sexta-feira, 20 de novembro de 2015

UM CASAMENTO INOVADOR NA KAMUNDA

Conheceram-se no tempo da guerra fria, na República da Kamunda, quando Kapesi se dirigia ao serviço e Boana para a escola. Ao primeiro olhar, parecia visgo, os vulcões até então adormecidos derreteram montanhas, soltaram lavas e perfumes, aproximaram-se e como pessoas que se faziam ideia beijaram-se perdidamente.

- Não precisas de dizer-me agora para aonde vais. Levo-te a qualquer sítio, pois minh'alma diz que és tu o meu destino. - Atirou Kapesi, possuído de romantismo.

As palavras caiam-lhe como chuva de Abril e ela com o ouvido apurado, um planeta de receptividade e atractividade. E foram, caminho fora, falando cada um de si e do tilintar dos seus corações.

- Jovem, preciso de saber se cruzaste a minha vida para um propósito ou apenas para teres mais uma vítima? - Questionou Boana, certa vez, já amarrada às algemas românticas.

Como já disse, decorria a guerra fria daquele tempo que não era um conflito declarado entre as duas principais tribos da República da Kamunda, os vakwombwelo e os vakwonano, que até viviam em paz quase perpétua, interrompida apenas, de forma esparsa, em momentos de cruzamento matrimonial entre os vakwanano, povos do norte da Republica da Kamunda e os vakwombwelo, mais ao centro da Kamunda.

Em questões casamenteiras, os primeiros preferiam o cumprimento de suas tradições em detrimento dos procedimentos moderno-ocidentais ou, na melhor das hipóteses, combinavam a tradição bantu e as inovações alheias trazidas casa adentro pela luz da televisão. Os vakwambwelo habitavam um território plano e alto, irrigado pela natureza, onde abundava gado, cereais e batata do reino de sua Majestade D. Afonso Henriques. Eram também muito apegados à sua cultura e tradições, algo distinta no rigor da aplicação, dos seus vizinhos vakwonano. Os vakwombwelo eram povos muito viajados pelo antigo Reino da Kamunda, queridos por todos os empregadores, devido à sua entrega, elevado grau de comprometimento e alguma mansidão derivado do apego à sacra-palavra. Eram também muito escolarizados pelas missões evangélicas, fazendo-os intermédios entre o conservadorismo e o assimilacionismo a que a sua estrutura organizacional estava exposta. O conservadorismo de ambas tribos que faziam história na República fez com que o namoro de Kapesi e Boana fosse visto com algumas reticências de ambos os lados.

- Mas esse moço que até o irmão kasule já lhe coou com dois filhos, achas mesmo que será bom genro? - Perguntou certa vez o avô Menso Mankala, para acrescentar: Boana, continuadora da minha tribo, alguma vez já ouviste o acusarem de paternidade em algum lugar? Alguma vez já ouviste um zum-zum sobre amigamento dele ou coisa parecida? Desconfia, neta. Homem com estudo, casa própria e boa família, como me contas, não sobra como o jovem de que me falas. - Desconfiou prevencionista Menso Mankala a quem estava confiada a educação de Boana.

- Pai, menos dia menos noite, vou partir. A minha doença é irreversível. Cuida da sua neta até "lhe" entregar "no" marido, assim como cuidará das minhas irmãs. - As palavras de Franque ecoam ainda frescas e de forma insistente nos ouvidos de Menso Mankala, sempre que o assunto é namoro e constituição de lar por parte da neta.

- O que meu filho me pediu tem de se cumprir, custe o que custar. - Dizia para si mesmo, custando-lhe já o epiteto de "O Dificultador".

Do outro lado, as desconfianças e incertezas também faziam morada. Os vakwombwelo encaravam a questão "trabalho e sorriso" por parte de uma nora como primordiais.

- Mulher tem de rir. Tem de conversar. Nora que te mostra dentes é mais do que uma tristonha que te ofereça um banquete. - Costumava desabafar Kasova, a tia mais velha de Kapesi. E, era exactamente, esse sorriso escondido de Boana, embora não ausente, que fazia os da tribo vakwombwelo se posicionarem no NIM no dia em que o jovem reuniu a família para anunciar:

- Pais, mães, manos e manas, já passei a linha dos trinta. Já tive algumas experiências e tentativas de vos apresentar uma nora e cunhada. Acho que com a formação que consegui, casa própria no Kipedro e emprego que já  tenho, é chegada a hora de atar o nó.

