Havia nebulosidade no ar. Aliás, dois tipos de nevoeiro: a tentativa de condensação do de partículas de água suspensas no ar e a nuvem preta levantada pelos ngulu[1] que grunhiam nas matas e nas aldeias, a poeira levantada pelas pessoas andrajosas e irreconhecíveis à chegada e a poeira levantada pelos Nâmbwa[2] e IFA's que se atreviam naquele troço que nos conduz ou nos traz de Muxi-a-lwandu[3].
Avó Treza, oitenta e tal anos nas costas, embora contorcendo-se com dores
da idade, estava determinada em ir a Caxito, sede provincial, fazer o seu
"estou viva"[4]
junto do banco das enchentes e dos antigos combatentes. Tinha sido pioneira em
Kaji Mazumbu[5], onde se alistou
adolescente e ficou até ao tunda mindele[6].
O dia, como dizia, era friorento e tristonho, mas avó Teté, como também é
chamada, meteu-se mesmo assim a caminho. Meteu-se num Nâmbwa, da sua aldeia de
Kingimbi até à vila de Muxya[7],
50 quilômetros mais ou menos, para apanhar a guia da delegação municipal dos
antigos guerrilheiros. Do Muxya a Caxito, outros cento e tal quilômetros,
encimando a carroça do IFA carregado de sacos de macroeira[8]
e longos cachos de banana.
Era verde, a perder cor, as pessoas, às vezes, não sabiam ao certo se diziam cor branca esfregada em capim verde dos atalhos ou verde acastanhado da poeira do asfalto ausente. O IFA 50, nos tempos da guerra tratado amável e diferencialmente por IFA industrial, tirando algumas “madres” já cansadas, carros abatidos pela polícia e forças armadas, raros aventureiros que entregavam à destruição suas máquinas novinhas saídas de cidades distantes e os famosos Nambwa, era único, dia sim, semana também, naquela estrada recortada entre um asfalto esburacado e uma picada a reclamar de garganta seca por um pouquinho de asfaltite, qual rico a Lázaro. Para avó Teté o IFA que a levou era verde-cremoso.
Por causa dos saltos e da velocidade de camaleão, a idosa chegou aborrecida, embora nunca tenha escondido a sua simpatia, os caninos e incisivos que ainda desfilavam na boca e o seu verbo refinado quando fosse para comunicar as suas ideias, suas experiências e seu sofrimento nas matas do Kaji Mazumbu.
Caxito, a capital do Bengo, é, aos olhos dela, "vila pequena com rua e
meia, sendo a vertical longa para pedestres, esticando-se da açucareira ao
açude, e uma transversal que uma criança de cinco anos corre em minuto e
meio". Avó Teté passou pela delegação dos antigos guerrilheiros onde
renovou a foto. Era já conhecida. Alguns "meninos" que lá trabalhavam
eram filhos ou netos de antigos companheiros de avó Teté, por isso não
encontrava demora e nem era exposta à fila.
No banco da rede azul, avó Teté chegou aprumada. Trocou o pano sobre o
ombro, endireitou o lenço, ajeitou e limpou as sandálias de cabedal e fez-se à
fila dos mais velhos.
- Bom dia camaradas. Espero que estejais bem. - Saudou sorridente.
Os presentes retribuíram a vênia com alguns comentários dóceis. Um dos que
se encontravam na fila, reconheceu-a pela doçura e expressividade da voz, quase
locutora se fosse ao Voz de Angola, no Congo de Ngouabi.
- Camarada Teresa, bom dia. Quando saiu de Nambuangongo? Eu sou o sargento Cardoso do Mazumbu, o segundo logístico da primeira leva. Lembra-se?
- Que belo reencontro, meu camarada. Tenho muito gosto em vê-lo vivo e
saudável.
Aproximaram-se e beijaram-se. Dois beijos com as distâncias bem medidas.
- Como vai a sua família? Mulher, filhos, netos e bisnetos, quantos? -
Provocou a camarada Teté.
