segunda-feira, 20 de junho de 2016

O ESCURINHO DE BOTOMONA



O homem vinha cansado e saudoso dos seus. Marcava o tripper da sua viatura 948 quilómetros percorridos. Havia feito mais de catorze horas ao volante e perto de dez paragens, entre aquelas orientadas para a fiscalização preventiva do veículo e do seu condutor, ele no caso, e outras em que simplesmente abrandou para saudar as autoridades rodoviárias, falar sobre o percurso e reportar o que de importante encontrara ao longo do trajecto.

Botomona, ficava a menos de 70 quilómetros do destino e já sentia o cheiro do peixe banana que a mulher preparara para o seu jantar.

O Escurinho (nome de ocasião), dois riscos no ombro, altura de basquetebolista e negrura de mostrar apenas os olhos e os dentes quando falasse à noite, estava dum lado e do outro o interpelado Mona a Chico, o viajante.

- Boa noite, senhor automobilista. – Saudou Escurinho, depois da devida sinalização para abrandamento e acostamento da Maria (viatura).

- Boa noite chefe. - Respondeu Mona a Chico, esperando pelas perguntas da praxe cujas respostas tinha já decorado.

Do nordesta a Botomona, não se tinha deparado com acidente ou incidente digno de realce. Apenas ferro retorcido já com curva de idade que as queimadas do capim iam destapando à beira da rodovia.

- De onde vem e como está a ser a viagem? – Voltou a questionar o sargento da polícia rodoviária.

- Venho do nordeste e não me deparei, ao longo dos quase mil quilómetros com incidente ou acidente grave. Apenas a estrada é que vai cedendo aos buracos. Os vossos colegas, em todas as províncias por onde passei, também estão com uma atitude preventiva irrepreensivel. - Elogiou o condutor, enquanto juntava a papelada.

- Sim. Por cá, é por causa da peregrinação à Muxima.- Justificou Escurinho.


O interpelado exibiu os documentos da viatura e os dele e ligou-se à rádio desportiva para acompanhar os resultados da ronda do Girabola. Havia já hora e meia que apenas se ouvia música e vinheta sem locutor para anunciar os resultados da ronda ou a hora que corria ao desgosto dos expectantes amantes da bola na relva.
- Alguém vai "mamar pastilha" na rádio Meia Dúzia! - Disse para si mesmo. Se calhar o locutor substituto da tarde desportiva se tinha ausentado sem que o substituto chegasse, acrescentou em suerdina.

Mona a Chico era conhecedor das andanças da Rádio e estava familiarizado com aquilo. Pena foi não ter ninguém no carro para ouvir o seu esperiente desabafo, para além da própria "Maria" (viatura) com quem conversara durante todo o trajecto. E não tardou para que o interlocutor fardado que fiscalizava os documentos aparecesse com outra questão.
- O seu seguro está caducado e isso dá multa. – Disse ele, com o bloco de notificações e esferográfica à mostra, em sinal de força persuasiva.

- Repare bem, senhor sargento. Renovei o seguro contra terceiros em Maio deste ano e vai até 2016. – Disse-lhe Mona a Chico, exibindo o certificado.

O homem da estrada acendeu a lanterna, confirmou e desculpou-se. Mas sacou da cartola outro gato.

- Onde está a taxa de circulação, senhor automobilista?

Já a desconfiar que havia gato escondido com rabo de fora, o interpelado ganhou coragem e decidiu explicar’-se tim-tim por tim-tim.

 - Senhor Sargento, comprei o carro em Fevereiro deste ano e, tanto quanto sei, o seguro obrigatório tem a ver com o ano derradeiro.

- Mas o livrete tem a data de Novembro de 2014. - Voltou a colocar o homem, aparentemente sedento de alguma inconfissão.

Com a paciência já em falta o "amigo da estrada" sacou da factura e da guia de entrega da viatura pela concessionária e juntou aos documentos em posse do fiscalizador.

- Chefe, eis os documentos de compra. Aqui tem a data em que o carro saiu do parque para a estrada...

O homem, farda azul escuro e colecte reflector verde com barras alface, marcou dois passos atrás, acendeu novamente a lanterna, rodopiou sobre si mesmo e voltou a tirar a sua última cartada.

