensinamentos do saudoso Dr. Arnaldo Campos!

– Viva!

– O mais importante é?

– Resolver os problemas do polvo!

Bala Icola imprimia força e velocidade ao discurso embora os vivas responsivos e o levantar dos braços denunciassem um aborrecimento, um abandono, como quem está mas na verdade não está…

Muenaxi, um cinquentão, farto de falatórios e com o estómago nada farto, resolveu desafiar o cordenador da célula do partido:

– Fala só chefe. Depois temos de ir ao Bita porque ouvimos dizer que já há milho na cooperativa...

Foi o fim. Nunca uma reunião tinha terminado logo nos preliminares. Às palavras mágicas “há milho” seguiu-se um “bruá-á” de cadeiras arrastando, bancos tombando e aquele ajuntamento a caminho da porta! E o chefe? Bem, o chefe ficou a falar entre dentes e para os papéis. Bala Icola esqueceu-se até mesmo de usar a sua arma privilegiada: “Camaradas! São orientações dimanadas superiormente e que devem ser cumpridas à risca”. Era uma táctica militar que tinha aprendido na tropa onde fora o político do pelotão. Apesar da carga ideológica que tinha engolido, o seu estómago era humano e estava igualmente cheio de promessas nunca cumpridas pela hierarquia governante. A fome graçava pela cidade e nem mesmo os capelões-mor da teoria socialista resistiam aos esquemas daquele época. Qualquer alerta, ainda que falso, sobre a existência de cereais ou outros víveres, era suficiente para juntar multidões como abelhas em campos floridos. Muitos trabalhavam por comida e outros, como o Man-Xaxo, se contentavam com o cheiro de comida saído de cozinhas fartas... Bala Icola foi também.


* * *

Ministro no seu tempo, a casa do camarada Kambondondo era um posto muito cobiçado por todos os companheiros da nova trincheira de Man-Xaxo que era artista do relacionamento influente. Assim conseguiu a colocação que tinha dezenas, para não dizer centenas de pretendentes, todos eles ex-militares que trocam agora força e sonos na empresa do “Comandante” Bartajú por pratos de comida e alguns trocados para ajudar no negócio ambulante das mulheres.

Todos eram unânimes numa inveja muito mal disfarçada, demonstrada por discursos indirectos e retorcidos cujo tema principal era o ter amigos que eram amigos dos amigos que mexiam os cordelinhos. E, geral era também o achar que ele tinha conquistado um estatuto de privilegiado por ter conseguido a colocação em casa dum Ministro e por possuir uma ficha com muitos combates travados no Leste e Sueste do país. Bartajú, o patrão, era conhecido de um amigo de Man-Xaxo e foi por via disso que conseguiu o posto da casa ministerial.

Man-Xaxo era um homem de porte físico de pôr ordem na vizinhança e precisava igualmente de exercícios físicos regulares para a manutenção. Claro que também precisava de uma alimentação em qualidade e quantidade para repor as calorias que gastava com a musculação. Apesar do pouco soldo, primava pelo aprumo e fazia questão de manter a sua farda limpa e passada, botas engraxadinhas e barba bem aparada.

A casa de Kambondondo pareceu-lhe, à partida, o ideal posto de trabalho para juntar ao útil o agradável: proporcionar a efectiva sensação de segurança ao Ministro e ter, em contrapartida, comida boa e em quantidade. Kambondondo teve também boa impressão do vigilante quando do primeiro contacto visual. Ambos se olharam olho-no-olho e de lá emanou uma química que oferecia segurança aos dois: guarda e guardado. O Ministro precisava de vigilantes que impusessem respeito, mesmo sem o recurso à kalashnikov , como dizia aos vizinhos e amigos.

O andar dos dias mostrou-lhe, porém, que toda aquela primária imaginação tinha redundado em ledo engano. O destrato permanente foi dando a entender que, afinal, paraísos na terra ou não há mesmo, ou estão reservados para quem tem influências maiores que as dele… É que aqui, Man-Xaxo assistia dias sim, dias sempre, aos banquetes com que Kambondondo brindava os amigos, ex-companheiros de brigada, sócios empresariais, afilhados e até namoradas, sempre que a dona Kifunde se ausentasse para compras no Dubai. A quarentona tinha um gosto exagerado pelo esbanjamento e uma mão direita cujos dedos nunca se abriam aos necessitados. Até mesmo as irmãs mais novas passavam a vida a reclamar da mão-de-vaquismo da mana que não se desfazia sequer dos antigos vestidos.

