quinta-feira, 20 de outubro de 2016

PREFÁCIO ÀS "CONVULSÕES DO MEU PENSAR"


PREFÁCIO

Nesta fase delicada do uso da Língua que nos faz Nação, em que boa parte da nossa juventude vive os dilemas do “Enxaguar ou Ensaboar”; do “através ou por causa” e ainda do “lhe em vez de o-a” (vou lhe visitar ou vou visita-lo?), fiquei positivamente surpreendido ao folhear os textos versificados do Edy Lobo. Parabéns pela forma cuidada com que usas o nosso principal veículo de comunicação e de literacia.

À semelhança dos caminhos que me levaram ao meu padrinho literário, Tazuary Nkeita, Edy e eu conhecemo-nos pela via (através) da rede social Face Book, tendo me sido encaminhado pela amiga comum Luísa Rogério com quem trilho léguas profissionais.

Surpreendeu-me a humildade de um jovem desse tempo em que mais se grita do que se conversa e mais se conjuga o verbo ter do que o ser (valores). Para além de imaginativo e laborioso (a arte da escrita remete o executor à inspiração e transpiração), Edy Lobo é também um bom conversador, recheado de maneiras e polimento. E é também isso o que o leitor encontrará na presente obra: puros diálogos versificados.

Teu amor não me é suficiente...Teu amor não me chega! | Ao mar quero pedir razões para uma só mulher amar. (In: UM SÓ AMOR NÃO ME CHEGA).

É, de facto, o amor, nas suas distintas dimensões, que Edy Lobo apregoa em todas as páginas deste livro.

Para mim, é uma das características da poesia dizer grandes coisas com palavras poucas. E, recriando Arlindo Barbeitos, diria mais. O poeta não grita mas também não emudece perante situações que do quotidiano que despertem o seu olhar crítico.

Nessas “Convulsões do pensamento”, Edy Lobo procura trazer-nos ideias sobre as pessoas, a vida e o amor. O leitor aperceber-se-á disso nas leituras que permitem o texto poético.

À guisa de isco e cônscio da intangibilidade do texto poético, dada a sua acentuada polissemia, convido-o à leitura do poema-título “Nas convulsões do meu pensar”, (pág. __) que confirma as preocupações do autor com o homem, enquanto ser social, gregário e racional, doptado de valores universais que se deviam manter invioláveis.

Edy Lobo lança-nos, nessa sua obra primeira, um alerta para o despertar do sono e da apatia, ante o surgimento de novos fenómenos que ensombram a nossa (co)existência. E, o nosso poeta “convulsiona” ao se debater com “Amores económicos (que) gritam em qualquer esquina|Ventos corruptos (que) incentivam a mais inocente menina| Adultos logros despidos totalmente de juízo...

Lida proposta em presença, encontro em Edy Lobo uma picada aberta (que como qualquer arte e artista deverá ser trabalhada) para uma longa jornada literária. Muito mais reterá, para além destas humildes palavras, depois de percorrer a totalidade das páginas que fazem esse livro, missão para a qual lhe endosso o convite.

Ao terminar, consolo-me com a riqueza da sabedoria bantu que nos orienta: O caminho faz-se caminhando.

Segue o teu caminho, poeta Edy Lobo!

Soberano Canhanga, Luanda, 18 de Janeiro de 2016.

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

MULONDOLO PARA DOR DE COLUNA E "OUTRASCOISA" DOS MAIS VELHOS!