- Pois é, camarada guerrilheira, os filhos estão aí, a caminho também da
velhice. Os netos na busca do emprego que não há. Os bisnetos a crescer. Acho
que, juntando-os todos, já dava para um destacamento.
Sorriram durante alguns instantes. Se não fosse a educação e o pudor,
teriam mesmo mostrado os mabwim[9].
- Tornei-me viúva. Os filhos andam entre o Nâmbwa e Luanda. Os netos idem.
A tua estória, as tuas lutas, a esperança que tivemos nas matas bombardeadas
com napalm, as frutas que disputávamos aos símios, a contribuição à edificação
da nação, as incompreensões pós independência, o descaso a que se votou as
aldeias revolucionárias do Nâmbwa e a desilusão é tudo. É tudo similar,
camarada Cardoso.
- É sim, camarada Teté. Aprendemos que a luta era para o benefício futuro.
Um país sem exploradores, igualitário, com escolas, hospitais e oportunidades
... - Recordou Cardoso.
- Sim camarada! A nossa luta é até ao fim. Até à ultima gota é esperança.
E foram conversando, recordando, com passagens pitorescas pelo meio, assim
como o cronista repleta o estômago da sua prosa. Chegou a vez da avó Teté que
se encontrava na fila feminina das "pessoas de idade" como os jovens
tratavam os idosos daqueles tempos da terceira República. A agência estava
cheia, porém alegre. A avó Teté com o seu refinado linguajar era,
efectivamente, uma rosa naquela floresta humana.
- Seu nome, avó? - Perguntou a funcionaria bancária.
- Chamo-me Teresa.
- Sua idade, avó?
- Conforme o Bilhete de Identidade. - Respondeu a octogenária, num
"bom português', ao mesmo tempo que esticava a mão que continha o
documento.
A jovem conferiu, o nome, a filiação, o local e data de nascimento e a
altura. Porém, esqueceu-se de ver a assinatura.
No fim do preenchimento da ficha, sacou da almofada com tinta e procurou
explicar que dedo a idosa mergulharia no tinteiro.
- Avó esse dedo, aqui, o indicador, é que vai meter assim, e estampar
assim?
- O quê? - Questionou meio revoltada a idosa.
- Sim, avó é para assinar.
- Não, não minha netinha. Estudei e ensinei alunos no tempo da ardósia.
Dá-me cá uma caneta que eu assino.
Um idoso que se achava ao lado, já com sua conta actualizada, rápido se
prestou em esticar a caneta que a avó Teté segurou com toda a delicadeza, como
se fosse desenhar uma flor novembrina e, com sua caligrafia de pôr inveja a
doutoras de seis pancadas, assinou legivelmente o seu nome.
Teresa Miranda Lopes.
Estupefacta, a rapariga, vinte e tal anos, quase se ajoelhou em súplicas e
pedidos de perdão.
- Ngiloloke kuku. Ngakudyondo[10].
Velha Treza, crente metodista confessa e convicta, pôs-lhe a mão sobre a
cabeça e desatou:
- Fica com a minha bênção netinha. Não fizeste nada de mau.
==
[1] Porco
(do Kimbundu).
[2] Triciclo
motorizado com carroça para transporte de bens. Em algumas regiões de Angola
transporta pessoas e bens,
[3] Do original
muxi=árvore; lwandu=esteira: árvore onde se confeccionam esteiras.
[4] Prova de
vida. Acto anual para que idosos continuem a beneficiar da pensão.
[5] “Primeira”
base de guerrilheiros do Movimento Popular de Libertação de Angola na região de
Nambuangongo. Alguns idosos da região atestam ter sido criado entre 1962 a 63.
[6] Alusão à
saída dos colonos brancos; independência.
[7]
Corruptela de Muxaluando, sede municipal de Nambuangongo, município do Bengo.
[8] Mandioca
demolhada e posteriormente seca. Serve para a feitura de fuba ou farinha de
bombô.
[9] Espaço
sem dente. Desdentado.
[10]
Perdoe-me avó. Peço-lhe perdão (do Kimbundu).
Sem comentários:
Enviar um comentário