O guarda, apenas de longe saboreava os manjares multi-culturais que lhe passavam à barba. O seu prato vezeiro era o do arroz com peixe frito e pão seco que vinham da empresa de segurança Njovoli .

Junto à entrada principal da residência estava um pitbull carnívoro, animal de estimação de Kambondondo, cujas regalias se equiparavam às que oferecia aos filhos, ultrapassando mesmo, em larga escala, as miseráveis vivências dos directores nacionais. O Xinganheca, nome fino do quadrúpede, tinha médico, dentista, adestrador e muito mais. As suas consultas eram seguidas ao pormenor e usava dos mais caros perfumes. O Xinganheca era, aos olhos de Man-Xaxo, um cão com direitos humanos. Priveligiado, ele? Só rindo para esquecer! Aquele cão é que tinha este mundo e mais o outro. E se quisesse outro ainda era só pedir. E se ele soubesse pedir um mundo bem melhor! Seria só abrir a bocarra e falar alto…

Farto da vida super-humana do cão e da infra-vida de cão que lhe era brindada naquele rancho ministerial, Man-Xaxo começou cauteloso e sorrateiramente por dividir os bifes entre ele e o pitbull sem que os seus segurados dessem por nada. Com o andar do tempo e com a maior naturalidade, foi diminuindo a parte da carne destinada ao cão-humano, mandando a outra pela goela dentro do humano-cão. E todos vivam felizes. Bem, pelo menos, não havia reclamações, até que um dia pensou no que seria o seu golpe de artista: inverter os pratos. O peixe frito para o cão e o bife para si.

Mal pensou, pior fez. O engarrafamento daquele dia, que se seguiu à noite de chuva, tinha atrasado a chegada da carrinha de distribuição da comida dos vigilantes em quase todos os postos. Aqueles que tinham bons "bosses" quase dela nunca precisavam. Entretanto, com o Man-Xaxo a conversa era outra. O pitt Xinganheca já tinha tomado o seu leitinho matinal, desprezava os biscoitinhos importados, aguardando a principal refeição do dia. Só que Man-Xaxo engolia ainda vento atrás de vento e bocejava esfomeado. À hora do almoço, o bife tanto fazia verter fluidos das bochechas do canídeo, como criava litros de água na boca do seu companheiro humano. O guarda da casa não pensou nem pestanejou. Tão logo chegou o apetitoso pitéu, tragou-o em dois tempos, ficando de sentinela, paciente à chegada do arroz com peixe frito. Estava já de pança feita e, com o estómago em maior actividade que o habitual, atendendo à quantidade e à velocidade da refeição, Man-Xaxo arrotava temperos que enciumaram o pitt, obrigando-o a abrir-se em raivosos uivos que despertaram a atenção dos proprietários da herdade e da vizinhança.

António Lunguluka, um vizinho brigadeiro que dispensava guardas, já tinha afinado a kalashnikov para o pronto-a-matar ao primeiro sinal de intrusão na sua casa, a Vil'Armanda. Estava-se num tempo em que nem os gatunos tinham horas para os assaltos, nem os militares paciência para esperar pela polícia ou coisa parecida. Os assuntos de justiça eram resolvidos na hora e com a eficiência dos meios ao alcance de quem os tinha.

Mergulhados em estranheza pelo latir enraivecido do animal, Kambondondo e Kifunde colocaram um ponto e vírgula à saga romântica e transpuseram a porta para o quintal.

Qual o espanto? Repousava no canil intacta uma marmita com arroz e peixe frito. Decisão “Ministerial”, com carácter prioritário: Mandar imediatamente de volta, e sem mais explicações, o pobre “animal” à empresa Njovoli. E, caladinho porque, pelo contrário, veria o pior!

1 comentário:

  1. Mano,
    xte teu filho nasceu bem inteligente e dá mesmo vontade de visitá-lo sempre que for possivel.
    Parabéns!
    Guido

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