Ao inaudito discurso de Kapesi seguiram-se assobios, mais dos sobrinhos e cunhados do que da velha guarda que esperava ver para comemorar.

Os "acorrentados e cercados pelas lavas do vulcão amoroso" tinham combinado abrir o jogo às famílias no mesmo dia.

Boana fez o mesmo com os avós. Menso Mankala não conteve a indignação e teve mesmo um pequeno deslize que só não desembocou em incidente diplomático-familiar porque o amor que juntava Kapesi e Boana não era amarrado com corda. Era mesmo com laço de aço.

Kasova, a tia de Kapesi, e os seus também se interrogaram vezes tantas sobre aquela escolha, exactamente na tribo que se dizia "mandavam a noiva calçar salto alto e juntavam quatro filas de grades até ao tecto da casa".

- É só mesmo já nessa tribo que pedem gerador e terreno com pedreiro chinês que encontraste mulher para casar? Por que não vais ainda lá na embala do avô Kacyopololo ver se sobrou lá uma kafeko da nossa tribo ou de tribo com costumes aparentados? - Questionou Kasova a matriarca da família Kapesi.

No dia A, ou seja, no dia da apresentação, desfilaram adágios de parte a parte.

- A nossa filha está preparada para ser boa esposa e tem de sair daqui só quando eu quiser e com pedido bantu, casamento na igreja e conservatória. - Atirou um dos tios de Boana.

- O Kapessi é um homem preparado e sabemos que cumprirá as suas obrigações para honrar a sua cultura, seus sogros e sua família. - Ripostou JoSa, cunhado mais velho que na ocasião representava o sogro.

O bairro Kipedro, onde viviam Boana e Kapesi, era uma espécie de bairro franco. Lá estavam uns poucos conservadores que se tinham rendido à vida na verticalidade e uns tantos jovens que tinham abdicado da vida quintaleira das aldeias tradicionais da Kamunda. Naquele dia da confirmação do namoro de Boana e Kapesi, Kipedro estava agitada, só faltou o quintal para juntar as famílias vakwonano e vakwombwelo que desfilavam, através de representantes legais dos dois lados, bíblias de adágios e citações.

- Vamos fazer o pedido com os requintes que quiserem mas o casamento só quando o sol mostrar os primeiros raios. - Atirou um dos primos de Kapesi que ignorava o tratamento diplomático em conversas matriciais.

- Raiar do sol? Se vosso filho tentar vai dar multa que vocês não imaginam. - Defendeu-se Menso Mancala.

Com sabedoria, a diplomacia se sobrepôs aos argumentos apenas orgulhosos e despidos de razão. A tarde terminou em festa que adivinhava outra maior no dia P, ou seja, dia do pedido.

Com uma lista recheada aos olhos dos vakwambwelo mas simplificada no dizer dos vakwanano, as partes marcaram a data para o encontro do pedido de noivado que juntaria outros rostos e outro desfilar de rosários.

- Confiamos nas vossas palavras e esperamos que a nossa tradição seja cumprida geometricamente. - Recomendou Menso Mancala à família de Kapesi, ao que JoSa respondeu apenas com um aceno de cabeça, carregando a lista que lhe pesava como pedra.

Chegados à casa, os vakwombwelo, entre a aceitação e a reclamação, começaram por esboçar o plano de resposta.

- Vamos cumprir, mas também queremos ver o sol a raiar antes de nos metermos à estrada. - Aconselhou Phande, outro dos cunhados de Kapesi, ao mesmo tempo que distribuía incumbências para aliviar o peso pecuniário que recaía sobre seu cunhado de eleição. "Eu responsabilizo-me por isso e o fulano por aquilo", continuou Phande, perante a aceitação da família centrista.

