segunda-feira, 9 de agosto de 2010

UM PEQUENO PROBLEMA

O homem entrou fulo no avião da "Palanca Negra". Tinham-no acordado de manhã, muito cedo, para a viagem das seis e meia.
- Meu senhor, algo o inquieta?
- Sim, minha querida. Esse banco perece que não recua e viajar assim não é nada cómodo.
- Por favor, deixe-me ver. - Disse ela tentando confirmar a reclamação.
- Mas...
Nem terminou a desenhar o que tinha para disparar, a hospedeira rapidamente o convidou.
- Há lugares vagos lá atrás. O senhor quer vir comigo?
Meneou a cabeça e ficou a reflectir, emitindo um sinal parecido a um NIM . Mudar de lugar ou encostar-se à quentura da colega Bia sentada à sua esquerda?
As senhoras, colega e hospedeira, mantiveram-se caladas enquanto ele falava com os botões.
- Joãozinho, podes ir. Aqui vais sofrer.
- Mas esses senhores têm de reparar isso. Essas sucatas em pleno século vinte e um são uma aberração. Assim não pode ser. - Resmungou.
- Vou ficar aqui sofrendo ao teu lado que até me dá um grande prazer. - Ironizou para acalmar a Bia.
Bia apenas sorriu enquanto a hospedeira atendia a um "’tá-me doer" duma criança, algures no avião.
- Joãozinho, tenho um bom livro da professora Repolho. Acho que vais gostar. - Tentou Bia descontrair o clima.
- É sobre psiquiatria ou Geografia?
- Estás a ver aquele trabalho que te mostrei da outra vez? É relacionado.
- Ok. Quando o avião levantar voo.
Joãozinho tenta, com custo, compensar a noite não dormida e transferir os seus desejos mal terminados com a esposa para a mulher que lhe faz companhia.
- Felizardo de quem pega nesse pedaço! – Pensou sem o dizer de viva voz.
Joãozinho tinha ficado cinco dias em Luanda para trabalho e apenas por duas vezes pôde se entregar à quentura da "sua dona". O cansaço provocado pelo trabalho sem tréguas e outras preocupações familiares tinham diluído todo o seu tempo e motivação para o pagamento do "dízimo". Aliás, a segunda vez nem ao meio chegou, pois foi interrompida pelo grito enraivecido do telhado de zinco ao ser agredido por uma pedra madrugadora.
- Deve ser o motorista que chegou.
- Ai é? Dá-me o relógio...
Eram três da madrugada, hora improvável para a recolha ao aeroporto. Mesmo assim levantou-se e foi ver o que se passava fora do quintal murado.
- Passa a bula meu...
- Calma, mô ui, calma.
Eram dois jovens que buscavam inspiração num charuto de kangonha . Voltou ao quarto, aonde a amada o esperava, já sem prazer nem sono.
- Amor vem.
- Sabes que tenho de lavar a boca para não ficar a deitar salivas...
No fundo queria cuidar da assepsia matinal e buscar a última inspiração para retomar o que os liambeiros tinham interrompido.
- Ai amor, como me dói a hora da despedida.
- É. É tudo duro mas tenho mesmo de partir.
Não tardou o telefone tocou. Desta vez é da companhia que presta serviço de transporte à sua empresa.
- Alô, já está à porta?
- Não, senhor Joãozinho. É que queríamos pedir desculpas porque o motorista que conhece a casa do engenheiro faltou e ...
- Engenheiro não, Joãozinho. Se quer pode falar doutor.
- Sim sô doutor! Estamos com um pequeno problema.
- Está a me dizer que não me apanham...
A mulher que acompanhava de longe a conversa telefónica e ao subir do tom do marido decidiu intervir.
- Amor faz como das vezes passadas. Pegas o carro e vais à estrada principal, depois voltam juntos para deixar o carro no quintal.
Joãozinho, puxou pelo relógio para confirmar a hora que caminhava veloz.
- Pôças Joãozinho! Esses teus colegas são uns desmancha-prazeres.
Olhou-a nos olhos, deu-a um beijo na testa e procurou pela roupa. Tudo o que estava por fazer estava perdido e teria de esperar pela próxima folga.

Na sua cadeira, no avião, o homem navegava de sonho em sonho. Transpirava por dentro vendo retoques de beleza escondida num fato azul-marinho da colega, mesmo com os cacimbos visíveis já ultrapassados.
- Joãozinho, estás distraído? - Perguntou Bia.
- Não querida. Estava a pensar numa crónica de viagem.
- E qual será o tema?
Joãozinho ficou a pensar por momentos que o tema devia ser "como te vou pegar, meu pedaço?"
Mas ouviu-se a dizer, com o ar mais pacífico deste mundo:
- Hoje vou escrever sobre um pequeno problema. Sobre essa cadeira que não recua...



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