Viajávamos da capital ao interior, minha terra natal. Ao longo do trajecto de 270 Km, revezados entre pavimento selado e buracos que ameaçam os automóveis, é Man Prole, o músico do Kwanza-Sul, quem nos faz companhia com as suas  melhores quetas de todos os tempos.
- Papá, ele está a cantar o quê? - Pergunta o filho derradeiro, algo aborrecido. A queta que me leva aos anos oitenta do século finado nada lhe diz. Pior ainda porque cantada em Kimbundu, língua que só ouve soar quando é visitado ou visita a avó que intercala sempre expressões lusitanas e o seu Kimbundu materno.
- Ele está a cantar que a mãe está a pensar e a chorar o filho desaparecido na tropa. - Traduzi para o infante.
- Papá, na tropa é longe?-  Voltou a indagar o petiz, agora interessado na explicação.
- A tropa não é um lugar. Tropa é o militar. No passado todos os jovens rapazes eram obrigados a ser tropa e muitos morriam na guerra.
- Guerra é o que papá? É como no filme que fazem tiros?
- Sim, filho. Faziam disparos mas eram de verdade e as pessoas morriam mesmo. Morreu muita gente longe de casa e sem que os familiares tomassem conhecimento do óbito. Havia pessoas que eram choradas devido a falta de notícias mas que reapareciam. Quando assim sucedesse, as famílias faziam festa grande. Outros jovens idos ao serviço militar eram esperados e nunca mais vinham. Mas as mães nunca desistiam de procurar por notícias dos filhos ausentes ou de lamentar. É isso que Man Prole canta.
- E o papá também foi tropa como o meu padrinho?
- Sim, filho. Fui tropa mas estive na rectaguarda, a guardar a vila de Kalulu enquanto os tropas mais velhos iam fazer barreira à frente.
- E o papá andava de traz como o carro quando anda de rectaguarda? É por isso é que a casa da avó ficou muito distante, n´é papá?
A conversa entre pai e filho ia animada. O volume da música tinha sido baixado ao máximo. Com o gotejar furioso da chuva só se ouvia mesmo um ruído imperceptível o que parecia agradar o infante que questionava com mestria.
- Papá o meu padrinho me disse que a guerra já acabou. É verdade, papá?
- Sim, filho. Felizmente, já não há guerra. Por isso é que viemos de carro ver a avó e agora vamos visitar a tia. Antes não era possível andar de carro em segurança porque os que estavam nas matas queimavam os carros.
- Eles, assim, eram bandidos, não é papá?
- Sim. Digamos que sim. Era assim que os tratávamos mas agora já são nossos amigos. Paz é perdoar os erros do passado e fazer coisas novas em comum.
O rapaz, seis anos ainda, pareceu ter percebido a explanação sobre os lamentos reproduzidos pelo músico Man Prole: a guerra, as mortes, a paz e a reconciliação e reconstrução nacional. Porém, antes mesmo que adormecesse, o arrastar da blindagem num buraco que se candidatava a cratera, junto à ponte do Longa (EN120), fê-lo despertar e voltar às perguntas.
- O papá disse que guerra já acabou. E porquê que o carro se arrastou?
Fiquei segundos sem responder. Enquanto endireitava o que lhe dizer, preocupei-me em encontrar um sitio seguro, já no lado da Quibala, que não prejudicasse a circulação dos outros automobilistas e parei para ver eventuais danos na viatura e esticar a coluna há muito afectada por uma lombalgia. O rapaz aproveitou desfazer-se da ureia e apreciar outros meninos, alguns de sua idade, que empunhavam umas raízes com um cheiro intenso e seiva branca.
- Papá, olha. Os meninos estão a mostrar ao papá uns paus. É quê?
Antes mesmo que ensaiasse a resposta, um coetâneo do Arlindo passou à frente e atirou:
- É mulondolo. É "midicamento" para dor de coluna e "outrascoisa" dos mais velhos. Tio, compra. É barato e se quiser pode provar na raiz ou no charope (raízes demolhadas num frasco).
Katerça, assim nomeado por nascer numa terça Luarenta, conforme narrou, frequentou a primeira classe na escola de Kikole. Tem nove anos, apesar de aparentar menos. "Me ferraram na altura", explicou-se quando o informei que o meu "kasule" tinha apenas seis. Contou que vende (raízes de) mulondolo (ao que dizem com propriedades analgésicas e afrodisíacas) para juntar dinheiro para a roupa e os cadernos que vai usar no próximo ano lectivo.
- Aqui é assim. Os mais velhos vão redar (pescar com tarrafa) e vendem o peixe que sobra para ter dinheiro. Nós crianças, assim que o rio (Longa) está muito cheio, para não nos arrastar na água, cavamos mulondolo e vendemos "nos" tios que vão a Luanda ou no Huambo. Outros, conforme o tio está a ver, ficam a tapar os buracos na estrada e os motoristas também lhes oferecem dinheiro. - Explicou o petiz, sem gaguejar e acrescentando: se o tio não gosta de mulondolo pode comprar milho fervido "na" minha mana que está ali, na sombra.
Abri a porta moedas da viatura e descobri uma nota de valor modesto que estiquei ao bracito do rapaz.
- Toma Katerça. É para comprar mesmo um caderno. Espero que chegue. É uma pena o tio não ter mais...
- Obrigado tio. Deus te ajude e te faça vir mais vezes aqui. E mulondolo vai deixar? Não quer um "kabucado" de favor? – Retribuiu o rapaz.
Agradeci a oferta desinteressada do Katerça e aconselhei-o que estudasse sempre, não se esquecendo, todos os dias, de fazer os exercícios do livro de matemática, para além de exercitar a leitura.
Na minha terra há um adágio que reza “kayete lya sapo kayoto”! (o que não se exemplifica não convence ou não anima!). Para que ficasse claro, contei-lhe um pouco da minha experiência.
- O tio, quando era pequeno, também vendeu, ajudando a mãe. Hoje tenho emprego graças à escola, exemplifiquei.
Katerça agradeceu e eu parti, debaixo dum teimoso chuvisco, quase a verter a terceira lágrima.
Os instantes seguintes foram novamente do Arlindo que meteu a limpo as dúvidas sobre mulondolo e aquela estória contada ao menino Katerça sobre as vendas do tio enquanto miúdo.
-O papá vendeu o quê? O papá fez o quê com o dinheiro? – Foi um perguntar sucessivo a que se seguiram respostas que já não ouviu. Embalou com os batimentos da chuva sobre o tejadilho da viatura e quando despertou já tínhamos chegado à casa da tia Júlia.

sábado, 1 de outubro de 2016

QUEIXUMES DE MARIA


- Mas, ó Kanyanga, dizem que és Soberano. É verdade?
- Sim Maria. Sou um soberano. Soba grande que é saudado com rajada de palmas e de joelho curvado.

- Hum? Soba ou sopa? - Voltou a questionar Maria.
- Soba. S+o+b+a. Autoridade. Gajo que "mija" de acordo ao legado histórico-cultural do povo bantu, associando o direito costumeiro e o positivo. - Expliquei para que não houvesse mais equívocos.
Maria, porém, parecia não estar satisfeita e intercalava a música suave do seu motor com queixumes, próprios de quem está prenhe e que desliza sobre solo acidentado.

- Conheces o governa a dor Júnior Henry Quê? - Perguntou.
- Sim. Conheço. Já estive com ele algumas vezes no tempo em que andava a chefiar os pesca a dores.

- E o chefe Brita masculina? – Voltou a indagar Maria. 

- Brita masculina? Como assim, Maria? - Retorqui, aproveitando engatar-lhe uma carinhosa quarta farfalhada.

- Sim. É isso mesmo que ouviste. Se brita é feminino como seria o masculino caso houvesse?

- Hum?! Já sei aonde queres chegar. Também conheço, embora seja só de ver na televisão e ler nos jornais.

- Mas, um soberano que conhece tanta gente que manda, com tantos poderes que tens, nada fazes para aliviar o sofrimento da tua dama?

- Mas, Maria, (fiz pausa para endireitar o discurso) que queres, afinal de contas e que não dizes logo? Aprecio a tua música quando estás embalada. Aprecio também os teus gemidos prazerosos, quando nos encaixamos um na outra. Dizes que gostas de ficar comigo nessa aventura. Que mais está em falta ou que não corre à feição, Maria? - Falei-lhe, quase em súplicas amorosas.
- Estou passada com os administra as dores de cinco municípios. - Atirou ela, sempre em meias-conversas, nunca indo ao concreto. Se calhar, para manter acesa a minha curiosidade e tornar o nosso envolvimento mais profundo, mais íntimo, com mais cumplicidade. Uma conversa com rodeios, mas que chega sempre ao final e ao contento dos dois.
- Pois é, meu Soba - Maria pareceu abrir-se mais para deixar-me aplicar-lhe a quinta farfalhada - se eu fosse você ou se no mínimo tivesse o teu poder, os teus conhecimentos e influências teria procurado o Vida Boa, o Henry Quê e o Brita Masculina para lhes propor uma averiguação aos administra as dores de Kambambi, Lubolu, Kipala, Waku Kungu, e Kwitu. Já viste os buracos na via Zenza-Ndondu?