O tempo foi juiz e advogado. A lista de incumbências para o pedido tradicional estava fechada. Os fatos, as grades, os vinhos, bijuterias e outros adereços desconhecidos dos infantes desse tempo aguardavam apenas pelo dia P que coincidiria com o casamento civil. À data, o sol já raiava, mas escondido ainda. Era apenas um laranja solar no fundo do ventre. O debate, à distância, via recados levados e trazidos pelos noivos, passou a ser “casar-se-ia antes no civil e depois no tradicional” ou o inverso?

Pela primeira vez, os vakwombwelo ganharam o desafio que os levaria a esquivar possíveis multas pelo alvitre de "ter entrado pela janela".

- Quando chagarmos ao pedido, ela já será tua esposa e nenhum outro pedido de multa terá força ao pé da lei ordinária. Será essa a nossa posição e é consabido que, podíamos até ir de mãos a abanar, sempre nos receberiam e te consagrariam como genro. - O discurso de Phande teve a concordância de JoSa e demais familiares de Kapesi que se manteve obediente às instruções e pouco interventivo.

No dia P, Kapesi que vivia em Kipedro, nova cidade da capital da Kamunda, pegou na sua teó (trotinete rudimentar) e foi ao encontro dos padrinhos que se encontravam na conservatória do registo civil, onde aguardaria pela sua dama. Recebeu aplausos pela inovação e, por fim, Boana como sua prometida Eva. Fizeram juras e trocaram o primeiro beijo público e oficial.

- Juro ter-te na saúde, na doença e na dibinza por todos os dias da minha vida. - Prometeram.

Seguiu-se o preceito tradicional vakwonanwense já sem o peso simbólico doutros eventos. Aqui o ocidente se tinha antecipado, embora tudo quanto tivessem solicitado em carta estivesse literalmente satisfeito. Ao pedido tradicional, Kapesi foi ao lado da mulher, seguindo-se, num mar de alegria contagiante, a cerimónia religiosa de onde Kapesi sairia ao volante do Ferrari decorado ao engodo de Boana.

E cantava-se "kyese vo kakyese ko (alegria ou não)?

- Kyese! - Respondia-se com euforia. E fez-se nova festa!

As mesas estavam caprichosamente marcadas com nomes de aldeias e embalas vakwanano e Vakwombwelo para a alegria dos mais conservadores e petizes que aproveitaram saciar suas sedes com bebidas diversas e geografia de origem.

Fronteira, Kimbele, Damba, Negaji, Zenze, Sasa, Sanza, Kibokolu, Makela, entre outros topónimos nomeavam as mesas que acolheram a familia de Boana. Do outro lado, idosos e infantes viajaram no tempo e na geografia para relerem Kambweyo, Yeyele, Njimba Silili, Ndulu, Katrayo, Kantifla, Cingwali e outros.
E voltou a cantar-se, lado a lado, ensanju e kyese!
...

NSUSU ZAONSO MUBOTE

Na semana que se seguiu ao matrimonio os tios da nubente foram visita-la, a pedido do marido que tinha beneficiado os seus com um repasto-teste executado por Boana ainda com o casamento fresco. Tinham passado apenas 48 horas da cerimonia religiosa e copo d'água. A tradição dos vakwombwelo dita que a casada tem de fazer a sua primeira refeição para os sogros, sob supervisão atenta de uma ou duas tias do marido. Assim foi e no final a nota atribuída pelas tias-júri foi positiva ao que em vez de ser multada acabou prendada.

Kapesi fez o mesmo. Não foi à cozinha mas mandou a mulher à loja e ao mercados dos Zimbos comprar tudo quanto fosse típico e do agrado costumeiro dos sogra. Ele mesmo fez questão de apetrechar a garrafeira com as mais elogiadas adegas e destilados escoceses, não se esquecendo do malavu encomendado a um vini-extractor do Sasa. Em fogo brando, o grelhador abraçava caçadas que apimentavam conversas intercaladas entre o bom Português, apendido na escola e destilado apenas em convívios muito formais, o calão e a língua dominante entre os vakwonano de regiões rurais.
- Esse moço, estávamos só a "lhe" desconfiar pelo casamento tardio, mas parece que é boa pessoa. - Atirou Kindala, tio de Boana que representava Menso Mankala.

