sexta-feira, 10 de junho de 2016

KISÂNGWA DE GENGIBRE


Há alguns anos. Não muitos anos ainda, quando chutávamos despreocupadamente à bola de trapos ou outro objecto qualquer para aliviar a distância de casa à escola do povo, no dizer das crianças, eram as tias das panelas grandes e brilhantes ao sol de Abril e canecas, também de alumínio brilhante como nunca, quem vendiam kisângwa adocicada com que empurrávamos pedaços de bolinho ou galetes estômago adentro. Só elas também eram vistas a comprar e vender aos pedacitos o famigerado gengibre. As kotas e os tios que pegavam em pedaços de cola, carregada de acidez, ou gengibre ajindungado eram rapidamente rotulados de langas ou outro ganhavam outros epítetos menos honrosos.

- Esse kota deve ser retrô! (alusão aos retornados angolanos, depois de exilio em país vizinho) - Dizia-se em surdina ou num canto distante colado ao ouvido do companheiro.

- Xê pioneiro, cuidado com a língua. Se o mano te ouve vai te dar kibetu ou dar parte na tua mãe. Não queremos bandidos no bairro. - Advertiam as senhoras da Kisangwa, sempre maternalistas mas também policiais, vigiando-nos quase milimetricamente para não descarrilarmos.

Meninos da kangonya e diazepam como hoje quase não havia, tirando aqueles incorrigíveis pela simples censura colectiva, que eram já designados como #os perdidos gregos#, cuja surra do dia a dia  era para eles elogio. Esses sim, eram detestados pela comunidade e até mesmo pelas próprias mães cujo amor que diziam sentir era só de fingimento.

Nas caminhadas, o sol, a poeira, as basulas, só para aborrecer o amigo e companheiro quando se estivesse já próximo de casa, vindos da escola, caminhavam connosco abraçados. Era ao abeirar-se da porta do quintal que a basula ao companheiro se fazia presente, sendo mimoseado com um vai pra aquilo ou uma pedra a beijar o ferro duro do portão.

- Amanhã vou te apanhar na escola, vais ver só, seu feio e faquiri duma figa! - Consolava-se o ofendido. Mas tudo ficava por aí. O dia seguinte seria de outras cumplicidades na fila do apinhado depósito de pão, nas trambiquices da bola no pelado, das inconfessáveis praias no Bungo ou Chicala de que as mães raramente desconfiavam e da cooperação na resolução dos problemas matemáticos da tarefa escolar.

Naquele tempo, de pouco ter e muita procura do ser e da honradez, o lixo não era amigo. Não nos visitava tanto a ponto de connosco pretender morar. O consumismo e a descartabilidade estavam ainda noutros dicionários não acessíveis a todos os angolanos do cartão da loja do povo e das filas nos talhos. Pedaços de madeira descartados no serviço atendiam o carpinteiro dos banquinhos para as tias das kitandas e da Kisângwa à porta de casa ou da escola. Latas de leite eram carteiras quando não faziam panelas chiar nas casas em que a palha da serração fazia o papel de gás e carvão. Até as escolas tinham-nas em quantidade e qualidade que se traduzia nas marcas onde o nido se destacava.
- Xê, fila da goda! Vocês tomaram nido no mês passado? Tô pai já gasta nas lojas francas ou viajou pro estrangeiro? - Perguntavam os petizes  habituados a ver o colega sentado numa lata de marca corriqueira. A atenção dos rapazes, sobretudo, em relação às novidades dos colegas era tão grande que quem aparecesse com roupa ou sapatos novos era logo brindado com felicitações amistosas.
- Xeie, fulano chamou! São novos ou do Asão? Perguntavam, referindo-se ao mercado do Asa Branca, ao Cazenga, que se tornou célebre por aí ser comercializada muita roupa e calçados usados, doados por organizações não governamentais.

Os papelões tinham uma utilidade qualquer. O ferro, mesmo retorcido, servia para as faças fogareiros e outros artefactos. Os pedaços de chumbo também eram reciclados e davam forma a outros objectos como os que davam peso às redes de pescadores da saveia, matona e lambula. As latas de salsichas e de óleo maná (alimentar) serviam para candeeiros que se expunham em lojas de referência e cantinas, depois de passadas pela arte do funileiro. Até as garrafas de vinho e cerveja eram cuidadas para serem devolvidas inteiras ao revendedor e à fábrica quando não recortadas com engenho para servirem de copos.

A mizangala desocupada não se kangonyava ainda como hoje. Apenas  se kacilingavam (do umbundu kacilingi cimwe) os kotas sem arcaboiços para convencer as manas mais vistosas do bairro. Outros se kapukavam de reco-reco cinquenta ou búlgaro cem Kwanzas. Algumas manas sobradas, por causa da vida fácil com os cooperas regressados à estranja, se migostavam para prender os kotas regressados ou fugidos da vida Kwemba e que procuravam recuperar a vida perdida. Mas eram poucas as mulheres que se entregavam à vida fácil entretidas nas latarias dos cubilas e grades de cerveja dos francós das lojas francas. As jovens queriam e procuravam mesmo era homem para as manter e formar família.

- Vais me fazer pedido com todos os deveres? - Questionavam ao que o cavalheiro candidato respondia com acções e não com as palavras de hoje que o vento leva.

Fora do acompanhamento à kisângwa, os kotas não se gengibravam como hoje, ao que dizem, para calibrar o divumo (diminuir o tamanho do tanque) e aumentar a potência da torneira. Caminhavam sem esforço e nem reforço. Trepavam montanhas sem tração. Era a força das caminhadas longas, sem táxi nem dinheiro para autocarros que os fazia fortes e valentes. E conseguiam convencer e atender até a Zaida Kimbundaria do romance do Ismael Mateus. 

Hoje, tempos do corre-corre, do tenho e proponho, até ngongwenya de gengibre já há.
- Compra gengibre para não usar táctica do galo, subiu e desceu! – Convidam as vendedeiras espalhadas pelas ruas da urbe.

E lá vamos introduzindo na dieta um novo elemento ajindungado, mas também açucarado. É farinha de gengibre. É sumo de gengibre substituindo a kisângwa. É refogado com gengibre... E quão gostoso ele é?!

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