- Tem mala no banco traseiro que em termos do novo código é bagagem. Está em conflito com o artigo 56 e vou ter de multá-lo.
Habituado a tratar a estrada por tu, quer na sua viatura quer em boleias, aquela colocação do fiscalizador, parecia ter caído dum planeta ainda em estudo. Mona-a-Chico teve de sorver ar fresco, daquela brisa que se forma entre o Atlantico e o Kwanza, para ganhar força e continuar o debate que quase lhe ia algibeira adentro.
- Posso ver a letra do artigo? – Solicitou Mona a Chico, já aborrecido mas sem o demonstrar no discurso.  

O polícia titubeou por algum tempo, procurando por uma resposta que soltou segundos depois. Quase um minuto de gagueira.

- Não tenho aqui o codigo, mas o senhor devia saber. – Atirou com alguma rudeza discursiva Escurinho que se mantinha focado no seu "pente". Afinal tinha chegado o "sábado da boda" e todo o grão que se podesse angariar faria bom serviço ao "papo".
 

- Senhor polícia, confesso-lhe que não conheço a letra do artigo que citou pois não trabalho com essa matéria e nunca mo disseram, pois conduzo há já muitos anos e mesmo hoje parei diante de seus colegas mais de dez vezes, sem que me tivessem falado no tal artigo 56. Por ventura, o senhor pode exibi-lo para convencer o cidadão?
O  Senhor deve ter de cor ou exibi-lo em texto documental. Nao é o que diz a constituição? Quando se tiver de multar ou prender o cidadão tem de ser convenientemente esclarecido sobre as razões da sanção. Ou deixou de ser assim?! – Jogou Mona-a-Chico o que lhe parecia ser o último argumento para se livrar daquela isca.

O  Senhor é que deve ter de cor ou exibir em texto documental para convencer o cidadão. Nao é o que diz a constituição? Quando se tiver de multar ou prender o cidadão tem de ser convenientemente esclarecido sobre as razões da sanção. Ou deixou de ser assim?! – Tentou convencê-lo Mona a Chico.
Encostado à estrada (noutras circunstâncias seria à parede daquela antiga igreja em reuínas em Botomona), o homem saltou a linha da força dos argumentos racionais e passou para o lado da razão da força.

- Ou o Senhor assinas a notificação (que ainda não tinha passado) ou vou te prender por desacato à ordem. – Ameaçou Escurinho autoritário.

 
-
- Deste jeito, não assinarei a notificação que ameaça preencher e se me prender saiba já que quando o carcereiro abrir a porta para me soltar da cela, você estará entrando nela. - Disse o condutor, já com paciência aos retalhos, o que fez abrandar a postura ameaçadora do fiscal de trânsito.
- O Senhor é polícia ou militar? - Recuou o fiscalizador que aproveitou chamar um colega, um risco em cada ombro, para ir "explicar no senhor" o artigo 56 do codigo de estrada de Angola.

Quando o segundo homem de farda azul, mais polido, se apresentou, o automobilista tinha ao telefone um oficial general da corporação a quem estava a reportar a interpelaçao, a ameaça de multa e a ausência do citado artigo 56 que "proibe o transporte de sequer uma mala de roupa no banco traseiro de uma pick up de cabine dupla".
- Chefe, tenho mala no banco da trás da pick up e o sargento regulador diz-me que me vai multar por transgressão ao artigo 56 do código, chefe, já que ele não tem, pode dizer-me se tal colocação é verdadeira?

O telefone estava em viva voz. Ali mesmo, os homens que cuidam da segurança das pessoas e dos bens trocaram, trocaram cortesias e senhas parta que pudessem certificar-se de que não era um impostor na linha.

Sem mais palavras, o automobilista viu os seus documentos devolvidos pelo sargento de uma risca, o mais polido.
- Será mesmo que não se tem transportado nem um saquinho de compras no banco de trás? - Questionou o automobilista, em jeito de retirada, ao segundo homem, recebendo desse apenas um cordial aperto de mão e um "boa viagem, amigo automobilista".

