terça-feira, 11 de agosto de 2015

FIQUEI-ME 'MBORA PELO LONGA


10933887_792183044169768_3321415893763854913_n
Uma vez em passeio ao Cuando Cubango (enquanto não surge o novo registo, grafo como está oficializado), tomei o desafio de ir ao Cuito Cuanavale, local onde o meu primo, Sabalo Kambota Canhanga, ajudou, entre 1986-7 a travar os invasores sul-africanos. A estrada está convidativa para quem gosta de fazer a combinação: acelerador, travão e muita precaução.

- Minha senhora, pode dizer-me quantos quilómetros tenho de percorrer até chegar ao Cuito Cuanavale? – Indaguei à agende policial que se encontrava no rotunda do aeroporto de Menongue.

Ferrada em altura mas beneficiada em edução, Ana respondeu-me sorridente. Aliás, começou por questionar se eu “era visitante”.

- São mais de duzentos quilómetros, mas vai passar antes pelo Longa, onde há fazenda de arroz.- Explicou Ana (não retive o sobrenome).

Vai com prudência, por causa dos animais, e se vai fazer turismo, divirta-se à vontade que o país já está seguro. – Recomendou-me a agente reguladora de trânsito. Ela preparando-se para interpelar uma viatura e eu inspecionando a pressão dos pneumáticos.

Marcha adentro, cheguei à comuna do Longa que fica à meia distância entre Menongue e Cuito Cuanavale. É uma pequena vila cortada pela estrada nacional 280.

- Aqui travaram-se encarniçados combates pela defesa da pátria ameaçada. Aqui tombaram camaradas de várias procedências do nosso país. – Contou João Mbambi, professor primário da circunscrição. Mas longa não é apenas baluarte da luta para a preservação da independência do país. Contam-se também, na sub-zona da Terceira Região Político-Militar do Glorioso, que engloba a comuna do Longa, estórias sobre resistência contra a colonização, estórias sobre a resistência heroica contra os invasores sul-africanos quando os homens de Roelof Pik e Pieter Botha pretendiam fazer em Angola um "passeio turístico-militar” em socorro de amigos angolanos que a história se encarregou de catalogar. Hoje a luta que se trava no Longa e zona contígua é reerguer o que se destruiu durantes as várias guerras (contra ocupação colonial, contra a invasão sul-africana, contra a insurreição interna) e construir coisas novas: novas escolas, novas habitações, novos centros e postos médicos. É produzir arroz, milho, leguminosas e tubérculos e aumentar o nível académico-cultural dos seus habitantes.

Longa, com os seus perto de cinco mil almas é uma comuna que perdoa o passado lúgubre mas que jamais se esquecerá do passado para que não se repitam as atrocidades que apagaram vidas e transformaram em escombros casas, lojas, hospitais e outros haveres.

A carcaça de um helicóptero militar danificado na cabeceira da sua pequena pista de terra batida e alguns edifícios coloniais convertidos em pedaços pela aviação e artilharia "inimiga" são registos históricos que devem passar para as próximas gerações, como forma de testemunho material.
Os meninos do Longa contam hoje a história sobre a sua região, lida nos poucos livros existentes, e jogam à bola num pedaço lateral do "campo de aviação". A língua que mais se fala é Ngangela, sendo a portuguesa a segunda língua, obrigatória apenas na escola que foi, felizmente, poupada e reconstruida.

"Outra maior, de 12 salas, construída de raiz, aguarda(va) pela inauguração, devendo elevar o nível de ensino e o número de alunos escolarizados", contou João Mbambi, professor que ganhou um "Relógio do velho Trinta" (romance do autor dessa prosa).


Os petizes, uns vestindo calções e camisolas amarelos e outros de tronco à mostra, imitavam, emotivos e sonhadores, os craques do Girabola. 
- Quero ser como Job ou Ary Papel. - Disse um deles, quando convidados para a foto-testemunho.

- O nosso campo é no lado de lá da estrada, onde os colonos jogavam. Contou Moisés, ganhando no fim um outro “Relógio do velho Trinta”.


O árbitro vestia uma jeans, uma tshirt e calçava chuteiras, ao passos que os pequenos "artistas da bola" poucos mostraram ter o privilégio de jogar com os pés calçados. Alegres, sem temor, nem represálias. Hora pós-escolar, 5h30 da tarde, girava alegremente a bola no Longa, enquanto me aprumava para a viagem de regresso a Menongue. Cerca de 90 km por cronometrar.
Moisés Sacinene, 14 anos, frequenta a sétima classe. Foi meu companheiro de conversas, e fotógrafo de ocasião. Não se fez ao campo por considerar aquele "um jogo de crianças". O seu campeonato é outro. Naquele pedaço de terreno plano roubado ao aeródromo militar, ou assiste apenas os putos a se “trumunarem” ou é convidado a ajuizar os jogos dos kandenges.


Quem vai de Menongue ao Cuito Cuanavale, tem, no lado direito do Longa: a pista, parte da aldeia e o quartel. Do outro lado da Estrada Nacional 280 ficam os edifícios administrativos e equipamentos sociais como o mercado, as escolas, o posto médico. Por mais incrível que pareça, Longa possui um campo relvado a reclamar por novas balizas. 
- Esse campo foi sempre assim desde que nasci". - Contou o professor Mbambi, quarenta anos, mais ou menos.

- O campo é mesmo do governo. É ele que manda cortar a relva quando fica muito alta. Elucidou.
No Longa, podem ainda ser vistos, no lado norte, a antiga quadra de jogos de salão e sobras da guerra como tanques blindados e "mwana kaxitos" (lança rokets) já recortados em pedaços e aguardando pelo transporte à siderurgia onde os "laças e canhões que serviram a guerra serão transformados em enxadas e arado" para lutar contra a fome e pobreza.
Mas abaixo, junto ao rio que dá o nome à comuna e à fazenda que é exemplo nacional em termos de produção de arroz, surge um vasto prado que se espalha em milhares de quilómetros quadrados de área, ladeando longitudinalmente as margens do Longa, cujas águas não só me convidaram para matar a sede mas também para lavar a Maria Canhanga que me transporta nessa odisseia.
- Tio, não toma banho ali. Visita tem de ser acompanhado. - Alertou-me um dos rapazes que desafiavam a lei de Pascal sobre a submersão, ao que obedeci. 
Na verdade, embora o Longa me tivesse convidado, a intenção era apenas de lavar o rosto e saciar do caudal corrente e límpido a sede que caminhava comigo desde Menongue.

10168212_792180820836657_2920668382466100198_n

Enfim, conheci a comuna do Longa, fruto da paz que o povo tanto pedia. E não fui cumprir a "vida Kwemba" como o meu finado primo Sabalo, nem em serviço forçado numa cadeia pidesca do caputo ou “disesca” da ressaca revolucionária. Estive apenas a desfrutar Angola e os benefícios da força da razão que sempre lutou mais forte do que a razão da força que fez de todos nós meros objectos.

Que saibamos todos dizer "tri-ti-ti nunca mais" porque agora que a paz já chegou "fui embora no Longa". E a visita ao Cuito Cuanavale, perto de 100 km a leste de Longa, fica na agenda a cumprir nas próximas férias.

 



 



 NB. publicada pelo Semanário Angolense a 23 de Maio de 2015

 



 


Sem comentários:

Enviar um comentário