sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

O GENERAL PAPA LEITE


Apesar de ser moda, os nomes dos personagens das telenovelas influenciarem os antropónimos dos que nascem, dos que estão por nascer e daqueles que ainda estão no mundo das ideias reprodutoras, o caso dele foi sui generis nos dias que correm. Os mais brincalhões já tinham inventado nomes como Kamutumbulé, Kecijina, Contranatura, etc.,  só para levar Yani e o esposo Matoso a desvendarem o nome do futuro rebento que todos os dias fazia evoluir a barriga da jovem.

Mesmo no dia D, dia do “ó moço, num estás a ver a barriga já subiu e já desceu, começa a se mexer” os futuros pais  mantiveram o segredo do nome da criança, o que deixava a vizinhança e parentela expectantes.

- Tens que te mexer, senão o filho vai te nascer em casa. - Aconselhou Xica Pinto, buscando aproximação ao jovem Matosos.

As vizinhas que gostam de procurar conversas para irem bwatar ou simplesmente enfeitar a boca e fazer comparações novelísticas, tentaram ainda procurar pelo jovem Matoso, marido bem casado da moça em estado terminal de gestação, insinuar, como se para se atribuir o nome à criança fosse necessário reunir o quarteirão ou os moradores todos daquele beco longo e apertado do bairro da Pedra Escrita.

- Bom dia vizinho Matoso, ainda bem que já chamaste o teu primo da ambulância. Assim, quando chegar a hora do bebé nascer, vai ser mais fácil levar a vizinha ao hospital. – Elogiou Dona Magda, outra vizinha, para indagar:  o vizinho já tem o nome do filho ou quer que lhe traga revistas chinesas e brasileiras para escolher o nome antes mesmo da criança nascer?

Matoso, bwamado por causa daquela inesperada e inusitada oferta, olhos e coração mais voltados para a mulher que dava indícios de estar a perder ar e sem força para o ”ai meu Deus, me ajuda só”, fingiu não ouvir a colocação da Vizinha Xica Pinto que se mostrava, entretanto, pronta a ganhar o desafio do nome.

Magda, cujo atrevimento era já conhecido de todos no bairro, deu dois pulos atá à casa dela, que era a última do beco, em busca das anunciadas revistas, mesmo sem que de Matoso tivesse recebido anuência. Foram quase trinta segundos, o que só podia ser conseguido por uma voadora ou então usava revistas debaixo das vestimentas para alinhar as carnes volumosas que lhe fugiam das roupas apertadas, fazendo dela uma ”senhora em rodelas”, como também era conhecida no bairro, fruto das estigas das moças que se achavam melhor alinhadas corporalmente.

- Mano Matoso, estão aqui os nomes. São todos bonitos. Tens nomes de várias origens. São todos bonitos e nomes de moda que passam nos filmes e nas telenovelas da actualidade. Se for menina é nas páginas ímpares. Se for rapaz é nas pares. – Anunciou Magda Ferreira, também conhecida como a ”dama das rodelas”, esperando que a sua sugestão fosse tida em conta.

Matoso folheou as duas revistas, esboçou um sorriso matreiro, apenas para iludir a impertinente vizinha e faze-la entrar no quarto onde Yani aguardava pela hora dos toques vibratórios.

- Muito obrigado, vizinha Magda. Quando o bebé nascer vamos escolher o que nos parecer melhor. – Disse-lhe Matoso que continuou a sua lida caseira.

Não tardou para que outra senhora, também vizinha, e por sinal tia de Yani, que acompanhava o desenrolar dos acontecimentos, saísse para anunciar a partida para a maternidade:

- Sobrinhos, ponham já a trabalhar o carro. Parece que já é hora de irmos andando, antes que a bolsa do líquido amniótico rebente. – Anunciou dona Irlanda.

As imbambas da kivwadi e da criança  estavam já acondicionados numa mochila bicolor, azul e rosada. Tudo meticulosamente preparado para iludir, pois eles, Matoso e Yani, já sabiam o sexo da criança mas queriam manter as pessoas na espectativa.

Na maternidade, a conversa das tias e avós, que foram emprestar seus corpos para fazer frente ao frio estremecedor e aos mosquitos sanguessuga, era somente sobre o sexo oculto da criança (já se parecia uma discussão sobre o sexo de um anjo) e seu nome incógnito.