 
 Texto publicado no Semanário Angolense de 26.09.2015

sexta-feira, 10 de junho de 2016

KISÂNGWA DE GENGIBRE


Há alguns anos., não muitos anos ainda, quando chutávamos despreocupadamente à bola de trapos ou outro objecto qualquer para aliviar a distância de casa à escola do povo, no dizer das crianças, eram as tias das panelas grandes e brilhantes ao sol de Abril e canecas, também de alumínio brilhante como nunca, quem vendiam kisângwa adocicada com que empurrávamos pedaços de bolinho ou galetes estômago adentro. Só elas também eram vistas a comprar e vender aos pedacitos o famigerado gengibre. As kotas e os tios que pegavam em pedaços de cola, carregada de acidez, ou gengibre ajindungado eram rapidamente rotulados de langas ou outro ganhavam outros epítetos menos honrosos.

- Esse kota deve ser retrô! (alusão aos retornados angolanos, depois de exilio em país vizinho) - Dizia-se em surdina ou num canto distante colado ao ouvido do companheiro.

- Xê pioneiro, cuidado com a língua. Se o mano te ouve vai te dar kibetu ou dar parte na tua mãe. Não queremos bandidos no bairro. - Advertiam as senhoras da Kisangwa, sempre maternalistas, mas também policiais, vigiando-nos quase milimetricamente para não descarrilarmos.

Meninos da kangonya e diazepam como hoje quase não havia, tirando aqueles incorrigíveis pela simples censura colectiva, que eram já designados como #os perdidos gregos#, cuja surra do dia a dia era para eles elogio. Esses sim, eram detestados pela comunidade e até mesmo pelas próprias mães cujo amor que diziam sentir era só de fingimento.

Nas caminhadas, o sol, a poeira, as basulas, só para aborrecer o amigo e companheiro quando se estivesse já próximo de casa, vindos da escola, caminhavam connosco abraçados. Era ao abeirar-se da porta do quintal que a basula ao companheiro se fazia presente, sendo mimoseado com um vai pra aquilo ou uma pedra a beijar o ferro duro do portão.

- Amanhã vou te apanhar na escola, vais ver só, seu feio e faquiri duma figa! - Consolava-se o ofendido. Mas tudo ficava por aí. O dia seguinte seria de outras cumplicidades na fila do apinhado depósito de pão, nas trambiquices da bola no pelado, das inconfessáveis praias no Bungo ou Chicala de que as mães raramente desconfiavam e da cooperação na resolução dos problemas matemáticos da tarefa escolar.

Naquele tempo, de pouco ter e muita procura do ser e da honradez, o lixo não era amigo. Não nos visitava tanto a ponto de connosco pretender morar. O consumismo e a descartabilidade estavam ainda noutros dicionários não acessíveis a todos os angolanos do cartão da loja do povo e das filas nos talhos. Pedaços de madeira descartados no serviço atendiam o carpinteiro dos banquinhos para as tias das kitandas e da Kisângwa à porta de casa ou da escola. Latas de leite eram carteiras quando não faziam panelas chiar nas casas em que a palha da serração fazia o papel de gás e carvão. Até as escolas tinham-nas em quantidade e qualidade que se traduzia nas marcas onde o nido se destacava.
- Xê, fila da goda! Vocês tomaram nido no mês passado? Tô pai já gasta nas lojas francas ou viajou pro estrangeiro? - Perguntavam os petizes habituados a ver o colega sentado numa lata de marca corriqueira. A atenção dos rapazes, sobretudo, em relação às novidades dos colegas era tão grande que quem aparecesse com roupa ou sapatos novos era logo brindado com felicitações amistosas.
- Xeye, fulano chamou! São novos ou do Asão? Perguntavam, referindo-se ao mercado do Asa Branca, ao Cazenga, que se tornou célebre por aí ser comercializada muita roupa e calçados usados, doados por organizações não governamentais.

Os papelões tinham uma utilidade qualquer. O ferro, mesmo retorcido, servia para as faças fogareiros e outros artefactos. Os pedaços de chumbo também eram reciclados e davam forma a outros objectos como os que davam peso às redes de pescadores da saveia, matona e lambula. As latas de salsichas e de óleo maná (alimentar) serviam para candeeiros que se expunham em lojas de referência e cantinas, depois de passadas pela arte do funileiro. Até as garrafas de vinho e cerveja eram cuidadas para serem devolvidas inteiras ao revendedor e à fábrica quando não recortadas com engenho para servirem de copos.

