sábado, 1 de agosto de 2015

O PLANO SAMANJATA DE AUSTERIDADE




No dia em que a televisão emitiu o discurso de fim de ano à Nação, Samanjata, a mulher Katembo e os cinco filhos e sobrinhos estavam à volta da mesa, em festa natalina que teve começo antecipado no dia 21. Era aniversário da kasula Esanju e Katembo tinha decidido fazer um banquete continuado de quinze dias, até à data dos heróis de Kasanji, seu dia de anos.


Com Samanjata a viver bons tempos no emprego que conseguiu no Porto Seguro, a comida em casa tornou-se "lixo". Isso mesmo. Comida era lixo, ou seja, o lixo de casa era maioritariamente constituído por sobras e não restos de “piteu”. Parentes de longe, vizinhos, amigos de infância e até amigos de amigos faziam da casa de Samanjata e Katembo o lugar ideal para “txankar” de borla e sem reclamações dos anfitriões. Em termos de bebidas, a diferença entre uma loja e a adega de Samanjata era curta. Durante as refeições, a “pomada” corria como água caudalosa dum rio planáltico.


Mal o Presidente anunciou os dias difíceis que se estavam a aproximar, devido a queda do ouro negro, Samanjata, que era esbanjador moderado e filósofo de esquina, começou a formular a sua teoria de "aproveitamento racional dos adquiridos".


Ali mesmo, na cabeceira da mesa de oito cadeiras, sem deixar que o discurso emitido pela televisão, as treze horas, terminasse, fez o seu anúncio:


Família boa, depois do discurso e depois do “panqueu”, ninguém deve sair de casa, desta sala e dessa mesa. Tenho ideias inovadoras e temos contas por acertar. Ouviram bem o que nos disse o Mais Velho?


Enquanto a mulher, os filhos e sobrinhos murmuravam a resposta, Samanjata foi ao carro pegar o disco que continha a música de Nelson Pâncio, já aos soluços de tanto uso, que recitava: "é preciso economizar". Não era nova, nem tocava pela primeira vez. Samanjata sempre a usou para apelar, sem outras palavras, à contenção mas, num tempo em que impera a batucada sem poesia, ninguém a tinha ouvido com atenção.


- Mas ó mister Jata - assim era tratado carinhosamente pela mulher e filhos - mas essa música em tempo de festa é pra quê? - Atirou Katembo.


- É para fazermos da crise que se instala aos bocados uma oportunidade de crescimento.


- Mas oportunidade de quê mais que andas a procura se já estás no Porto Seguro?


- Ouviste bem o discurso do Chefe da Nação? Haverá fome, guerra por “piteu”, sarnas e muito mais. – Explicou, disfémico, Samanjata.


- Tudo isso, mister Jata? - Ouviram-se pela primeira vez os filhos e sobrinhos num coro alinhado com Katembo.


- Sim tudo isso e muito mais coisas. Eu que sou do "tempo da revolução" sei disso. Já fiz a minha revolução de barriga vazia até chegarem os vossos tempos de comida no lixo. Toca a pensar. - Ordenou.


A vida militar tinha-lhe incutido a mania de ordenar e, às vezes confundia o convívio familiar com a vida no trabalho onde era chefe de esquadra mas naquele dia Samanjata era um democrata de mão cheia, como reconheceu a família no fim da reunião.


- Cada um vai ter de ensaiar sacrifícios. Cortes nos consumos e benefícios que devem redundar em poupanças.


Quando nós mesmos estivermos alinhados ao plano estratégico de contenção que vos vou apresentar à hora do jantar, vamos poder passar as nossas experiências a outras famílias que eventualmente estejam em condições de maior aperto.


O tom altivo e convincente de Samanjata levou a família a concordar com o discurso, sem entrar em questionamentos prévios, até desenrolar o que tinha na cartola.


Passaram a tarde a olhar para as panelas carregadas e as geleiras transbordantes, até que a noite, Samanjata e o seu plano chegaram.


