sexta-feira, 1 de maio de 2015

A REDACÇÃO DE SANUKA


No Belas, o kasula dos municípios da Ngwimbi, o momento era de festa e trabalho. Festejavam-se os dados do censo que apontavam mais de um milhão de habitantes destronando o Cazenga que afinal não tinha o milhão da fama de muito tempo. Festejava-se com “lambula” e “maluvu” de bordão trazido da Barra do Kwanza, lá pelas bandas onde o bordão e o “cisombe” abundam. Os pescadores vindos da faina distribuíam as kabwenhas para seca e os peixes mais graúdos às tias do “bijeéé-mbijééé” que de “tombwelavam” aí mesmo. As mais espertinhas passavam a perna as caloiras no negócio madrugador do peixe fresco.


Só no bairro Km 30 é que a conversa era outra, embora sobre o censo ainda. Em quase todas as ruas e ruelas havia discussão sobre “roubo” de terrenos. Uns tinham adquirido espaços de 20m x 20m e no dia da última medição para inicio das obras as contas estavam a bater erradas. Só as dos vizinhos madrugadores na construção é que batiam acima do talhão.


- Porra, se “tombwelaste” o meu terreno, assim fica como, vizinho?! – Gaspar não tinha dúvidas. Tinha medido tudo ao pormenor. Até GPS tinha usado.


- Porra não, vizinho. Haja respeito. Eu cheguei primeiro e cuidei do teu terreno. Deixou de ter capim e minhocas. Quarenta centímetros que o meu pedreiro te descontou até foi favor. – Ripostou Kafuxi com a rabujice que lhe é reconhecida no bairro.


Enquanto os kotas trocavam ameaças, mas sem intenção de “gargantear” o pescoço do outro, Sanuka, miúda do bairro que estuda no IGCA apareceu com o relatório do censo, com as makas da extensão geográfica na boca.


- Tios, estão se dar “kibeto” só porquê se ainda o Estado também se “tombwelou” lá terreno dele?


- Que conversa é essa, menina Sanuka, cuidado que num se brinca com assuntos de Estado. - Alertaram, já amigados, Kafuxi e Gaspar, atentos às folhas que Sanuka exibia. E pareciam autênticas, com carimbo e tudo.


- Sim, vizinhos. Quando chegou a “dipanda” dos africanos, naquela pressa do “tunda mindele”, Angola e seus vizinhos mariscos, zairenses, zambianos e mais tarde os  namibianos eram como o vizinho Gaspar e vizinho Kafuxi. Não tinham colocado muro ainda nos seus quintais e começaram a viver só assim. Filho de vizinho entra na caso do outro e galinha daqui esgravata ali, sem problema nenhum. Até que um dia o vizinho Angola decidiu murar o seu espaço. Assim tipo já o vizinho Kafuxi fez no seu quintal. Levantou o muro e foi fazendo um “kadesconto” aqui, outro acolá. Desbastou a “kamunda” que estava no meio dos dois terrenos e ficou tudo plano. No lado do buraco, meteu lá a terra que era da “kamontanha” e o terreno dele ficou mais largo. Assim fez também o Estado. Como os vizinhos  do mar, do norte, do leste e do sukl estavam a demorar pôr os muros, Angola fez depressa e cresceu mais 5445 km2.


- Boquiabertos os vizinhos, não se deram conta da baba a cair, perante a explicação pitoresca mas documentada da nova intelectual do Km30, ao Belas.


- Mas ó Sanuka, não terá sido o GPS que aumentou o terreno do Estado? Não terá sido o kaputu que se enganou nas contas da nossa geografia antiga? Não terá sido fruto das dragagens no mar? Olha que temos portos e avenidas costeiras em construção... – Gaspar, entendido em assuntos de GPS, acordou do sonho e procurou entender melhor o assunto dos quilómetros de avanço.


- Deixa, vizinho Gaspar, - ripostou Fafuxi - a população passou de sete para vinte e quatro, querias que o terreno encolhesse?


Chamada ao telefone, pelas colegas da escola, Sanuka se desfez dos vizinhos e foi fazer a composição solicitada pelo Professor de cartografia.


 


«Camões que em terra de “cawoyos” é rei escreveu “Os Lusíadas”, poesia épica ou epopeia, em que narra factos notáveis, grandiosos de um povo. A literatura costuma apresentar os factos, geralmente,  atribuídos a um herói. Luis de Camões, atribui a epopeia dos Lusíadas ao povo português, representado por Vasco da Gama, o descobridor das Índias Orientais.


Enquanto povo heróico e generoso, os angolanos têm muitas epopeias. Uma delas, e novíssima, tem a ver com a conquista/resgate/recontagem/reconfirmação(?) da extensão do nosso território nacional, onde estamos a fundar a “Pátria Nostra”. Os dados, ainda fresquinhos, do resultado do censo geral da população e habitação de 16 de Maio de 2014, apontam que a extensão de Angola passou dos então conhecidos 1.246.700Km2 para os nada maus 1.252.145 km2, (pág. 07 do Relatório do censo) mais 5445Km2.


Estranho é que a minha festa continua a solo como se 5.445Km2 fossem nada. Já imaginou um terreno desses para uma auto-construção dirigida? Dava até por ter bois, cabritos, galinhas, gansos, patos, e exploração mineral autorizada caso houvesse recursos no seu subsolo. Os vizinhos Gaspar e Kafuxi deixariam de trocar ameaças de morte e praguejamento à família e descendentes.


E continuo a festejar sozinho o aumento da nossa “geografia” ou a confirmação, via GPS, distinta do metro-a-metro da contagem lus-e-tana do antigamente, porque nos falta gente com olhos lince para nos explicar onde e como se conseguiu tamanha proeza.


 Senhor, professor, atendendo ao facto de a extensão do nosso país estar figurada em relatórios e documentos internacionais e ser objecto de estudo das nossas crianças desde a 4ª classe, qualquer alteração desses números devia ser bem explicada e documentada ,já que os novos dados sujeitarão as instituições de ensino e afins a mudarem os manuais.


E, enquanto festejo, vou também colocando perguntas a mim mesma?


- Como foi mesmo que conseguimos os 5445 quilómetros quadrados?


- Foi devido a dragagem do mar? Temos exemplos claros na baia de Luanda e noutros sítios em que se projectam portos de águas profundas.


- Terá sido por kasumbula a um vizinho distraído ou que se tinha dado de “viju” quando nós engatinhávamos ainda na tomada das chaves da nossa Angola?


- Terão sido os Tugas que nas pelejas com os  Franceses, Belgas, Alemães e Ingleses aceitaram um número que lhes era desproporcional?


Pronto. O angolano é “viju” e, doravante, será assim. Se o meu país cresce, e ainda bem que cresceu em terreno e população (essa duplicou a projecção mais pessimista que havia dos 12 milhões), sempre que endireitar o muro do quintal dou uns “kacentímetros” ao lado do vizinho “kimbonzado”, como fez o vizinho Kafuxi com o terreno do vizinho Gaspar que está quase a lhe “gargantar”.


Como o censo será de dez em dez anos ou distâncias ainda maiores, as contas serão feitas pelos nossos filhos».


Sanuka terminou a redacção e leu-a em voz alta para colocar as pausas correctas. Lá fora Gaspar e Kafuxi que foram pedir copia da página sete do relatório preliminar, ouviram a composição e não perderam terreno, brindando-a com uma estrondosa salva de palmas.



ANGOLA, 20. 10.2014

Obs: texto publicado pelo Semanário Angolense

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