- Sim, vi, Maria.
- E os buracos do desvio da Munenga ao Longa?

- Sim. Também os vi.

- Viste ainda as crateras do Longa ao Kimone? Parece que esses administra as dores não andam a ver a dor. - Atirou cómica.
- Sim, Maria querida. Passamos por cima deles ou soubeste contorná-los.
- Sim, mas com essa gravi-carga que me meteste, estou com a barriga, as pernas e os braços todos retorcidos. Viste ainda como está o caminho de Katofe ao Keve? Eu que não sou Maria Vagarosa tive de me arrastar devagar, devagarinho, parece dia de parto é hoje?
- Compreendo a tua mágoa, Maria. Vamos diligenciar. Procurar fazer chegar a tua reclamação, através de uma petição aos camaradas governa as dores das provinciais. Só há um senão, Maria. A EN 120, e mesmo aquela que me esqueci o numero, que nos leva do Zenza ao Ndondu, são da responsabilidade do vai (go) ver no central e os administra as dores não se podem meter, senão arranjam doença de se coçar.
- Já viste quantos carros carregados de burgau, pedra intacta ou britada e terra circulam pelas rodovias em que passamos? Já imaginaste se cada um desses administra as dores pedisse aos donos das burgaleiras e donos dos carros para implementarem um projecto de responsabilidade social rodoviária?
- Sim, Maria. Mas como seria essa tal responsabilidade social com pedras, terra e burgau? Essas empresas, calculo, não têm capacidade para arranjarem estradas. E mesmo que tivessem kumbú arranjariam também sarna diante do vai (go) ver no central que é dono das estradas que começam com EN.
- Tu és mesmo um soba distraído. Vou baixar-te de soba para sopa. Estás bwezeza tipo sopa de restos. - Disse gozona, mas cantando alegre.
O nosso quinto round estava quase no auge. O ponto G estava à vista. Maria flexava excitada, mas sempre conversadora.
- Já pensaste se eles, os administra as dores dos municípios, chamassem todos os exploradores de inertes, os carregadores, os construtores e todos os demais beneficentes a se juntarem para, no mínimo, taparem os buracos enquanto o vai ver central leva alcatrão aonde ainda não há? - Propôs Maria, mis assertiva.

- Sim, Maria. Agora te percebo. É uma excelente ideia. Vou propô-la aos camaradas administra as dores municipais e aos governa as dores provinciais dos Kwanzas.

- Se eu fosse você, prosseguiu Maria, com todos os poderes, conhecimentos e influências que dizes ter, mandava as sugestões sobre responsabilidade social rodoviária já com um pedido de inquérito sobre o que os administra as dores não andam a fazer e outra sugestão aos seus chefes para que os que pouco fazem sejam afastados. A dor que sinto é grande e penso que não andam a administrá-la como devia. - Disse, queixosa.
- Está bem, minha pinta vermelhinha. Vou redigir a petição com tudo quanto sugeriste.

- E não te esqueças de notificar o Dr. Vida Boa, por causa do Kunje. Aquelas crateras fizeram-me lembrar o tempo do tri-ti-ti, quando havia mais buracos do que estradas. - Concluiu Maria.
A conversa estava doce. Como sempre, o soar máximo do batuque é prenúncio do fim da festa. Ou acaba o walende e todos se espalham, ou rebenta a pele do ngoma. Com a Maria foi o gasóleo.

Obs: Publicado pelo semanário angolense de 13 de Junho de 2015

terça-feira, 20 de setembro de 2016

JOÃO MARIA E MARIA JOÃO


Conheceram-se crianças ainda de tenra idade. Seus pais eram vizinhos e, naquele tempo da dibinza, andavam e brincavam juntos, improvisavam os mesmos brinquedos, apesar de ele ser rapaz e ela menina.

A casa de uma tanto servia para o outro, refugiando-se do sol intenso ou frio congelante, ou mesmo dormitando, depois de cansativas brincadeiras no morro de terra deixado pelos homens do Ministério da Construção e Habitação. A amizade voluntária e desinteressada acabava por envolver também os pais que gozavam da alegria dos filhos e choravam a dor do filho do vizinho.

Certo dia, quando Maria pisou um caco de garrafa que quase lhe decepava o calcanhar, João foi o primeiro a chorar.

- João! Estás a chorar porquê se ferida é minha. Ninguém vai te bater por estares comigo. Saí com minhas pernas.- Disse Maria. Ela, corajosa como ninguém e apossado de compaixão.

- Maria, tua ferida também dói em mim. É como se esse sangue saísse daqui. E batia ele no seu frágil peito.

Àqueles que assistiram ao diálogo pareceu-lhe que havia envolvimento psico-afectivo que extravasava a simples amizade pura. Mas eles eram crianças. Apenas sete e oito anos. Inocentes naqueles dias em que contar estrelas à volta da lua completava o lugar das telenovelas desse tempo.

E caminharam até à casa de Maria onde as reprimendas e conselhos dos pais da menina serviram para os dois.

Aos olhos dos maldizentes, a menina era Maria rapaz e ele um João maria.

- Esse está perdido. Homem fica a andar com miúda à procura de bonecas quando os outros fazem fisga e carros de lata?

- Hum! Essa está perdida. Mulher, em vez de brincar de cozinha e costura fica a andar com rapazes, tipo homem, a querer ser mecânico e bate-chapa? Vizinha Nela nem só genro vai ter. Alembamento e panos de mabela azul é melhor esquecer!

Os falares das tias, vizinhas no Marçal, sempre afáveis no trato mas atiradoras da primeira pedra, eram constantes sempre que vissem aquela dupla. E as senhoras, na sua liberdade de exteriorizar pensamentos, não guardavam palavras para amanhã.

Maria e João, apesar dos elogios e das críticas, continuaram amigos na adolescência e juventude. Estudara na escola Juventude em Luta e no fim lutaram para bolsas de estudo no estrangeiro.

Em Cuba calharam em ilhas diferentes, João na Ilha da Juventude e Maria em Plaia Girón. Mas as cartas e as visitas se mantiveram intensas.

Em Angola, próximo das férias, os pais de Maria, sabendo do seu desinteresse em dar-lhes genro, decidiram surpreende-la com um presente.

- João! Imagina o que ganhámos?