Na hora da janta, como sempre, a família ocupou os lugares na mesa que eram cativos, salvo se houvesse visita. Samanjata tinha escrito e distribuído em folhas impressas o seu plano a cada um dos membros da família. Preferiu também juntar a fala ao texto e começou:


Com esse agravar da vida que se complica, dia após dia, com os discursos políticos e económicos todos direccionados à contenção de gastos e poupança;


Com a crise financeira que estamos com ela instalada nos nosso bolsos e fogões, poupando os burgueses, mas depauperando a “pequena-burguesia” que nos dias de hoje não passa de uma classe média-baixa, proponho-vos medidas de austeridade que, espero, sejam ensaiadas com sucesso e ajudem a atravessar o longo deserto que se vislumbra adiante e que pode conflituar com os hábitos de consumo instalados em nosso e muitos outros lares.


- Pensei no regresso da "kandimba" para medir o arroz e no copo de "reco-reco" para o açúcar; na recolha da palha da serração (restos de madeira) para compensar o carvão e o gás; recorrer às escolas e universidades públicas em vez dos colégios e o recurso aos autocarros em substituição do transporte escolar e carro próprio para a Katembo.


Fez pausa para conferir a forma como o discurso estava a ser acolhido e “sorveu” alguns “muxoxos”, mas continuou determinado.


- Fiz uma lista de onde cortar ou poupar, que está em vossas mãos, e espero que a confiram com atenção e apresentem as objeções e sugestões de melhoria.


E a lista, já em leitura, rezava:


1- Corte no gás: a razão é que nos tempos da “pequena-burguesia” instalada na pós-ditadura do proletariado, a água ferve cerca de três horas, mesmo se sabendo que ela entra em ebulição aos 100 graus centígrados. A canalizada tarda em chegar e mesmo que a tivéssemos, conta-se, que não se recomenda a um estômago já urbanizado.


2- Corte na comida: cheguei à conclusão que em nossa casa mais comida vai ao lixo do que ao estômago (em muitas outras casas também). Basta ver quão repletas andam as lixeiras e quão gordinhos andam os “ngulus” desgovernados que pululam pelas ruas. Neste natal, por exemplo, até o cão de casa nega-se a comer carne e apenas as galinhas têm os dias contados por causa das cabidelas diárias. Medir o arroz, o açúcar, o chá, o leite, e etc. seria um caminho para a poupança e podermos enfrentar com galhardia os dias sombrios.


3- Corte nos combustíveis: aqui a coisa é um pouco complicada, pois os autocarros de transporte público urbano e peri-urbano há muito se demitiram da sua função. A empresa distribuidora de energia, mesmo refundada, ainda não deu o ar de sua graça e a luz continua no pisca-pisca, forçando o gerador a gemer todas as noites. Mas sempre se encontram oportunidades de melhorias como desligar o gerador à meia-noite e a Katembo deixar de usar o carro aos fins-de-semana ou ouvir música no carro parado mas com o motor e AC ligados.


4- Corte nos gastos com educação: toda a minha trajectória foi feita no Ensino Público e quando mudei para o privado foi já em “segunda agregação”, em tempo de vacas nutridas. Todos que iniciarem um novo nível devem ingressar numa escola ou universidade pública, beneficiando, enquanto ainda der, de uma preparação propedêutica.


5- Corte nas “kapurenquanto”: essa rubrica foi-me imposta pela Katembo mas não precisava de fazer parte da lista por ser uma rubrica há muito extinta.


Apresentada a lista ao conselho de família, os filhos reclamaram que estavam a ser despromovidos.


- O papá é um antiquado e está a igualar-nos aos demais meninos da aldeia. – Reclamou Kulungunga, filho do meio, fazendo-se de porta-voz dos demais. Era o que mais tinha a aceitação do pai por estar já na universidade.


- A casa sem energia à meia-noite é escura e propensa a intrusões. Passar fins-de-semana sem carro é doloroso e vai complicar a feitura de compras. E mais: as vizinhas vão acabar por confundir poupança com desgraça. Os filhos sem colégio deixam de ter amigos recomendáveis e se tornam rafeiros. - Argumentou por sua vez katembo.


Sem o plano traduzido em factos, Samanjata optou em procurar por uma escola de reciclagem de “pequeno-burgueses” caídos em desgraça em “novos proletários, o que os filhos e a mulher não só concordaram mas sugeriram que eles mesmo, com ajuda de amigos que conheceram na internet, fundariam a “Escola de Aprendizagem de Novos Hábitos de Consumo em Tempo de Crise” e criariam um Centro de Recolha de Sobras Alimentares que distribuiriam gratuitamente a famílias com necessidades alimentares.
Obs: texto publicado pelo Semanário Angolense a 24.01.2015



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