A mizangala desocupada não se kangonyava ainda como hoje. Apenas se kacilingavam (do umbundu kacilingi cimwe) os kotas sem arcaboiços para convencer as manas mais vistosas do bairro. Outros se kapukavam de reco-reco cinquenta ou búlgaro cem Kwanzas. Algumas manas sobradas, por causa da vida fácil com os cooperas regressados à estranja, se migostavam para prender os kotas regressados ou fugidos da vida Kwemba e que procuravam recuperar a vida perdida. Mas eram poucas as mulheres que se entregavam à vida fácil entretidas nas latarias dos cubilas e grades de cerveja dos francós das lojas francas. As jovens queriam e procuravam mesmo era homem para as manter e formar família.

- Vais me fazer pedido com todos os deveres? - Questionavam ao que o cavalheiro candidato respondia com acções e não com as palavras de hoje que o vento leva.

Fora do acompanhamento à kisângwa, os kotas não se gengibravam como hoje, ao que dizem, para calibrar o divumo (diminuir o tamanho do tanque) e aumentar a potência da torneira. Caminhavam sem esforço e nem reforço. Trepavam montanhas sem tração. Era a força das caminhadas longas, sem táxi nem dinheiro para autocarros que os fazia fortes e valentes. E conseguiam convencer e atender até a Zaida Kimbundaria do romance do Ismael Mateus. 

Hoje, tempos do corre-corre, do tenho e proponho, até ngongwenya de gengibre já há.
- Compra gengibre para não usar táctica do galo, subiu e desceu! – Convidam as vendedeiras espalhadas pelas ruas da urbe.

E lá vamos introduzindo na dieta um novo elemento ajindungado, mas também açucarado. É farinha de gengibre. É sumo de gengibre substituindo a kisângwa. É refogado com gengibre... E quão gostoso ele é?!

quarta-feira, 1 de junho de 2016

CUANDO CUBANGO: TERRA QUENTE




No dia 17 de Fevereiro, a temperatura máxima foi de 34 graus. Há alguns anos eram as bazucas e o tri-tri-tri das kalashenikovs mortíferas que aqueciam as "terras do fim do mundo", hoje rebaptizadas por "terras do progresso" que é visível nos rostos das pessoas e nas margens das estradas onde despontam novos edifícios construídos de raiz e outros coloniais que depois de estropiados, beneficiaram de restauro e ou ampliação.

Onde haja muita utilização de cimento, ferro, pedra, areia e tinta há crescimento. Governo e particulares vão fazendo a sua parte. O primeiro investe na habitação e instalações para prestar serviços básicos como educação, saúde e água, ao passo que os cidadãos com algum capital financeiro vão igualmente investindo em serviços e comércio. As ruas largas de Menongue estão semaforizadas e o Cuebe "assiste" apressado a sua ponte histórica em reparação. O palácio do governador confirmou o nome e uma nova cidade se ergue na saída para a comuna de Caiundo.
Dizia-se no tempo da guerra pós-independência que em Caiundo só havia porta de entrada e não a de saída. Aqui, na província do KK, a rebelião tinha a sua base central, Njamba, e os sul-africanos de aparthaid que apoiavam os insurrectos não se cansavam de despejar bombas, medo e terror sobre os angolanos. Basta ver, aí onde a simples reparação não atende, como ficaram os imóveis bombardeados ou dinamitados.
Um ex-Fapla do Ebo dizia mesmo:
"Em Caiundo, fomos e voltamos. Não brinca. Eu e o comandante Kuluzele (Cruz), AK nas costas e pistola silenciosa na mão, só pólvora e 'candáver'. Vai lá se regressas seu mabeco"...
Felizmente, são estórias do passado que ficam para a história. Hoje, a preocupação é outra. É atrair cérebros enquanto se vão formando homens e mulheres locais nos vários institutos médios e na nova universidade pública criada para Cuando Cubango e Cunene. É trazer tudo o que haja de melhor para essas terras que não devem nada às outras regiões angolanas afastadas do Litoral. A pequena indústria vai engatinhando e com a reabilitação do Caminho-de-Ferro do Namibe, reconstrução e construção de novas rodovias, os turistas e empreendedores vão chegando dia sim, semana também.
Eis-me na continuação da EN 140 que vai de Menongue ao Caiundo.
Redijo este apontamento no espaço em que o governo publicita a construção de mil residências sociais. A empreitada ainda não está terminada mas há já casas concluídas e habitadas, umas em acabamentos e outras em início de construção.