- Ganhámos o quê, Maria? Bolsa de mestrado?

- Desperta, João. Primeiro é aplicar a licença e depois agregar valor. Te esqueceste?

- Então diz o que foi que aconteceu de transcendental que te faz ligar-me à meia-noite.

- Ouve, João. Os meus pais cederam-me um apartamento. Já te disse que é todo nosso. Podes lá ir ler e descansar quando quiseres.

Festejaram, à distância, aquela boa nova plasmada na mukanda recebida ainda fresquinha. Maria passava o papel pelo nariz, a ver se sentia o cheiro do pai misturado entre as letras manuscritas a preceito, Bernardo Kixinga era de pena leve e fácil. Apenas o cheiro da caneta, que se supunha ser uma Bic, resistia ao tempo.

Às cinco da manhã, João chegou com as passagens para Angola. Era mês de férias. As suas viagens eram conjuntas. Embora nunca alguém dos dois tivesse libertado os cachorros, Maria e João, mesmo aos olhos dos companheiros africanos e sul-americanos, viviam uma vida de casal, separado apenas pelo descompromisso.

João tinha outas amigas e até namorada cubana, embora na sua vida nunca chegassem aos calcanhares de Maria. Maria também tinha amizades masculinas. Até experiencia sexual teve. Mas, confessou a João que apesar do momento singular proporcionado por aquela viagem espacial, não era um João na conversa e no à vontade.

Viajaram para Luanda. De mãos dadas como sempre. Ao segundo dia, Maria convidou João para ir conhecer seu apartamento na nova cidade que se erguia pelos lados da Cuca.

- João, querido! Vai sem desconfiança nenhuma. Leva livros e roupas, se quiseres. A chave de reserva, que passa a ser tua, está com a vizinha da porta 21. O nome dela é Bela.

- E por que não te encontrarei em casa?

- Vou arranjar um Habana Club, João. Até amanhã.

No dia combinado, Maria ligou manhã cedo a confirmar a visita enquanto se aprumava como noiva de quem espera o altar.

- Vens, João? Tenho o coração aos pulos. Quero comemorar contigo... Estás bem?

- Estou cansado, Maria. Tive uma noite para esquecer.

- Foste à má vida e não me levaste? Já me deste uma concorrente que vai desistir na primeira paragem? - Questionou brincalhona.

- Oiça, Maria. Ontem fui à tua casa.

- E que aconteceu? Para que não nos víssemos? Conta em detalhes que estou a asfixiar-me de curiosidade.

- Estava eu no teu quarto. Num quinto andar. Quando me viste saltaste por cima de mim e nos amámos perdidamente. Porém, ele chegou. – Fez pausa para ouvir a reacção.

- Ele quem, João? Conta rápido essa cena que se parece ficção.- Pediu autoritária.

Pois é. Constou-me que há já bom tempo que sentia o cheiro da intrusão em tua propriedade. Entrou de rompante. Abri a janela e o chão era muito longe. Não me entreguei ao salto, embora me tivesse passado pela cabeça o suicídio. Acobardei-me e supliquei de joelhos. Tu estavas na cama sem saber a quem dar razão. Pegou-me pela goela até ao rés-do-chão.

- Ela atenta do outro lado da linha, sem poder conter a respiração e o foco daquela conversa, mantinha-se calada, lançando, de vez em quando, uns “e depois”?

- Depois levou-me à rua. Eu sempre quieto. Como uma criança consciente da transgressão e que não reage. Quando ele se aprumava para me esmurrar, peguei-lhe os martelos que balouçavam numas calças de treino e sem protecção interior.

- E daí? – Questionou Maria ainda confusa

- O feitiço virou-se contra o feiticeiro. Inverteram-se os papéis. Ele gritava e eu apertava enquanto procurava por folga e me pôr a fresco. Depois meti-me no carro.

- E ele?

- Ele, recuperado, meteu-se no dele e partiu em minha direcção. E fizemos uma corrida sem vencedor.

- Mas, como assim?- Maria começava a entender e tinha a curiosidade mais cada vez mais aguçada para saber do fim, da trama.

- Pois, Maria. Acordei com a entrada da tua mensagem...

sábado, 10 de setembro de 2016

O IRMÃO PIRIGO


Gabava-se de rua em rua e de sol a sol. Era por todos conhecidos como um grande devoto e nas discussões bíblicas tinha fundamentos até para derrubar alguns clérigos menos preparados. "Foi a guerra que me tirou do ministério. O meu nome já 'encosta ‘na' lista dos 144 mil que vão 'no' céu!” Afirma convicto.

No bairro e na igreja que frequentava, era até então chamado de "irmão Catorze-Quatro", em alusão aos três primeiros algarismos que na numeração árabe ganham, à direita, três zeros para completar o número dos escolhidos, que segundo o livro da bíblia cristã, Apocalipse 14:01, vão governar a terra com Cristo, num executivo que terá o seu palácio no alto dos céus.

Na terra, dizia o irmão Catorze- Quatro, ficariam as mulheres e homens de boas obras, mas que pela sua inconsistência, não chegavam a atingir a excelência cristã. O patamar em que se julgava estar.

Catorze-Quatro tinha todos os versículos de Apocalipse e Salmos 115:16 bem sublinhados e abria-os prontamente para se defender sempre que fosse afrontado por jovens reformistas e inconformados com a maneira como o templo físico era governado pelos “kotas” da velha guarda. Era também o primeiro recurso àqueles que se iniciavam na “pregação da palavra” ou que participassem de debates inter-eclesiais.

Filho de uma camponesa alfabetizada e de um comerciante de fuba e peixe seco, Catorze-Quatro nasceu numa missão evangélica protestante e lá fez toda a sua instrução preparatória, até à chegada da idade militar que lhe “roubou o sonho de se tornar pastor ordenado”, quando já frequentava o curso propedêutico no Seminário Emmanuel Unido do Ndondi, no planalto angolano. Manteve, porém a vocação sacerdotal e fazia questão de se gabar de ser “um dos poucos escolhidos que conhecerão e trabalharão 'caralmente' com o Messias no seu governo vindouro e sem fim".

Já a descrever a curva dos cinquenta e com a berma encefálica apinhada de algodão, Pinto Kwononoka, de sua graça, lutava para ser elevado à categoria de diácono, ao mesmo tempo que se esforçava em ser um “velho-jovem", aderindo a todas as modas físicas ou virtuais que lhe chegavam pelas redes sociais.

