quarta-feira, 1 de setembro de 2010

PAPÁ CHEGOU!


...
Kambuta chegou de viagem. Se tivesse de andar num azul-e-branco até à casa teria de gastar, ao fim do percurso que separa o Aeroporto do Bairro Viana Nova, um total de Kz. 400,00, divididos em 4 trechos de igual valor. Foi a pobreza momentânea que o forçou naquele dia, último da tolerância contra os azuis-e-brancos, a optar pelo transporte colectivo urbano. A passos da paragem ainda pôde trocar prosas sobre a vida na capital.


-Epá, - dizia ele para um colega de viagem, - isso agora parece que está mais p’ro inferno do que para a urbanidade!


- Sim, meu camarada! É só ver como andam as pessoas nos carros, todos ensardinhados, e aengolir cada vez mais poeira levantada pelos veículos...


- É. Isso anda maluco! e nós que estamos mais no interior do que na capital sofremos mais ainda.


- Pois é. - Replicou Kitomangombe, o seu interlocutor, que vivia ininterruptamente na capital. Porém a semana de ausência, no nordeste, também lhe causava estranhezas.


- E como é que vais à casa? - Perguntou ainda Kitomangombe.


-Epá, vou me desenrascar... De qualquer meio que aparecer. Kupapata ou mesmo “avó chegou” , tudo serve.


Kitomangombe seguiu o caminho do Rocha Pinto e ele, Kambuta, dirigiu-se ao Banco que ladeia a estrada da "Revolução Soviética". Estava decidido em alugar, se possivel, uma viatura particular para chegar cedo à casa, onde os filhos e a amada o aguardavam esperançosos.


- Meus senhores, bom dia!


- Bom dia, - respondeu um dos guardas que acabava de endireitar os olhos enramelados na noite mal dormida. O homem parecia "estar apenas por estar" .


- O senhor pode cuidar da minha mala cá fora? é que venho de viagem e estou sem dinheiro para chegar à casa…


- Vem de viagem? Mas o senhor não pode deixar aqui a sua mala.


- Então posso levá-la comigo até lá dentro...


- O quê? levar lá dentro e se der maka?


- Que maka? O senhor está bem da cabeça ou faz-se?- perguntou já sem paciência.


O jogo de perguntas e respostas atraía mais gente à porta do banco. uns dando razões ao Kambuta e outros alegando que devido aos aconteciemntos dos últimos tempos em que muitos guardas foram driblados, o segurança estava certo. Kambuta operdia a paciência, perante um rasteiro vigilante que estava longe de um polimento urbano.


Sem dinheiro no bolso teria mesmo de enfrentar os autocarros, coisa que não fazia há mais de dois anos, desde que propositadamente fez o percurso Rangel/Viana para registar os cânticos anónimos. Mas de lá para cá muita coisa mudou. Pelo menos, dizia-se nos jornais, Rádio e televisão que muita coisa havia evoluído. Apregoaram-se autocarros limpos e cómodos, equipados com AC e silenciosos, com mais jornais em leitura do que falas dispersas


… Diálogo…

O primeiro machimbombo que por ele passou tinha a designação de Segura a Gola d’Outro e estava apinhado de gente. Tudo quanto ouvira levaram-no e pensar que se tratasse de um funeral e não desistiu da espera. O segundo, da companhia Tira o Colete e Ultima a Luta, também rebentava pelas chaparias. Desesperado tentou enfiar-se por um espaço que restava entre pernas mal colocadas na pequena escada do pesado, mas sem sucesso. Desistiu.


- Taxi, taxi. - Chamou ele deseperado.


- É 'scongolense, papoite. - Advertiu o cobrador.


- Quanto é a passagem?


- Preço da igreja meu papoite!


Pagou os primeiros Akz.100,00 para um percurso aproximado de 2km. Encontrou uma agência bancária com multicaixa e tentou a longa fila. Os Kwanzas acabaram e a reposição tardava com a mesma persistência com que o sol atingia o epicentro.


