sábado, 2 de outubro de 2010

O SEGREDO DA MUXIMA

O dia nasceu envergonhado. Lá em cima a lua, cinzenta ainda com preguiça do longo descanso, e o sol também vaidoso e todo ele alaranjado, pareciam gêmeos. A cidade, porém, está já com a agitação do meio-dia doutros tempos.

"- … Me desculpa só ué! Eu sou a outra. Também mereço ser feliz…" O rádio dentro dum Toyota Hiace tinha o volume excessivamente alto. E os passageiros precisavam gritar para comunicar o local da paragem ou aproveitar a viagem para uma prosa com a pessoa ao lado.

A viatura de nove lugares parecia “empanturrada” de gente. Eram dezasseis no total. Por onde passava soltava ritmos que convidavam à dança e à reflexão de senhoras puritanas e libertárias flagelando-se com farpas que estendiam ao autor material da música em voga.

– Mas esse moço foi criado aonde, para trazer aqui essas suas modas de segunda? – Interrogou Domingas António, devota católica e frequentadora assídua do santuário da Muxima .

– Mana Domingas, deixa só. – Aconselhou Madalena José, sua comadre e companheira de rezas e viagens, também ela procedente do santuário além Kwanza.

Manda-diá- Zuze ou Madó, para as colegas da paróquia, é crente e devota, muito dada à caridade e trabalhos sociais na comunidade. A sua elegância contrasta porém com a vida pacata que leva. Mãe de dois filhos, “sem pai”, confiados à benevolência do Padre Abreu, que os tem como afiliados, buscava a forma mágica de manter um segredo apenas seu.

Enquanto as devotas vão tentando se acalmar do sururú causado por aquela música ou no mínimo procurar fôlego para engolir aquele “também mereço” do Damásio, uma jovem põe “lenha na fogueira” e desbota:

– Hoje em dia o homem já não é “empresa privada”. Se você estiver ’mbora a dormir ou a engordar à toa com as regalias, são as outras que ficam com ele de verdade. - Chiquita mal tinha terminado a exposição, quando ganhou o complemento de Manuela que estava na cabine, junto ao motorista, dirigindo-se de forma provocadora às devotas:

– Mamãs! Os tempos mudaram e os gostos também. Os tios agora gostam coisas que vocês nunca imaginaram fazer…

- O quê? – Questionaram as senhoras indignadas.

Madó tentou engolir a provocação em seco, mas foi-lhe dificil. Interropmeu, por instantes, a sua viagem à memória e a conversa com os botões e atirou:

– Mas agora é assim? Suas cabronas de merda! Já não se respeita mai sas mais velhas e até marido das vossas mães também estão a receber? E ainda vos acodem na música deste malandro que as p… também merecem… Deus, Nossa Senhora!- Desabafou transtornada pelo que acabara de ouvir das jovens.

Os nervos afloravam à pele e a senhora teve mesmo de se controlar para não soltar palavras que nunca se esperavam sair da boca de uma senhora de idade. Madó tinha-se lembrado do ditado popular .

- Mana ambula ngó. Madiuanu ! - Acalmou Domingas António.

No clima de “conversa puxa conversa”, uma autêntica confusão se instalou no Hiace para a gratidão do cobrador que, devido ao calor e falta de acépsia, ia distribuindo odores fedorentos aos mais próximos.

– Pôças, esses jovens nem higiene laboral têm! Mal o mecânico termina os trabalhos eu juro: Nunca mais essa merda! – Desabafou desgostoso um homem de idade, Matias Fuccic de seu nome de registo civil.

A viagem prossegue. Com ela, a “música do momento” que passa, repassa e torna a passar como se outra não houvesse. Entre prós e contras se fomentam conversas várias e aumentam-se os volumes bocais. O que sai para fora da viatura é já um turbilhão de vaias, elogios e palavras desencontradas. Os sons emitidos pelos altifalantes, os gemidos de um carro já cansado e sufocado pelo excesso de peso e as vozes dos que se xingam. Jovens atrevidos assobiam ao desgosto da mulheres ortodoxas.

- Hoje é hoje… - Desafiou Serafim, um conhecido gatuno de telemóveis e carteiras que costumava viajar nos candongueiros para avisar os amigos que se encontravam em prontidão nas diversas paragens.