Era um “velho actualizado”, diziam os mais novos. Há já anos que as suas roupas se pareciam à pele colada ao animal ainda vivo. Os seus telefones eram todos de último grito e tinha plano infinito de internet que lhe permitia passar a vida a dedilhar, mesmo durante os cultos dominicais. Na igreja, para não dar nas vistas enquanto trocava mensagens, escolheu um lugar estratégico para a sua nova mania: senta-se próximo de um pilar de sustentação com uma saliência que faz um ângulo recto, onde disfarça o aparelho em que palavreia com os amigos durante o culto. E foi levando a sua "santidade de mentira" com a “cipala” semi-lavada até ao dia em que foi chamado para abençoar o ofertório da igreja.

- Irmão Catorze-Quatro, leva-nos a Cristo em oração! - Pediu o reverendo Kabwiza.

O dia era de sol. A subida de temperatura era acompanhada com o vigor das vozes corais dos grupos alfa e ómega e dimatekenu nyi dizubilu. Cantaram garbosamente os coros, um a um, fazendo "descer o céu à terra". Para uns, a arrebatamento estava para segundos. O pastor tomou a palavra para agradecer os coros e os “dizimistas” do primeiro domingo daquele mês de sol e chuvas fartas.

"Convido o nosso querido papá Catorze-Quatro para nos levar a Cristo em oração", anunciou o reverendo.

Catorze-Quatro que, apenas ouvira o peido do pastor mas não percebera, se manteve pregado no acento corrido de madeira e a olhar para a “auto-cipala” que tinha acabado de fazer para brindar a amiga com quem teclava ao telefone, até que o pastor voltou a apelar, num tom mais audível e algo sério. "Irmão Catorze, abençoe a oferta, por favor".

Sem desligar o telefone, o benquisto irmão Catorze, o mais falado da congregação, elevou as mãos ao alto, antes dos habituais dois passos que separam o orador do assento, e começou a sua evocação:

- Meu Deus, mô papá, abre teus olhos e estende a tua mão aos nossos jovens. Cada dia há mais desvios. O "pirigo" está em cada esquina, em cada beco, em cada telefone, meu Jesus. Faz do teu espirito santo um pastor atento, mô papá, para nos proteger dos lobos presenciais e virtuais, mo Dedê (...) Aqui mesmo na ngelú, enquanto oramos, outros se preparam para nos devorar psicologicamente. Uns são nossos irmãos no templo e nossos inimigos na rua. Mô Dedê, sabes o tudo quanto nos falta e nos enfraquece. Derruba grilhões, retira as pedras de tropeço dos nossos caminhos… Em nome do teu filho, nosso irmão na carne, que espero me receba no seu governo celestial, te peço infinitamente. Amem!

Catorze-Quatro baixou as mãos, abriu os olhos, e ao descrever aos 180 graus, deparou-se com uma circunferência formada por jovens no seu canto preferido. Enquanto orava, a loira que do outro lado aguardava pelo "selfie", foi enfeitando o telefone do irmão Catorze-Quatro com mensagens eróticas e imagens, umas em estado animalesco e em poses “kamasutranas”, que divertiram, nos quinze minutos da sua longa petição de “perdão e abertura dos bolsos", os jovens que rápido se abeiraram das suas máquinas: um potente telefone e uma interlocutora da conversa virtual “bem calibrada” fisicamente e com tudo à mostra.

Quando se dirigiu ao assento, foi recebido com um criativo "irmão Catorze, temos de redobrar a vigilância e vergar cada vez mais o joelho, os telefones estão cheios de perigos”, ao que respondeu com um cabisbaixo “sim, irmãos. O mundo é um ‘pirigo’ permanente”, dando-se conta do "cinema sem bilhete” que proporcionou à miudagem, ao mesmo tempo que eliminava, uma após outra, as mensagens eróticas e imagens com a “cipala” e o "peito alto" da “kindoza” que se parecia a uma “kuribeka” barata e caçadora de tesouros.

"Irmão 'Pirigo'", irmão Pirigoéé?! - Zombam hoje os jovens, dentro e fora da igreja, sempre que Catorze-Quatro põe a cara fora do quintal. A sua fama ainda corre o Rangel, pois apesar do acontecimento levar já décadas, os miúdos que se tornam adolescentes e jovens ainda escrevem, e cada vez mais, em todas as ruas onde é conhecido: "por cá também passou o irmão 'Pirigo!'"