Choveram garfadas e estalaram copos. Jorrou uva até noite adentro, quando, a olhar para o volume abdominal de Boana, o tio confidenciou à sobrinha:
- O sobrinho é mesmo bom?
Boana viajou ao passado e lembrou-se de uma expressão ukongo que traduzia e simplificava seus sentimentos e sua análise sobre o marido que escolheu.

- Nsusu zaonso mubote (toda a galinha é boa)! - Respondeu, ganhando do tio a tradução semântica da expressão ora anunciada.
- É verdade, sobrinha. Galinha pode ser careca, sem penas, você "lhe" põe na mwamba, fica sempre bonita na boca da pessoa. Assim também  são as pessoas. Só que se beneficia ou se prejudica com essa pessoa "lhe" faz o justo juízo. Tem mbora razão sobrinha, me desculpa só. Meu neto já está a caminho, almoço com bebidas já nos deu, falta mais o quê? Não liga gente na cidade com mentalidade da selva. - Concluiu o tio já meio canecado.
- Boana deu-lhe o beijo do costume, sinal de que o tio estava já na penúltima ronda da garrafinha alcoólica, ao que reconheceu e acedeu, apelando aos convivas para o discurso de agradecimento e recomendações aos nubentes.
- Já vimos o sol raiar no crepúsculo de Boana. É sinal de que as terras são férteis e dentro em breve teremos herdeiros. Para nós, casamento é isso mesmo. Não se esqueçam de nomear os parentes. Se o fizerem lado a lado fica maia melhor. Na vida a dois não há só sorrisos. Há também tristezas. Há dias que alguém dorme cedo e finge ver bonecos com as crianças só para não se dar encontro com o outro, mas tudo termina no quarto, no leito.
Kindala discursava pedagogicamente e não procurava palavras. Parecia uma lição decorada há anos. E prosseguiu, virando-se ao sobrinho-genro:
- Sobrinho Kapesi, a mulher sempre comeu do não. Fica atento. Às vezes é a mão que lhe dói mas mostra a perna. Saiba ler na escuridão e nunca esqueças a cor da minha porta. Quero muitos netos e um chará. Isso passará por muito tempo de coabitação e equilíbrio. Cada um, à partir de hoje, começam já a conhecer o outro e buscar o meio termo. Tempo de namoro é de mentira. Até diabo vira anjo.
Kindala fez pausa no discurso que já levava tempo apesar de actual, cativante e seguido com muita atenção. Boana e Kapesi seguiam aprovando com a balançar das cabeças.
- Dizia, já para concluir, devem se conhecer de verdade. Vão entrar agora no teate de verdade sobre o marido ou a mulher que cada um escolheu. Também passamos por esses bocados e resistimos. Só uma chamada de atenção à sobrinha Boana: marido não se bate na cara. Bate-se na cama.
Dito isso, e sem deixar margem para comentários à sua expressão final, Kindala marcou o primeiro passo em direcção ao corredor. A garrafa de vinho de 14 anos para combater a pelengwenha do dia seguinte, encontrar-lhe-ia no carro.
Cá em cima, ainda no vigésimo sexto andar de un dos edifícios mais altos da nova cidade de Kipedro, os primos e cunhados fechavam conversas com o habitual e já  quase tradicional "copo da porta".
- A casa está sempre aberta. Venham ver-me e chamem-me para as vossas picadas. Na minha terra é assim: quem casa transita para o convívio e cuidados da outra família. A boana já está entregue, não é isso mor? - Concluiu Kapesi,  abraçando os cunhados Nzuzi, Nasimba e a esposa Boana que não podia estar mais contente do que estava.
Os convivas, de forma espontânea, mas coordenada entornaram goela adentro o "líquido da porta" e comemoraram:
- É isso mesmo nosso 'nhado. Amanhã vamos te arrastar à praça do Sasa para tomar malavu com carne de paca.
E desceram também carregando a encomenda do tio Kindala que se deliciava no carro com a mais nova batida de Socorro, filho querido ukwanano.

Nota> texto publicado no Semanário Angolense de 05.09.2015

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