- Parece que as "mamoites" vão perder a batalha (das palavras)! - Emendou outro jovem, dos cinco que se faziam transportar no veículo.

- Calem masé as bocas, seus pirralhos! – Repreendeu com veemência Domingas António, já cansada de tanto disse-que-disse.

- Hum, Mana Minga Deixa só. Esses assim querem já confiança, mas estão enganados. - Acalmou a compenheira.

Na primeira paragem, Domingas António decide abandonar o carro e aliviar-se do sufoco. Serafim que se apercebera da intenção da senhora tinha avisado por sms os amigos que a aguardavam em prontidão.

A horda de larápios tinha ensaiado a rota para a fuga e como descontrolar a vítima sem recurso à arma branca.

Mal a senhora, com sacola a tiracolo, poisou o primeiro pé no chão, um atrevido espetou-lhe uma kibiona para a desconcentrar.

-Mamoite passa o mambo! - Advertiu o larápio com o dedo indicador entre o canal rectal da senhora.

Aflita, entre resguardar a sanidade moral e a sacola, preferiu a primeira opção. Aliás nem tempo teve para pensar. A sacola, com os haveres, caiu em mãos do mal-feitor.

- Socorro, é ngombiri ! Socorro Sô polícia! Me levaram a pasta. - Gritava aflita ao que se seguiu um “agarra gatuno!, “prendam o ladrão” e outras gritarias apenas para entreter. Quem gritavam eram os proprios amigos de quem tinha furtado a sacola.

Com o episódio, instalou-se uma outra confusão no interior do táxi, juntando-se a que se passava na rua Revolução de Outubro, onde nem polícias, nem fiscais se aprontaram para o solicitado SOS.

- Os tempos estão mesmo mudados - Atirou Domingas António aos seus botões.

A sociedade impiedosa assistia impávida ao filme. O ladrão caminhava impune. E os carros revezavam-se na paragem para apanhar ou deixar passageiros. A vida continuava apressada como sempre. Aos soluços ficou Domingas António, seguindo o rasto da música que rumava ao São Paulo, destino daqueles Hiaces, sempre com a “queta” do momento, num vai e vem sem fim.

… Me desculpa só ué. Eu sou a outra. Também mereço ser feliz…

Na segunda-feira, dia seguinte, o tema, "Valerá ceder ou vamos continuar a rezar para reter os nossos maridos?" foi levado ao padre Abreu, na Capela da Dona Maria.

As mulheres queriam, aí mesmo, debitar ideias. Mas foi uma agitação tão grande e um falar alto que não permitia o entendimento. Havia três correntes formadas em função das faixas etárias. As liberais, as revolucionárias e as ortodoxas, cada grupo puxando a brasa para a sua sardinha. O padre teve de solicitar que o mesmo fosse motivo de reflexão caseira para um debate posterior, na reunião da “sociedade de mulheres de idade”.

- As irmãs vão primeiro reflectir cada uma no seu canto e depois, na próxima quinta-feira, vão concluir aqui na capela. A irmã Madalena José será a moderadora. – Recomendou padre.

As mulheres ainda tentaram convence-lo para que fosse ele a dissertar, mas o religioso passou a bola à uma delas. Tinha ele outros planos para a semana e faltar-lhe-ia tempo para preparar o tema.

No dia combinado para o reencontro das devotas, Madalena José surpreendeu-as com uma súbita ausência. Ninguém sabia por que motivo, ela que nunca faltava à reunião da quinta, estava ausente.

- Deve estar com problema ou adoentada. – Conjecturavam as colegas.

- Mana Maria Simão, mana Isabel Francês, mana Luarica Gomes e eu vamos à casa da Manda-dia-Zuze. – Era a voz comandante de Domingas António.

A comissão de visita, munida de frutas e alguns valores em dinheiro, foi de imediato à casa de Madalena tendo-a encontrado vivinha da silva. Apenas um detalhe:

Na mesma noite em que se combinou realizar o debate na quinta-feira, o padre avisado da ausência prolongada do marido, foi rever os afiliados e envolver-se na quentura carnal da sua amada. Fazia tempo que não ensaiava os versos líricos.