 

 Antes que me esqueça, um puxão às orelhas dos condutores imprudentes. As estradas são para a vida, para delas desfrutarmos os benefícios da paz e não para a morte.

Desafiem as estradas mas nunca a vida que é única. Há muito país por ser descoberto sobre rodas.
Não gostei de ver a forma como ficou o Toyota corolla (nas imagens) que trafegava no trajecto Menongue-Cuito Cuanavale e que ceifou quatro vidas. Contaram-me que "uma camioneta Mitsubish Canter que ia a frente do corolla preparava-se para virar a esquerda, tendo o turismo ido ao seu encontro".

 Ali mesmo, tufas. Nem só um "ai ué". - Contaram os testemunhas oculares que removiam os restos da viatura.
Depois do estrondo, apenas um silêncio total. Foi a 19 de Fevereiro 2015.
E como na estrada nem tudo é tristeza, mostro as imagens do campo relvado da comuna do Longa, município do Cuito Cuanavale, a meio caminho entre a histórica vila e a cidade capital do Kwangu nyi Kuvangu.

 

sexta-feira, 20 de maio de 2016

(RE)CONHECENDO ANGOLA

- Afilhado, se um dia fores à Huila, não te esqueças de chegar às cascatas da Huila. Sou comandante da esquadra comunal. A cascata é, para além do Cristo Rei, Fendas da Tundavala, Serra da Leba e Serra da Xela (Chela), um dos melhores locais para visitar e arregalar os olhos. - Disse-me o padrinho, numa conversa havida há já dois meses.

Chegadas as férias, preparei a "Maria" (nome da carrinha) e fiz-me à estrada: Lwanda-Sumbe-Kanjala-Lopito-Mbengela-Xongoloy-Kilenges-Luvango (Morro da Xela, Cristo Rei, Humpata, Serra da Leba, Tundavala)Xibya, Mercado das Mangueiras (Namibe), Luvango. Confira as estórias

Perto de mil quilómetros da capital de Angola à capital da Huila, a caminho do alto e montanhoso Sul do país. Entre troços recomendáveis e outros que quase nos cortam a respiração, ante a presença brusca de buracos assassinos, desfiz-me de Lwanda-cidade até à ponte erguida sobre o caudaloso e manso Kwanza, a afogar-se no largo Atlântico. É a cobrança de portagem que me desperta a atenção.

- Tomara que de trezentos em trezentos quilómetros houvesse essa forma de levar dinheiro ao cofre do Estado. Andámos a reclamar que as estradas estão más, quando pagamos pouco ou quase nada para as manter. - Atirei ao meu canino amigo e, mais uma vez, companheiro de viagem. Este concordou e a viagem ganhou motivo de conversa: as portagens necessárias e os impostos devidos ao Estado.

- Que tal também uma cobrança de portagem na ponte sobre o Kwanza, junto à localidade de Kabala? É recente, imponente e, tarde ou cedo, carecerá de manutenção. - Atirou Martins, em jeito de provocação, sem se dar conta que os Kz 210.00 pagos na portagem não tinham sido facturados. O Estado fora aldrabado pelo funcionário e nós, distraídos, limitamo-nos a avançar sem cobrar a nota de facturação.

- No regresso, temos de pedir a factura e se o homem for o mesmo, terá de nos passar o documento em falta. É preciso que alguém se lembre disso. A ponte tem de fazer o seu pé-de-meia nesses tempos de verdinhas raras. – Complementei.

Viagem turística é para ver tudo à volta e à beira da estrada. Mas quando a rodovia nos convida para testarmos a potência do motor e a nossa aptidão, somente os sinais de trânsito nos impedem de baixar em demasia o acelerador: visibilidade, condições da via, estado técnico do meio e atenção redobrada são condimentos para uma condução defensiva. Assim aprendi num curso em Catoca.

