segunda-feira, 1 de junho de 2015

A ÁRVORE DAS BANDEIRAS


Debaixo dum sol abrasador, 12 horas dum verão equatorial, Mariano e André digladiavam-se com duros palavrões inauditos na aldeia de Kasanji. O terreiro, local para os encontros da aldeia, estava cheio de homens adultos, mulheres que reclamavam “mais pudor” por parte dos contendores e crianças, algumas tapando os ouvidos para que aquelas palavras carregadas de lixo verbal não atingissem seus cérebros, afectando negativamente a ainda compacta educação que haviam recebido.
- A árvore é minha. Eu é que subo.
- Não pode ser. Cheguei primeiro. Eu é que a ocupei primeiro.
André e Mariano eram enviados políticos saídos da pequena cidade, sede do município, para missões de "caça ao voto" na região que abrangia 20 outras aldeias, até então ainda virgens do ponto de vista politico-doutrinário. Nem os da situação nem os da oposição tinham explorado aquele território que vivia a sua paz com a naturalidade e a pureza dos tempos em que não se apelava ao viva nem ao abaixo. Em Kasanji, apenas o soba fazia a sua política da administração comunitária e sempre servindo-se da democracia participativa.


- Meus senhores, ponto de ordem. - Interrompeu ngana Muryangu, o soba, recém-chegado de uma diligência fora da aldeia. - O que é que se passa aqui, nas minhas barbas, sem o meu conhecimento. Será que já me golpearam e o povo me escondeu o sucedido?

- Nada, ngana soba. São esses manos que vieram do município que estão quase a se “porradar”. - Explicou a secretária da aldeia que acompanhara o "faço não faz e meto não mete" entre Mariano e André.

- Ei, meus senhores, por favor. Parem ainda de se "pocalizar" e venham cá. Entrem e vamos saber o quê que se passa. A minha aldeia é de paz e aqui tudo se resolve debaixo da árvore, à sombra, e não aos gritos sob o sol ardente. - Convidou ngana Muryangu.

Mariano e André marcaram, em simultâneo, três passos à frente, disputando a estreita porta da "zemba" do soba.

- Eu é que entro primeiro. - Atirou Mariano que era do Partido.

- Isso não pode ser, senhor Mariano. Eu chego sempre primeiro e o senhor quer tomar a dianteira? - Ripostou André que procurava, a custo, introduzir o seu pesado corpo na "libata" do régulo. Este, por sua vez, endireitava os assentos para os contendores encalhados ainda na portinhola.

- Por favor, podem entrar. - Chamou Kaxinda, a secretária, que tinha já a "wala de muxiri" e dois copos na bandeja.

André fez força e entrou, a contra gosto do seu oponente que tentou ainda aplicar-lhe uma “bassula” mas sem sucesso, pois os aldeões estavam de olhos neles.

- Pois é, manos, bom dia e bom assento. - Saudou o régulo.

- Obrigado paizinho. - Responderam em coro, numa harmonia que contrastava com os minutos derradeiros.

- Manos, bebam ainda um pouco de garapa antes de se explicarem. Aqui faz muito sol e a pessoa com sede até palavra não sai bem da boca. - Kaxinda serviu a bebida, uma espécie de sumo, feito a base de farinha de milho e adocicado com a seiva de uma raiz, o dito "muxiri".

Enquanto os homens aliviavam as gargantas ressequidas, ngana Muryangu manipulava as cinco "pedrinhas da sabedoria", amuletos herdados dos seus ancestrais a quem sempre evocava antes da resolução de qualquer querela na comunidade.

- Pronto, filhos. Bom assento, outra vez. - Voltou a saudar o soba, ao que Mariano e André, agora mais pacificados, quase irmanados, responderam com curta rajada de palmas.

- Filhos, vamos então saber o que se meteu no meio dos irmãos. Kaxinda, escreve no livro o que eles disserem para depois transmitir ao povo. - Ordenou a autoridade tradicional da aldeia.

A secretária, diligente como sempre, dirigiu-se à escrevaninha e começou a acta sem mais questionamentos. Era já “pão de cada dia” para ela, embora tivesse apenas a quarta classe do tempo de Agostinho Neto.

- Nosso pai, peço desculpas pelo atrevimento. Sou do partido e vim aqui para falar ao povo sobre os esforços da nossa formação que quer saber o que falta ao povo e tentar procurar resolver os problemas. Mas quando queria colocar as nossas três bandeiras na árvore, o André disse que não podia ser porque ele chegou primeiro e também tinha três bandeiras da formação dele. - Explicou Mariano.

O soba apenas abanou a cabeça, dirigindo o olhar para Kaxinda que, seguindo a velocidade do discurso de Mariano, alimentava manualmente a acta.

- Aqui, o filho, pode também se explicar. - Ngana Muryangu passou a palavra a André que rangia os dentes de tanta vontade de falar.

- Sim pai. Obrigado pela palavra. Conforme o pai ouviu, aqui o caso é só mesmo desentendimento mas acho que está já a passar, não é isso irmão angolano? Eu cheguei às dez horas. Vim aqui mesmo e não encontrei o pai. “Me” disseram que saiu um “kabocado”. Então, falei com a mana Kaxinda que estava prestes a abordar o povo se concordava ou não que eu deixasse nesta árvore, ao lado da escola, umas bandeiras da nossa formação. O irmão aqui chegou às 11 horas e quando me viu a me preparar para colocar as bandeiras disse que não pode ser porque ele já tinha ocupado a árvore. Foi assim que os nervos se descontrolaram e começamos a "se" desrespeitar. - Explicou-se André representante do Desunido.

O soba voltou a menear a cabeça e, novamente, enviou o olhar à secretária que "actava" os pronunciamentos.

- Ok, filhos. Já ouvimos e registamos. Agora que estamos mais tranquilos, o que vocês fizeram em frente dos jovens e das crianças, acham mesmo que está bem? - Atirou o régulo, procurando uma autocritica dos até então desavindos que, se ficou a saber mais tarde, até eram parentes próximos.

Mariano e André que eram conhecedores dos costumes da região colocaram-se em pé, marcharam em direcção ao soba, ajoelharam-se e se abraçaram de seguida.

Ngana Muryangu reconheceu o arrependimento dos dois e prosseguiu a inquirição.

- Mostrem ainda as bandeiras. Se forem aquelas que juntam o povo podemos coloca-las todas na mesma árvore.

André apressou-se na entrega. Mariano fê-lo também. Ngana Muryangu passou-as à secretária para as conferir.

- São partidárias, papá. - Disse Kaxinda. - Cada lado tem uma do partido, uma da juventude e outra das mamãs. – Concluiu a secretária.

- Meus filhos, Mariano e André, já viram o mastro da escola? Parece que a bandeira que estava lá já não está. Rasgou-se há já muito tempo com o vento e nunca foi substituída. Vocês podem voltar à vila pegar cada três unidades daquela bandeira que une o bairro e aumenta o patriotismo das crianças? Quem chegar primeiro com a bandeira da Republica e a colocar no mastro da escola pode ficar com parte da árvore. - Ditou o soba pedagógico.

Mariano e André arrumaram as suas “imbambas” e regressaram à procedência. Ainda não anunciaram à Kaxinda, a quem deixaram os seus contactos telefónicos, quando voltam a Kasanji com a bandeira da República solicitada pelo soba.


Obs: Publicado pelo Semanário Angolense 11.04.2015

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