Texto publicado pelo Semanário Angolense a 19.09.2015

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

CRIANDO SOBRE A CRISE

Conversavam sobre o futuro da gestão dos seus lares, agora que a economia do país enfrenta dificuldades. Zara e Kuka são comadres e colegas de trabalho.
- Kuka, sabes quais são os princípios que uma boa administradora de casa precisa ter para cuidar bem das finanças pessoais e educar os de casa? -Questionou Zara que frequentara um curso de economia doméstica.
- Não, colega Zara. Podes explicar-me? - Kuka estava expectante, ante as conversas que ouvira durante o percurso de casa ao local de prestaçao de serviços.
- Olha bem – começou Zara. - Mapear  os alvos, as metas e a missão é de extrema importância. A isso se junta a visão que aponta o que queremos ser ou fazer e a disciplina que nos permite estarmos focados naquilo que idealizamos. É preciso também coragem e Generosidade. - Explicou à amiga que seguia com atenção.
Zara, percebi algumas coisas, mas, que tal se me deres mesmo uma lição. Sei que é mais ou menos entendida nessas coisas de economia doméstica. – Solicitou Kuka.
- Planeamento é projectar, tencionar ou elaborar um o plano. Por exemplo, queres diminuir as compras porque a receita ou o que recebes no fim do mês baixou ou o valor nominal se mantém, mas o poder de compra baixou. Nesse caso, tens de fazer um projecto de contenção de custos e eliminação de gorduras e desperdícios. – Zara ainda ai a discorrer mas a curiosidade de Kuka era tanta que voltou a interromper.
- E quê isso de gordura?
- Gordura é tudo o que é a mais e pode ser eliminado nas nossas compras. Se um par de sapatos e respectiva caixa custar mais,  deixamos a caixa e na mesma temos os sapatos. É um exemplo mas temos vários outros. É preciso gastar menos do que se ganha ou ter um equilíbrio entre o que se ganha e o que se deve gastar. Olha que o planejamento financeiro Pessoal é um plano de acção que deve acompanhar a vida das pessoas em tempos como os que se avizinham.
- Já viste, Zara? Estou a compreender aos poucos. Quer dizer que temos de pensar de forma antecipada e pensa melhor no que devemos gastar e como gastar? Devemos ser pessoas organizadas para ter sucesso financeiro na vida? Devemos fazer mais em menos tempo? –O interesse e as perguntas de Cuca pareciam não ter fim.
- Sim. É isso mesmo colega. – Confirmou Zara. - Planear é administrar com excelência. Para começar, precisamos de colocar numa folha de Excel todos os nossos rendimentos mensais e listar todas as nossas necessidades que envolvam dinheiro e distribuir em percentagens, sem nos esquecermos de uma reserva para as imprevisões. Eu já tenho a minha folha e estou a exercitar a sua implementação. - Explicou Zara.
- E qual pode ser o efeito imediato disso, Zara? - Voltou a indagar Kuka já mais familiarizada.
- Você vê, por exemplo, que só tem dez mil Kwanzas ao mês para a formação do seu menino. Com a distribuiçao de parcelas do orçamwento por rubricas, terá de encontrar um serviço compativel com o dinheiro que tem. É mais um exemplo. – Reforçou Zara. –Imagine que em sua casa vivam cinco pessoas e bebem cinco garrafas de gasosa que custam mais do que um pet de litro e meio. Se comprar o pet fica mais em conta. Já viu?
- Olha, colega, não precisas de ir mais longe na explicação. Obrigado pela aula. Vou começar por corta os nossos dois nomes: Irei cada vez menos à Zara e usarei cada vez menos a Kuka. Os apadrinhamentos, as festas, os amistosos do seu compadre ficam todos com rubricas e so acontecerão esporádicamente, caso haja cabimentaçao. Também vou começar a procura produtos alternaticvos para aqueles que estejam muito caros ou que sejam de duraçao muito reduzida. Sabes que barato, às vezes, também sai caro, nê?!  -Ironizou Kuka que estava muito feliz e pronta a transmitir os conhecomentos que obtivera às demais colegas de trabalho e à família.
- É isso mesmo, Kuka, em tempos de crise nada melhor do que criar. É só retirar o S. Comigo é: se há CRISE, CRIE! –Disse Zara, já a entrar para o seu gabinete.

sábado, 20 de agosto de 2016

À VOLTA DA VELA APAGADA


 
Nessas visitas de reconhecimento ou de "ajuda e controlo", como as chamávamos noutro tempo,  fui ver a minha prima Rosária Albano, no Morro da Luz. A velha Rosária, como a tratamos carinhosamente, é uma pessoa de paz permanente, sem os fingimentos natalícios, e está sempre a rir e a fazer sorrir os que a cercam contando cenas, umas verdadeiras e outras que inventa para entreter os sobrinhos e netinhos. No oeste de África, ela estaria próxima de uma griot.

Ainda não sei por que razão, sempre que estamos juntos, ela não se esquece de perguntar a minha idade e eu, sabendo da sátira que vem sempre da boca dela, vezes há em que aumento mais uns meses ou mesmo uns anitos, só para adoçar a conversa.

Desta vez, começou a falar sobre a idade que eu e suas filhas tínhamos quando se deu a trafulha. E dizia a velha Rosária para a Remisa, a segunda das suas filhas, que "quando chegou a trafulha ela, agora já senhora, contava com apenas dois anos, sendo que a Geny, que vem a seguir à Remisa, estava no sexto mês de gestação". E foi tudo a propósito de quem era o mais velho entre eu e as suas duas filhas em presença.

A minha atenção redobrada para a leitura correcta do seu discurso levou-me a descodificar o que chamou ela de trafulha (confusão dos movimentos, antes e depois da independência de Angola).

- Mana, eu, a trafulha já me encontrou. - Expliquei para aclarar a questão das idades.

- Você, assim, tem já quantos anos? - Questionou ela, para depois acrescentar que "só sabia da data certa do nascimento dos seus dois primeiros filhos", pois era ainda moça, e recitou as datas com dia, hora e tudo.

- A Angelina nasceu no dia 15 de Setembro de 1965. Ela e o Segunda foi quase escadinha. Criei a Angelina só um ano. No ano seguinte, 01 de Agosto de 1967, nasceu o Segunda. O Toy e o Roque (filhos de uma irmã e uma prima respectivamente) nasceram em 1968. - Acrescentou a septuagenária.

Todos seguíamos atentos, inclusive os netos dela e o meu primogênito, Mociano que se acha mais dado às contas do que às estórias, dado o seu curso de Arquitectura.

- E por que a mana se lembra da data de nascimento dos primeiros filhos e não dos outros? - Voltei a indagar, antes ainda que lhe respondesse sobre a minha idade.

- Bem, essa aqui, apontava para a Remisa, enquanto buscava outra data memorável, é a que estava nas costas quando fui ao óbito do soba Kitinu (meu avô materno e homónimo). Encontrei a Kilombu tinha parido naquele mesmo dia. Por isso, você Luciano não pode ser mais velho da Geny. - Explicou ela meio equivocada.

- Então, se a mana foi com a Remisa ao colo ao óbito do nosso avô e encontrou a mãe deu-me à luz naquele mesmo dia, sendo que a trafulha ainda não tinha começado e a Geny ainda não estava na barriga da mana, como é que ela se torna minha mais velha? Quando eu nasci, a Remisa era a nené do colo. Quando chegou a trafulha ela tinha dois ou três anos e eu um ano. A Geny que no ano da trafulha estava na barriga da mana terá nascido em 1976. Portanto, eu tenho 41 anos. A Remisa tem 43 e a Geny tem 39. - Esclareci.

A idosa que seguia atenta a minha explanação, abanando a cabeça de cima para baixo, em jeito de aprovação, ficou alguns segundos com a bola de funje a meio caminho entre o prato e a boca. A kisaka estava já fria e mesmo a pasta de bombô estava também com pouco calor.