- Sabes Madó, amo-te muito.
- Hum. Não me parece, sô padre!
- Por quê amor meu de Cristo?
- Tens estado mais em outros lugares do que aqui. Ou deixaste de ser homem como os outros que adam de Jeans e sapatos de bico fino?
- Quê isso mulher?
- Sim. Sei que tens superiores que são “deus e homem”, mas tu nem tempo tens para os filhos que ate são teus! Dizes a isso amor?
- É sim, irmã Madó. Tem sido difícil concilar o trabalho de servo e de homem terreno. Repartir-me tem sido dificil…
- E assim dizes que me amas? Até os teus filhos andam saudosos…
- Os meus afilhados estão bem e vejo-os todos os dias nos colégios.
- E para mim bastam os filhos starem com saúde? E Homem?
- Peço perdão a Deus e a ti Madó, mas tens de pôr na cabeça que a curva que estamos a descrever é apertada…
- Tenho dúvidas, meu padre.
- Já te disse. A dois deixo de representar a Cristo.
- Mas amanhã estarás vestido de batina ao saires daqui. Ou me engano?
- Em parte certa e em parte errada. Mas não me trates por padre porque nesta condição não te posso amar como pretendes.
- Então confirmas que não me amas não é? E até já estás com cara de pressa de sair. Hoje não vais sem molhar a sopa!
- Amo-te como um pastor ama as suas ovelhas e um homem de carne a uma mulher carnal.
- Prova-me isso então. Apalpa-me o meu peito e recebe-me como carne que sou para tua boca faminta.
- És um sabor agridoce mas recebo-te com prazer…

E os momentos que se seguiram foram de êxtase até que passada hora e meia da meia noite o galo cantou de aviso, feito vigilante. Tinha chegado o momento da partida do home-padre. Madó acordaria, como sempre, envoltra em lençois. Estava acostumada e já não fazia caso contentando-se com o efémero momento vivido e olhando para a taça de pé alto com o rosé ainda por beber. Abreu, por seu lado, entraria de pianinho na casa paroquial numa hora em que a cidade se preparava para mais um dia de agitação.

No dia seguinte, terça-feira, Abreu tinha outra visita no bairro na Lixeira, casa de Maria Simão, por sinal, uma amiga de longos anos de Madalena José. Há meses que tricavam olhares intencionais e ambos tinham combinado aproveitar a ausência dos filhos de maria que tinham ido visitar o pai na distante Lunda, onde trabalhava. A tarde, solorenta seria momento ideal para pôr a conversa em dia, e quicá…

O sol brilhava furioso ao meio da circunferência azul. Dificil se tornava olhar para ele e caminhar sem água tornava-se sufocante. Madalena, que saia das compras no Roque Santeiro, decidiu então ir à casa da amiga e afinar algumas ideias sobre o debate agendado para quinta-feira. De longe reparou que havia uma viatura junto à casaa e ganhou confiança de que a iria encontrar.

Ao avistar a viatura paroquial estacionada em frente ao portão, Madalena nem imaginou no que estaria a acontecer intra-muros. Como de costume, a porta estava entreaberta e mal a empurrou deparou-se com um inimaginável cenário: Maria e Abreu trocavam intimidades.

- Xê mana, Kima kiânhi mualô banga ?

Foia a aflição total para Maria que se achava seguracom o padre Abreu naquele hora em sua casa, sem ninguém à volta, e para o "anunciante das boas novas" que nunca imaginou ser surpreendido nas suas caçadas.


- Mana que susto! Então combinamos já hoje o debate e a comadre faltou? - Questionou Domingas.
- Manas obrigada por me terem vindo visitar. Estava sem forças. Viram na igreja o padre Abreu?
- Não! - Responderam em coro admiradas.
- Viram a mana Maria?
- Sim. Ela veio connosco. - Responderam em coro, sem dar conta da ausência da companheira.

Enquanto se dirigiam à casa de Madalena nem se deram conta da desistência de Maria Simão. Custou à Madalena abrir-se às amigas e contar que tinha surpreendido a sua melhor amiga, Maria Simão, com o Padre Abreu, homem com quem ela fizera os dois meninos. Foi o fim do segredo da Muxima.

2 comentários:

  1. Olá grande amigo Canhanga, tudo bom? Leio sempre o que escreve, pena é que nem sempre tenho tempo para comentar em todos meus fiéis seguidores. Gostei desta postagem, como sempre escrevendo coisas da alma e da terra que amo!

    Um grande abraço

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