O Kisongo dos anos sessenta eram várias aldeias dispersas e perdidas no sertão, administradas por um chefe de Posto, auxiliado por cipaios negros e poucos mestiços, no dizer de hoje, também eles auxiliares de polícias da administração colonial.
Entre Kisongo-vila e Mbang'Wanga, mais à margem do Kwanza, estava Kambaw, aldeia de Nzumba, mãe de Lumbu.
Alto, forte, voz firme, capaz de secar uma árvore desobediente, Van-Dúnem era dos mais pungentes cipaios do Kisongo e a quem o administrador recorria para os assuntos mais bicudos como: pacificar aldeias revoltosas, chamar à razão fazendeiros brancos e ou mestiços faltosos aos impostos, castigar negros reincidentes e recalcitrantes entre outros serviços que demandavam força e imposição de ordem.
Van-Dúnem passava semanas sim e semanas também ocupado pelo Posto. Apenas nos dias que calhassem ia à casa visitar Zumba e os filhos. Era mais ao final de semana que fazia renda com Kafebele, pequeno, lero, altivo e negro da cor da pedra do ferreiro, que havia sido transferido da Munenga ao Kisongo.
Um dos adereços por que Van-Dúnem ganhara afeição era o seu cinto de pele de jiboia, confeccionado por um artesão da Kisama. Na verdade, não era apenas um eram dois cintos. Tanto que ora os tinha no quarto do acampamento, ora os tinha distribuídos pelo acampamento e pela casa familiar em Kambaw.
Num ano, que a memória deixou escapar, havia faltado chuva, apesar de nuvens semi-carregadas que viajavam sem parar, provocando intermitências ao sol que tudo fazia secar. Até rios contavam gotas d'água, pondo em disputa o homem da aldeia, o kyombo do mato e demais bichos sedentos que se tornavam comida do homem caçador.
Lumbu, dois anitos ainda, brincava junto à sanga que distribuía água fresca aos que iam e vinha da lavoura circunscrita às ribeiras. Mais não se colhia senão kizaka, malanga, jihasa, kindombo e alguns grãos.
A fome era total. Até jiphuku escasseavam e os gatos haviam fugido de tanto bocejarem sem nada tragar.
Aproveitando-se do silêncio da madrugada, ausência do gato e da frescura da sanga, uma cobra adentrou a sala de terra batida e enrodilhou-se na base do reservatório refrigerador.
Lumbu viu no animal o adereço com que sempre brincava à chegada do pai. Assistira um dia o pai a punir o irmão mais velho, servindo-se do cinto. Puxou-o, com sua força de monandenge, e procurou mordê-lo com os dentes que tinha por completar.
- Lumbu larga. É perigo! - Gritava a mãe atónita.
- Lumbu dá isso. Tem tutu. - Ajudava o soba chamado às pressas, sem lograr.
Num pestanejar, a casa ficou apinhada e a aldeia em alvoroço.
- Como é possível?
- Cumué ku bicho entrou?
- Como salvar mininu? - Mil vozes, mil perguntas lá fora.
Vieram uns mizangala, dos mais destemidos da aldeia, que enfiavam mãos desprotegidas em tocas para sacar surucucus e jiboias.
- Dá licença! - Disse um deles autoritário.
Abriu-se lhe caminho. O momento era para homens corajosos. Lumbu corria risco.
Kindalá, jovem com apenas dois terços de dentes. Outros perdidos em pelejas e quedas empunhava uma vara terminada em Y. Pôs-se à entrada.
- Passo atrás! - Ordenou que os assistentes recuassem.
Precisava de zona vital para manobras. Um olho em Lumbu que mordiscava a cauda da cobra e outro olho à procura da cabeça do réptil.
- Lumbu, larga é tutu? - Tentou persuadir.
- Hum, né nada. É cinto do papá! - Soltou o infante, engatinhando para o quarto, puxando pelo bicho, forçando-o a mostrar a cabeça.
Num toque mágico, Kindalá, com a sua vara terminada em Y, golpeou-a pela mandíbula, fazendo da serpente um verdadeiro futuro cinto para o cipaio Van-Dúnem Mulalu que se aperceberia do acorrido quinze dias depois.
Estória base: Eduardo Cussendala
Texto pblicado no Jornal de Angola de 4 de Setembro de 2022
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