- Quarenta e um anos tem o mano? É muito. E eu que te encontrei "te nasceram" naquele mesmo dia em que a  tua mãe foi chorar o pai dela, avô Kitinu, tenho quantos anos? Só pode ser 250 anos. - Concluiu sem aguardar por uma resposta.

A assistência, sobretudo os netos e o sobrinho, o meu filho, fizeram gosto à boca e riram-se um pouco da desconversa da idosa.

- Avó, no mundo não há pessoa viva com essa idade. – Retorquiram os adolescentes.

- Mas eu tenho 250 anos. Me levem no governo para me apresentar na televisão. Se o Luciano tem 41 anos, eu só posso ter mesmo 250. -  Reforçou a velha Rosaria, preparando-se para contar outras malambas seguidas, sempre de forma atenciosa, pela moçada que se diverte e aprende com a velha da família.

É que no meio de tanta brincadeira da anciã há sempre lições que ficam retidas sobre a forma digna de viver em comunidade e alguns relatos históricos que complementam a narração científica.

Já depois da minha retirada, contaram-me que a preleção prosseguiu com os netos que pretendiam mais detalhes sobre o que ela chama de trafulha.

E constou-me que ela contou tim tim por tim tim o quão dura foi a Luta pela Independência de Angola e qual dos três Movimentos “ficou com o povo, dando vacinas, cobertores, sal e roupas de fardo, quando os outros regressaram às matas de onde voltavam de forma relâmpago apenas para queimar tractores e pilhar galinhas”.

- Nós estávamos mbora com o Movimento do Neto que não fazia mal às pessoas. É por isso que chamo aqueles dias que antecederam e se seguiram à independência do tunda mindele como momentos de trafulha. - Concluiu a velha Rosária.

A vela, sobre a qual se formara uma roda, já tinha vivido a vida que lhe fora dada pelo fabricante. Sem energia eléctrica e sem outra vela substituta, os netos foram escapando um a um, chamados pelo sono. Ela continuava empolgada, ora recontando estórias ora intercalando adivinhas expressas no seu materno Kimbundu.

Porém, à medida que a roda ia ficando vazia, foi percebendo do passo apressado do relógio para o dia seguinte e, no final, a velha seguiu-os também.

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

A ALEGRIA DOS LUKALENSES


Lucala, aldeia que dista dezanove quilómetros da vila de Kibala, no Kwanza-Sul, é uma comunidade que sorri todos os dias, apesar da poeira e do frio que fazem dos corpos de seus aldeões autênticas telas de arte pictórica.
-Aqui, o cieiro não tem dia e se você põe creme, ainda é mais pior. - Desabafa Rosa José, visitante em situação de óbito de um irmão, mas também ela natural daquelas cercanias.
Apesar do frio que dizem se ter acentuado desde que a Fazenda Mbumba-Alunga construiu um dique de contenção de água que propicia a rega de enormes campos agricolas que fornecem batata do reino e outros agroalimentos ao mercado luandense e a algumas indústrias transformadoras, segundo o morador José António.
- É que o povo anda mais satisfeitos porque já tem trabalho e os empresários portugueses e brasileiros que cuparam as antigas fazendas também meteram cacusso no dique que já vai ajudando o povo. - Afiançou o camponês José António.
Quem se desloca a Lukala não precisa dos dados do censo de 2014 para se aperceber que mais de 70% da populaçao são crianças menores de 16 anos. Os agregados são compostos, em média, por 06 a 08 pessoas, não se contando aqueles que migraram para a vila (sede municipal) e Luanda em busca de estudos e ou melhores empregos para os homens que tentam a sorte nas construtoras ou negócios para o caso das senhoras.
- Aqui, o emprego é só mesmo na fazenda, onde o salário varia entre 10 a 12 mil Kwanzas. - Explica Nhange Manuel, empregado na Fazenda Mbumba-Alunga para acrescentar que, às vezes, uma pessoa com 05 filhos na escola, o dinheiro não chega para comprar os cadernos e os livros. Isso faz com que apesar de a Aldeia possuir uma escola com três salas de aulas que funciona em dois turnos, ministrando aulas a alunos da primeira à sexta classe, haja ainda uns que nao se trajem de batas brancas.
Em Lukala, enquanto uns se ocupam dos trabalhos na fazenda, outros tantos se ocupam da agricultura familiar, de onde provêm excedentes para o comércio. Os "kapuqueiros" também abundam e nao se coibem de o afirmar depois de umas canecadas, esfarrapadamente justificadas pelo excesso de frio julino.
- Nós, aqui, quando a frio aperta, a vida é mesmo essa: você passa num "katrungungo" e o frio bate
recochete. - Exibe-se Nhange, seis horas da manhã, já "katrungungado".
A pesca na albufeira da fazenda e outros biscates como o derrube de árvores para a queima de carvão, estiva de cargas diversas ou fabrico de adobes sao as fontes de rendimento dos lukalenses que optam pela queima da vida no vício alcoólico.
Fruto do surgimento de pequenos empregos agricolas e pequenos "negócios à beira da estrada" ja se vêem alguns sinais de consumismo e modismo. As antenas parabólicas vao substituindo os seroes à batucada e "xirimina" (folguedos com cançoes acompanhadas de guitarras).  Os geradores de electricidade roncam teimosos noite adentro aos fins de semana e os jovens se inspiram nos mesmos herois e vilões das grandes cidades do pais e do mundo. A "lampiagem" também faz morada em Lukala, nao se aonselhando que o visitante se distraia mantendo as portas da viatura abertas ou os pertences expostos aos olhos dos "amigos do alheio".
Quase que a copiar o verde dos talhoes cobertos de  batata do reino, regadas por pivots um campo para os trumunos se apresenta a escassos metros da escola do primeiro ciclo do ensino primário. Os jovens com vivência luandina que para aí se deslocam, chamam-no de "capinzado" em alusão ao capim selecionado para substituir a relva habitual nos campos de futebol. Para as balizas, três paus, sendo dois verticais e um pregado horizontalmente, completam o "imobiliário. Não há demarcação com cal mas os caminhos trilhados para além do "capinzal" fazem as fronteiras entre a área onde a bola é jogável e onde se consodera "bola morta".
Os ngulos, os cabritos e os bovídeos partilham a mesma água da albufeira o que torna vulnerável a saúde dos aldeoes que precisam de percorrer cinco quilómetros até ao Posto médico de Mungango ou os 19 quilómetros que separam Lukala ao Hospital Municial de "Kpala kya Samba".
Mesmo entre o que há e o que ainda falta, o povo sorri, porque afinal de contas há um bem supremo que é um facto.
- A paz que estamos com ela já nos faz viver com tranquilidade e construir nossas casas
sem medo de ser forçado a mudar para outra zona. Agora é só mesmo adobe e chapas que estamos a usar na construção. - Rematou António Katumbila, o soba da aldeia. 


