domingo, 1 de novembro de 2015

O FEIJÃO “ENXOTA CLIENTE”



Já tinha ouvido falar e visto nos seus tempos de criança o “peixe catana” ou “cikolamwenho”. Tão duro, tão duro que precisava de uma afiadíssima catana ou machado para o desfazer em bocados, nem sempre ao gosto do retalhista/cozinheiro. Era o peixe que, em Kalulu, nos anos oitenta do século XX, era vendido nas empresas cafeícolas Libolo I, II e Libolo III. Tempos depois, com a fome que se seguiu aos dias do conflito pós-eleitoral de 1992, surgiram dois tipos de feijão. Um era o “espera cunhado” e outro o ”afugenta sogra”. O primeiro era de fácil cozedura, não demorando mais do que quarenta e cinco minutos. O segundo era de uma dureza nunca vista e que, naqueles tempos de fome e penúria, muito servia a algumas noras mal-educadas para afugentar as sogras.

- Mamã almoço hoje é feijão. Só que está já há duas horas e meia e não está a cozer. O gás, essa é segunda botija, e nada! - Diziam.

Quando pensava ter já ouvido e assistido a muita coisa, Kitomangombe foi surpreendido com o feijão “afugenta cliente”. Isso mesmo, “Afugenta cliente”. Não é beff.

Com antecipação de 24 horas e reconfirmação de 4 horas, encomendou o almoço. Comida em instância turística para o “magnata”, a digníssima e dois herdeiros do “trono sobático”. Gentil, como sempre, a gestora, parecia encaminhar o assunto em boa praia. Trocaram mensagens com as devidas cordialidades e formalidades. Drº Kitomangombe por lá, seguido de um agradecimento, e Drª Beltrana, por cá, seguido igualmente de agradecimento da praxe.

- Papá, onde é hoje o almoço? - Perguntou Renato já acossado pela fome, ainda a meio do culto Metodista.

- Filho, ainda é cedo. Respondeu-lhe com um vinco no rosto, dada a sua forma desconcertada de estar perante um local de adoração.

-Mamã, o papá não está a falar onde vamos comer. – Resmungou o rapaz, em busca de auxílio.

- Eu já disse que vamos almoçar num lugar turístico. Por agora devem prestar atenção ao culto e depois partimos para o almoço. – Emendou Kitomangombe, olhando para o filho no colo da mãe.

- Papá! Vamos comer “papuço”? - Voltou a questionar, já mais alegre pela resposta recebida do progenitor.

- Sim. Vamos comer kakusu, se te portares bem.

O sol corria para o meio centro. As chapas que cobriam o local de cultos pareciam gritar. Estavam sendo esticadas pela temperatura que atingia o seu ponto mais alto. No estômago, as lombrigas brigavam descontentes e tudo fazia adivinhar outras perguntas sobre o local e a hora do almoço.

- Mor, já confirmaste o almoço? - Desta vez foi a esposa preocupada com a fome dos filhos (as mulheres têm essa “mania” de pressentir a fome dos filhos) ou mesmo reclamando o seu quinhão.

- Sim, já enviei mensagem a confirmar a nossa ida ao local e obtive a resposta, garantindo que tudo estaria a ser preparado e pronto ao meio dia e trinta minutos.

Não tardou, o coro principal da igreja entoou o hino derradeiro: “teu culto finda aqui. Despede-nos Senhor. Dirija-nos até ao fim. Por teu excelso amor”! – Entoaram sorridentes os jovens de becas esverdeadas.

Fez-se fila para saudar o pastor, o liturgista e os coristas perfilados à saída do templo físico. Renato, o filho, corria de lado a outro. Se tinha apossado da igreja, depois de duas horas e meia de “prisão” no seu imaginário traquina. Os apressados dirigiram-se aos veículos e motociclos e foram “rezar noutras freguesias”. Kitomangombe, a mulher e os dois filhos seguiram-lhes o exemplo e procuraram por um ATM que encontraram sem muita demora. – - Tem dinheiro! – Disse festivo aos que se encontravam na viatura encostada à beira da estrada.

Fizeram-se a caminho do Centro Turístico Kulikwasa que distava cerca de treze quilómetros da urbe.

