Já fiz óbito e enterro digno de um cão. Eu era criança ainda no final dos anos setenta do século passado.
Dias sim, semanas sempre, Dona Maria, amável mulher do sô António, vinha pôr
conversa, durante toda a vida do Atenção, tentando estorvar que o canídeo
tivesse vida humana.
- Mas ó minino, num faz isso. Comer com o cão ou lhe dar cuspo para te gostar
não é coisa de gente, não. É coisa de bicho que se iguala ao cão. - Atirava ao
ver-nos amistosamente envolvidos com o Atenção ou mais tarde com o Tigre, cão
que o nosso pai dizia "é cão saído
da Baia com o mesmo nome que fica no deserto do Namibe".
- Pode me
chamar "sô meu cão-de-merda", mamã. O Atenção é nosso amigo. Coelho
que caça, põe saliva dele na ferida e a mamã come também. Então, mamã, já viu
nê? – Respondeu Phande-a- Umba argucioso.
- Já viu o
quê?
- Cuspo de
cão Atenção não é veneno. Veneno é só daqueles cães-vadios que não tomam banho,
nem comem no prato como o Atenção que é nosso amigo. - Retorquiu resmungão
Phande a Umba, redobrando as carícias ao canídeo.
- Ai ê?
continua mesmo respondão, sô mô bicho. Ó Sô António, estás a ouvir o teu filho,
nê? Depois não me venham cá com kikonya[2]
ou outras complicações. Cão que põe boca na porcaria é que você lhe lambe os
beiços, assim mesmo está bom? Fala ainda pra tô pai ouvir. Assim está bom, sô
mo cão. - Dona Maria levantava o tom de voz para despertar a atenção do marido
que concertava as alparcatas para meter-se no mato para mais uma visita às suas
armadilhas.
A conversa com pícaros desafiadores e argumentos contraditórios levava tempo. Aliás, era conversa de todos os dias da vida daquele cão. Sô António atento ao que se discutia e sendo ele também bastante afetuoso para com o Atenção, preferiu pôr fim à contenda, chamando pelo filho.
- Phande!
-Papá.
- Vem cá. Aprende a ser homem e deixa de discuti com a
tua mãe. - Ordenou Sô António ao filho.
- Papá não fiz nada de mau. É mesmo a mamã que stá a se
metê comigo e com o Atenção. – Phande procurou defender-se antevendo uma
reprimenda.
- Põe corrente no Atenção. Procura salamba[3],
calça quedes e vamos. Larga-lhe apenas quando transpusermos a aldeia para não
se entreter com as cadelas vadias do sô Jacinto - Recomendou em voz firme.
- Está bem papá.
Foi momento
de júbilo para Phande que rápido se equipou, metendo-se a cantarolar. Cesto às
costas, catana na mão direita e Atenção puxado pela esquerda, seguiu atento ao
que o pai foi explicando, enquanto Atenção começava a farejar os odores
deixados, madrugada recente, pelas pacas, coelhos e ngulu ya muxitu[4].
O dia era ainda
criança. Sol não havia. Apenas uma bola que podia ser amarela e quente ou
ofuscada pelas nuvens que viajavam na boleia do vento. Dona Maria estava
dividida também. Metade de atenção à panela que cozia a batata do mata-bicho e
outra metade na Júlia que chorava.
- Ainda bem
que o Sô António chamou o chato do Phande e o seu Atenção. Ao menos, com o pai,
aprende a ser pessoa. – Disse para si mesma.
O ano dessas
conversas perdeu-se na memória. Sei que nem eu, nem o Phande andávamos ainda na
escola. A contagem das coisas que sabíamos era só mesmo moxi, yadi, tatu, wana[5].
Estávamos ainda em Kitumbulu, fazenda do Sô Fernando, pai do nosso pai.
Atenção era
um pastor alemão, exímio caçador. Um alemão agropecuário na região, entre os
potentados de Kuteka e Thumba, ofertara o canídeo ao meu progenitor.
Atenção ia sozinho à caça e arrastava o animal até à casa. Quando não pudesse
fazê-lo, parava e ladrava até que Sô António fosse ajudá-lo.
Certo dia,
Atenção foi à caça e cruzou com uma onça. Atenção lutou valentemente. Voltou muito
maltratado e dos ferimentos não resistiu. Fizemos-lhe um thambi[6]
"de pessoa". Foi a minha primeira experiência.
Depois o Sô António, comprou o Tigre. Era preto, pelos lisos. Chamávamos-lhe
"cão mulato". O Tigre também caçava quando integrando caravana
humana. Não era caçador independente como o Atenção, mas era melhor do que
outros cães vadios da aldeia que só sabiam comer.
Quando o Tigre morreu, de velhice ou doença já não me lembro, eu contava uns seis anos e participei mais activamente no seu enterro. Não teve urna como o Atenção, mas foi envolto em cobertor e lançado em uma cova com um metro de profundidade. Phande e eu ficamos em grande comoção e nesse dia ninguém comeu.
Essas estórias repudiam o tratamento indigno que se vem assistindo aos que ainda são conhecidos como "melhores amigos do homem", lugar que vão, nas cidades, perdendo para o telemóvel.
Cães abandonados, aparentemente sem dono, alimentando-se no lixo, sofrendo pedradas de "meninos também sem família". Quando enfermos ou mortos por doença ou atropelamento, apodrecem nas estradas até à decomposição total.
Certa vez, uma avó, já tão farta de ver tanto cão morto nas estradas, gritou com toda a força que lhe restava no corpo.
- Quem não consegue cuidar cão que não compre/receba, mesmo que seja de oferta!
Acho que a vovó tinha razão. Quem decidir ter cão que
faça como Sô António e seus dois filhos. Eles não deixavam o Atenção e o Tigre comer
alimento cru e quase se faziam à mesa com os donos.
Dona Maria, hoje já velha, ainda se recorda e conta
para os netinhos que “o Tigre e o Atenção
foram cães com direitos humanos” porque, não podendo sentar-se à mesa com
os donos, comiam à mesma hora que eles!
[1] Cão sem
dono
[2] Doença
respiratório (do Kimbundu)
[3] Cesto
feito de junco ou fibra de palmeira para transporte de animais de pequeno porte
ou carne limpa, depois de uma actividade de caça (do Kimbundu).
[4] Porco do
mato, javali (do Kimbundu)
[5] Um,
dois, três, quatro (do Kimbundu)
[6] Óbito (do
Kimbundu)
Sem comentários:
Enviar um comentário