 NOTA- Publicado pelo Semanario Angolense de 11 de Julho de 2015.

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

APRESENTAÇAO DO VOL II "RETRATOS DO LIBOLO" INSERTO NO PROJETO LIBOLO

APRESENTAÇAO DO VOL II "RETRATOS DO LIBOLO" INSERTO NO PROJETO LIBOLO

Quando somos dos últimos a falar, ou acertamos, completando o que não foi ainda dito, ou corremos o risco de ser redundante que deve ser a figura em que mais me enquadro. Porém, é também sabido que "o que ambunda não prejudica".

Senhoras e Senhores,

Excelências

É com grande honra que subo a esse palanque para uma missão difícil que é a de tentar apresentar o segundo volume da Obra Retratos do Libolo, inserida no "Projeto Libolo". Na verdade a obra já foi apresentada pelos autores e tudo o que farei será apontar alguns tópicos para aguçar a curiosidade de quem a vai ler.

Mais difícil ainda se torna a minha missão, por secundar uma figura incontornável da nossa literatura e intelectualidade libolense e nacional, o escritor Jaques Arlindo dos Santos.

Relutante, mas honrado, acedi ao convite e ao desafio, pois sou filho dessa terra e por ela também me tenho esforçado em dar-lhe a visibilidade e o conhecimento que merece na esfera nacional e internacional.

Carlos Filipe Guimarães Figueiredo é um amigo que a Ciência e as redes sociais me apresentaram. O Libolo, nossa terra, é apenas o ponto de partida e de chegada.

Imaginem, prezadas Senhoras e Senhores, ele em Macau ou Brasil e eu num distante Catoca, Lunda Sul, onde prestava Serviço.

A abordagem de temas comuns sobre a angolanidade e o nosso Libolo fez-nos próximos e aqui estamos.

Em Retratos do Libolo, Carlos Figueiredo que de forma destemida e desapaixonada (¿) palmilhou o território que se encontra entre os rios Luinga, Longa e Kwanza bem como a Estrada Nacional 120, apresenta-nos aspectos como a Geografia,  o relevo a Hidrografia e seus recursos, o clima, o solo, a fauna e a flora, o café do Libolo, e até insectos típicos.

No livro, encontramos ainda aspectos sociológicos, e históricos. Foi bom ler, por exemplo, que os nossos ancestrais foram os últimos a ser vencidos (mas não convencidos) pelos colonizadores. E já ia a findar a I Guerra Mundial.

As comunas de Kalulu, Kabuta, Munenga e Kisongu bem como as suas principais aldeias foram todas descritas  e fotografadas constituindo-se esse livro num documento de elevada importância histórica, social, antropológica e cultural.

- Haverá em Angola, nosso país, uma região, um município que tenha merecido tão detalhada radiografia?

Os meus conhecimentos, até agora, dizem que não.

E, ainda bem que somos os primeiros, pois sempre estivemos na fila de frente. Na resistência à ocupação colonial, no desenvolvimento das forças produtivas, na luta pela independência e agora na busca do conhecimento e valorização da Nossa Terra.

- Quem de entre vós conhece a Pedra Escrita de Kasala-Sala, com registo histórico, e outra que fica entre a Munenga e Lususu?

- Quem já visitou Kituma, Kuteka, Kabuta, Kitila, Kambaw, Kakulu-Kabasa, a Missão Católica e seu internato e a nossa Fortaleza da Liberdade?

Kalulenses, Libolenses, Kwanza-Sulinos, Angolanos e porque não os nossos amigos brasileiros que nos ajudam a conhecer o Libolo?!

O Libolo hoje é manchete na media nacional e internacional por causa do Clube Recreativo do Libolo, o que nos orgulha. Porém, há muito mais Libolo para a além do Desporto. Há um carnaval histórico. Há arte e imaginação. Há muluvu no Musende, Wala de Muxiri no Kisongu e carne de paca no Mukongu. Em todo o Libolo há um Kimbundu que flui e ritos de passagem para os rapazes. Há caçadas,  há namoro, o mesmo namoro que encantou Viriato da Cruz na sua carta em papel perfumado... Há casamentos e há divórcios também. Divórcio com o pensamento arcaico e despido de verdade científica.

Excelências,

Tudo o que vos disse não representa sequer um milésimo do que a obra nos proporciona, sendo que o melhor mesmo é adquiri-la e, com ela, imergir no tempo, nas comunidades, no chilrear das aves e farfalhar dos matagais.

Eventualmente alguém me pergunte:

- Será que estamos perante uma Bela sem senão?

Aqui, a minha resposta é peremptória: A minha sensibilidade artística e científica não consegue encontrar espinhos entre a Rosa que me foi dada a ler e a apresentar.

- É um trabalho de todo acabado?

A História, a cultura, as artes e tudo mais que envolvem um povo como o nosso, não se esgotam em dois livros. Os jovens nas suas aventuras e trabalhos académicos, os cientistas sociais do Libolo, no Libolo e na sua diáspora, os intelectuais de outros países como os amigos académicos brasileiro e macaenses que já vêm desvendando o Libolo, devem dar sequência. Devem complementar esses estudos que, repito, são de incomensurável valia e relevância.

Permitam-me fazer uma vênia aos patrocinadores cuja aposta propiciou o arranque deste Projecto. A eles se agradece e se pede coragem e continuidade de apoios para que tenhamos mais e melhores conhecimentos sobre o Libolo. Quem sabe, agora mapear e descrever os locais de interesse turístico e outros locais históricos?
E, despeço-me com uma breve que li recentemente, do meu amigo e também Lubolu-descendente, Drumond Jaime: “Enquanto mais conhecemos a Nossa Terra, maior é o orgulho de a Ela pertencermos”.

Muito obrigado pela vossa atenção.

Soberano Canhanga

Kalulu, Lubolu, 10.07.2016