Já tinham sido feitas várias cogitações e sugestões, mas o casal, pais de primeira viagem, mantinha a chave fechada aos caprichos dos parentes e amigos.

- Esses jovens são duros, yá?! Até me fazem recordar o nosso tempo de Kivwadi, quando só os homens é que davam os nomes e, para te  abonarem com a nomeação de um familiar tinhas que lhe  encher a casa de filhos saudáveis. – Desabafou a Velha Nzumba, avó materna de Yani.

Em casa, no bairro Pedra Escrita, a ngoma já estava encostada ao lume brando e as bebidas ganhavam forma nas caixas térmicas. A moçada toda, rapazes e raparigas, amigas, primos  e amigos do casal, estavam literalmente de telefone em punho, aguardando pela mensagem de confirmação do  nascimento. Todos queriam ser os primeiros a receber a benquista mensagem. Cogitavam também nomes e simulavam junções de iniciais de Judith, a Yani, e de Necas Matoso. Ora juntavam as iniciais dos avôs do bebé, sogros do casal, e até dos amigos e amigas mais chegadas. As mulheres faziam passear a imaginação pelas novelas e big brothers angolanos, mexicanos, chineses e brasileiros, procurando pelos actores galãs e atrizes de beleza invulgar conhecidos até à data.

Estava já estampada na parede, em letras garrafais,  uma enorme lista de nomes inventados.  Era a surpresa que os amigos tinham preparado para Yani e Matoso. Quando Josina, da parte do marido, e Masoxi, da parte da esposa, receberam as mensagens nos telemóveis, confirmando o nascimento do bebé e pedindo-lhes que difundissem a boa nova aos convivas, a lista foi refeita e a festa teve oficialmente o seu início.

Tocou-se música sacra de recepção ao menino. Coros afinados de distintas igrejas cristãs, mas convergentes na hinologia, entoaram o ”Vinde meninos, vinde a Jesus”. E a criança era menino! Depois foi a vez da música profana acompanhada de doses imodestas de bebidas fermentadas e destiladas. À chegada dos pais e avós, acompanhados do bebé, já latas e garrafas pulverizavam o quintal que recebia gente atrás de gente. Os que chegavam traziam consigo manjares e lubrificadores para as gargantas ressequidas por canções adventistas. Eram já nove horas da manhã do dia seguinte.

- E como se chama o rapaz? - Perguntou a tia Irlanda que acabara de chegar, também curiosa.

- Tia, por enquanto vamos tratá-lo por Papa. – Respondeu a parturiente.

- Papa ou Papá! – Voltou a questionar a senhora, nada satisfeita com a resposta recebida, e ajuntou: Se vier a ser Papá será chará da parte materna ou paterna!

- Tia, ainda vamos acertar. Temos de esperar até que as minhas feridas sarem. – Yani respondia olhando para Matoso que parecia ter perdido a fala de tanta alegria.

- E o sobrinho não diz nada! – Atirou novamente Irlanda, de forma provocadora.

- Titi, por mim é Leite. Papa & Leite. Isso é a preocupação do momento. Quando conseguirmos esses indispensáveis alimentos para o bebé conseguiremos definir o nome dele.  – Explicou Matoso irónico.

A festa e a conversa prosseguiram noutra dimensão. Já  não era sobre o nome que se falava. Era sobre o homónimo real. Uns tratavam o menino por Papa ou Papá e outros por Leite ou Leitinho. Assim foi por uma semana até que o casal recebeu a visita do Tio Soba que, olhando para o netinho, exclamou:

- Cara do Comissário! Que nome atribuíram ao rapaz!

- Na ausência do nome definitivo estamos a tratá-lo por Papa e Leite. – Explicou Matoso, acompanhado pela esposa, que é sobrinha do Soba.

- Lembram-se daquela crónica ”O Comissário Papa Galinhas” que publiquei no Angolense, em homenagem ao pai da Yani? Então, podem anotar: Comissário Papa Leite fica bem, só para começar.

O casal que ja vinha alinhando ideias naquela direcção não rejeitou a sugestão e o bebé ganhou o registo oficial com o nome do avô materno que é oficial comissário.

 Obs: texto publicado pelo Semanário Angolense a 13.11.2015

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