À saída da agência, colocou a mala sobre o lancil, à sobra duma velha acácia húmida de mijo. Riu de forma aberta, espantou os nervos e caminhou mais um trecho. Agora sem dinheiro e sem força nas pernas, Kambuta limpa a mala, esconde os óculos que o identificam com facilidade e mistura-se num aglomerado que aguarda pelos autocarros. Estava perante o último recurso.


- Não há escolha. – Introspectou.


Ao chegar à paragem o primeiro autocarro da companhia Tira Ultima Risada e Anda, Kambuta não titubeou e nem mesmo os passageiros à boca da porta o fizeram desistir. Estava já há duas horas na capital, tempo superior ao da viagem aérea em que transpôs mil quilómetros.


- Tomara que seja mesmo climatizado. -Falou aos botões.


Já dentro, os empurrões e os cheiros desencontrados davam-lhe as boas vindas.


Gelados de múcua , kikuanga , makayabo , kapuka madrugador, vómitos mal lavados e outras náuseas imundas fazia o cocktail fedorento.


- Moço,”mi disculpa” só paizinho! Toca mais à frente! - Ordenou a cobradora.


Próximo da porta frontal, que servia de entrada, uma jovem nos seus 15 aninhos reclamou:


- Pôça! Até cheiro de liamba? Para quê que não vão à pé? Alguém tem de ver isso. – Desabafou desesperada.


- Xê kanuca! ‘Stás a falar assim a quem? - A voz rouca e pouco higienzizada era dum jovem que aparentava 29 ou 30 anos. Estava ébrio. Diria mesmo encharcado. Grandes teriam sido as dozes que engolira na véspera e que faziam dele um evaporadouro de álcool etílico.


- Hum, falei pra ti? Olha então a cara dele… - Resmungou a jovem.


Entre reencontros provocados pelas travagens repentinas e contorções da viatura que soluçava ao encontro dos enormes buracos deixados pela chuva recente na estrada repavimentada, os passageiros iam tomando contactos mais íntimos. Corpo a corpo e suor no suor, qual molhados de fogo da paixão. Mais se parava, mais se falava e mais se ia trocando salivas das falas dispersas, deixando fervilhar no ar um perfume de aromas desconhecidos. E tudo mudava.


Os penteados desfeitos pareciam noites intermináveis de amor da puberdade ao passo que outros cabelos, industriais ou herdados de indianas, jaziam também sapato abaixo, naquele chão, evocando aos fios o sofrimento que é uma viagem num machimbombo de Luanda.


Foi nesse clima que Kambuta reencontrou a capital, a horas da declaração da Tolerância Zero aos desmandos dos automobilistas. Os cintos de segurança, os porta-bebés, os macacos, os coletes reflectores, as chaves de rodas e outros apetrechos passam a ser obrigatórios e as penalizações vão até ao tecto de 2 anos de salário mínimo.

Nas ruas as más-línguas apregoam que no dia primeiro de Maio haveria no largo da Cimangola um palratório de todos os candongueiros para reclamarem das vindouras multas policiais.


As boas línguas, porém, reforçam na media que ninguém mais abortará a aplicação da Mudança. Apregoa-se também, nos altifalantes públicos e privados de vocação pública, a inundação da cidade de novos autocarros. Políticos, empresários e pseudo empresários se revezam nas promessas e a “Revolução Viária” se torna palavra de ordem. A mesma ordem que ainda se confunde com a “gasosa” das multas adiadas em conversas de cavalheiros.


Já em casa, Kambuta, maltratado pela viagem, é recebido apenas por uma das filhas que o reconhece pelas rugas no rosto.


- Como foi a viagem papá?


- Terrível filha, terrível! Os autocarros são baratos mas bastante infernais. -Respondeu aborrecido.


 

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