- Papá olha praia! – Gritaram as crianças.

- Mamã, não trouxeste o meu fato-de-banho.- Reclamou a menina que obteve a pronta resposta da progenitora.

- Teu papá não nos avisou que viríamos aqui. Fica para a próxima filha. Também o clima está a ameaçar chuva. – Rematou para consolar a filha que trançava a boneca.

- Não é praia, filhos. É lagoa natural. Aí não se nada. É perigoso.- Emendou Kitomangombe que, até aí, se limitara a ouvir a conversa entre a mãe e os filhos.

- Papá, e só vamos comer mais nada?- Insistiu a menina.

- Sim, Mara. Vamos comer e ir descansar em casa. Amanhã é dia de trabalho.  

Estacionada a viatura, a família Kitomangombe passou pela cozinha que estava entregue às moscas.

- Nem uma brasa acesa. - Observou o patriarca que começou a desconfiar das palavras amorosas da gestora que lhe garantira, de pés quase juntos, “encontrarás tudo pronto”.

-Será que já está mesmo pronto e só a espera que chegássemos?- Indagou desat vez em voz alta á mulher, por instantes, se tinha distraído com a exuberância da lagoa.

- Boa tarde, jovens, podem mostrar-me o “gerente”?- Indagou Kitomangombe.

- Os três moços, que jogavam à dama, entreolharam-se e apontaram-lhe o caminho da sala onde estaria o responsável.

- Boa tarde, jovem. É o gerente?

- Sim. Sou eu mesmo. – Respondeu meio tímido o jovem que aparentava 22 anos e mal trajado para um serviço de atendimento a clientes.

- A Drª Beltrana falou-lhe sobre quatro pessoas que viriam cá almoçar? O prato é kakusu – Lembrou-lhe.

- Sim, boa tarde, mano. Ela falou. Podem dirigir-se à mesa. Querem ficar na sala ou junto à lagoa? Também há sombra e cadeiras.- Aconselhou o atendedor.

Kitomangombe, aconselhado pela filha, escolheu o espaço aberto, com uma visão mais ampla para a nascente natural barrada pela acção humana e que resulta numa majestosa lagoa com margem betonada num dos lados. Os filhos andavam de um lado ao outro como felino que demarca o seu espaço vital.

- Papá! Quero andar de canoa. – Interrompeu Renato.

Antes mesmo que se preparasse para ensaiar a resposta negativa, Renato voltou a disparar: - papá! Quero nadar nessa piscina bem grande.

As águas estavam proibidas a mergulho por causa da lama e de uns bichos que se pareciam a alforrecas. E, não tardou a explicação de Mara, que já sabia ler, ao irmão que via no papá um empecilho à sua vontade de mergulho.

- Mano, o papá tem razão. Aí está escrito: “proibido tomar banho nesta lagoa”. É por isso que o papá não nos quer deixar tomar banho nessa. – Explicou, recebendo aprovação dos pais que se rejubilavam a cada vez que lesse um aviso ou outdoor e explicasse ao irmão mais novo.

Sem nado, as atenções voltaram à comida que demorava. A mulher, já impaciente, estava de pé, pronta a ir tirar esclarecimentos, quando o “gerente” se apresentou para o que chamou de uma pequena desculpa.

- Já está tudo pronto. Só falta o feijão!

- Só falta o feijão? Preferia que faltasse o kakusu, que pode ser pescado por mim, do que o feijão. Queres que aguarde aqui três horas a espera do feijão? – Questionou Kitomangimbe, já com um vinco visível no rosto.

- Não chefe. Já está a ferver, mas vai levar ainda algum tempo. É só mesmo o feijão que está a faltar.- Justificou-se, esfarrapado, o rapaz.

- Traz já o que tens e o feijão vem mais tarde. - Ordenou a Senhora Kitomangombe, algo aborrecida.

Quatro peixes enxutos, bocadinho de mandioca e batata-doce, um molheco de tomate e cebola picada e nada mais. Os peixes pareciam ter sido conservados em geleira, depois de grelhados, e aquecidos. Estavam secos e sem temperatura interior. O resto foram só reclamações.

O feijão, ainda fervente, serviu mesmo o seu papel de afugentar os clientes que reclamavam de mesa em mesa.

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