A guerra civil estava no auge. As rusgas, os anúncios nas rádios sobre soldados tombados, capturados, velhas violadas, crianças mutiladas na fuga eram conversas do dia-a-dia e que nunca faltavam nas bichas nas lojas de qualquer coisa.
- Kalulu estava tomada pelo "inimigo". A vila tinha resistido durante setenta e duas horas, mas, sem apoio da aviação, nada mais havia por fazer. Era evacuar as mulheres, os velhos, os feridos, queimar o armamento que não dava para levar, desmontar as agulhas das armas e deixar os gajos entrar. - Era essa a conversa dos mais velhos.
Uns tinham sido já militares como o Sabalu Kambota, o Kiteta e o Kwanza e outros como o Pouca Sorte tinham conhecimento de guerra verdadeira vivida no terreno. Mas outros, guerra deles era só mesmo nos noticiários e nas conversas de kotas que voltavam de férias, feridos, evacuados ou que tinham fugido a tempo da vida militar.
Matoumorro era ainda kandenge e, embora apreciasse as estórias, compondo um filme imaginário, idade da tropa, para ele e Etelvino, ainda não tinha chegado.
- Depois de três dias nas mãos dos "inimigos", a vila de Kalulu seria finalmente recuperada. - Era o que a rádio e o jornal diziam.
Deixado o vilarejo de Munenga, quem sobe em direcção à Vila, ao descrever a Curva do Aníbal, a coluna descobriu que um grupo "inimigo" preparava-se, junto de Lussussu, para ir reforçar os ocupantes de Kalulu que desconfiavam "poder ser regados pela aviação" ou ser atacados a partir da entrada da Ponte Filomena, à Kabuta.
- Ngandu!
- Chefe!
- Presta atenção e toma nota: atirar há trinta quilómetros. Posição sul, latitude 14 graus e longitude 21 graus. Duas batatas. - Ordenou o comandante da Coluna de Libertação de Kalulu, saída de Luanda, o coronel Bonifácio.
Havia já cinco dias de movimento com paragens e avanços coordenados a partir do Estado-Maior General.
- Senhor coronel, só no dia D-1 se avistará com o comandante Kara Podre que está de momento a fazer pente na região à volta para impedir reagrupamentos de pequenas bolsas e reforço ao nosso alvo. O comandante Infeliz e a tropa que lhe sobrou dizem também que estão com moral elevada e prontos a integrar a CLK, no dia D-2. - A ordem do operador de rádio, às ordens do general Dilaji, indicava ainda uma paragem no campo da Eka e uma marcha de cinco quilómetros em direcção a Kazengu. Uma intromissão no sistema de comunicação inimiga seria feita apontando a progressão naquele sentido, ao que a coluna recuaria ao Alto Dondo e apanhar a EN 120 que conduz à Munenga e desta para o objectivo. A ordem dada ao coronel Boni rezava ainda:
- Efectuar paragem no horizonte C3/D-2 e integrar o efectivo recuado.
Ngandu, bússola à frente, mapa na mão, calculou a distância, introduziu as coordenadas, soltou um curto alarme e soltou um morteiro e mais outro. Apenas os soltou sem saber o que havia no destino.
- Bum! - Rebentou o primeiro no meio do aquartelamento precário.
- Bum! Rebentou outro com maior intensidade, pois calhou numa pedra plana que levou estilhaços de aço e de brita ao encontro da companhia de civis armados na aurora para irem "fazer barulho com disparos" ao lado dos homens do Man-Babas.
Ao segundo rebentamento, a companhia ficou desfeita.
- Ai wé, ndifa! - Gritou o chefe atingido, provocando a dispersão do povo-armado que voltaria às suas aldeias do makyakya e xilimina de todas as noites.
- Quando a morte te pode visitar a qualquer hora, todo o instante de vida deve ser festa. - Dizia-se pelas aldeias visitadas pela guerra e por isso, fosse em presença de forcas armadas do povo ou do inimigo, o povo comia o que conseguia, bebia se walende e fazia xilimina, folguedo com batuques e guitarras de fabrico artesanal.
Depois do lançamento das batatas, a Coluna de Libertação de Kalulu continuou a marcha. Infeliz, Kara Podre e suas tropas, todos conhecedores da geografia e das aldeias com propensão para acolher e apoiar logisticamente a rebelião, já estavam integrados na CLK.
Enquanto os comandantes da região faziam o balanço e o ponto de situação no terreno, bem como confirmavam as cartas trazidas por Bonifácio, Ngandu apensava no que podia ser a consequência ou a perda material daquelas duas bazucas perdidas.
- Aonde foram? O que encontraram? E se uma tiver caído na kinda duma velhota a caminho da lavra? E se outra matar um boi, quem vai se aproveitar da carne? E se cair na lagoa de um rio, quem vai recolher o peixe? - Era a última paragem. Aproximava-se o Dia D.
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