Não tardou chegar ao Longa, Porto Amboim (onde o sol nos convidava para uma praia que ficou adiada para uma próxima digressão), rio Keve (onde o bagre fumado, à mostra na kitanda ribeirinha, faz verter água na boca faminta de quem deixou Lwanda sem tomar o mata-bicho). Daqui ao Sumbe foram dois assobios.

Calmo, mas sempre perigoso, o monte do Xingo (pescoço? De quem seria?) apresentava-se valentão até para os mais destemidos do volante e acelerador. Mudança intermédia, entre força e velocidade, com o travão sempre a meio. Ao entrar para a antiga cidade de Novo Redondo, a Maria apresentava o depósito a meio e teve de ser alimentada.

Já a sair, surgem casas sobrepostas na montanha que atende pelo nome do Médico-Guerrilheiro do Glorioso M. Uma fenda se presta a engoli-las a qualquer hora desses dias pluviosos. As casas erguidas em degraus sulcados sobre o monte argiloso apresentavam um semblante tristonho e medonho. O motoqueiro abordado não hesita em apresentar-nos o bairro.

- Aqui é no Américo Boa Vida. – Disse empolgado.

Olhei para o Martins que aproveitou a paragem para se aliviar da ureia e joguei rasteiro:

- O camarada Ngola Kimbanda merecia um chará mais organizado. Aqui não vislumbro boa vida. Olha para aquela casa abandonada, com a lateral desabada e sem acesso?

Colhemos as imagens possíveis e cavamos. Uma fomezita se fazia anunciar. Teríamos de resistir até Kanjala onde "as bombas e dinamites que despedaçaram a ponte sobre o rio que  dá nome à localidade não meteram medo ao povo unido" que ali fixou residência e sempre fez o seu negócio agroalimentar. Deslizamos sobre a nova travessia, também ela construída à base de ferro e betão, mostrando aos amigos da pólvora que o país se faz com trabalho.

- Kanjala é fome pequena. - Explicou Miqui, a jovem que disse ter nascido e crescido na aldeia, mas num tempo já de poucas refregas. Sobre os autores da barbárie contra as pessoas, os edifícios e a ponte, Miqui, aparentemente bem avisada e disposta apenas a servir o seu pirão que mata a fome, preferiu não comentar.

- Ó mano, nesses tempos os pais já não andam mais a falar sobre essas coisas. Quando nasci a ponte já estava na água e nunca me disseram quem foi que a partiu. – Esquivou-se ela da provocação, destapando as panelas que reluziam ao sol. Mas é já ao nos despedirmos que Miqui solta um detalhe: estão a ver aquela "kamunda, katito, tito" (montículo pequenino pequenino), é ali que se escondiam.

- Mas, que fome tinham os homens da pólvora que em vez de procurarem por comida a descarregaram sobre a ponte? – Indagou o Martins, cuja resposta ainda aguarda.

O peso do pirão com kalulú, que não tinha peixe seco, fez pressão sobre o pedal acelerador e não tardou chegarmos ao Lopito que me surpreendeu com a estátua que representa um camionista que abraça numa mão o volante e noutra a kalashenikov. O jardim que enfeita a rotunda está minimamente cuidado, tirando os zungueiros e as crianças que jogavam despreocupadas a sua garrafinha por cima da relva. Consultada a placa sobre o monumento, diz tratar-se de uma “homenagem aos motoristas e ajudantes que de 1975 a 2002 ajudaram o povo e o poder instituído a levar mantimentos a todos os cantos do país”. Fiz-me à câmara e, por pouco pediria o livro da cidade para deixar o meu assentimento: "Homenagem merecida". Mas livro não havia nem tempo. Mbengela (Benguela) chamáva-nos apressada pois havia encontro “cirúrgico” combinado com o primo Casemiro, cuja casa devia conhecer. E o encontro foi no Hospital Provincial que registava um dia de pouca agitação.

Sol ardente, sede a cobrar água para os lábios ressequidos. Bem próximo do Hospital, a Morena cobiçava-nos desejosa para farfalharmos as suas areias brancas e águas límpidas. Resistimos: “Ficas na agenda, ó Praia Morena”.

Não vi o vermelho das acácias, se calhar por não estarem na rodovia que me conduziu ao Xongoloy (Chongoroi). Antes, no primeiro desvio para o Wuambu (Huambo), mulheres de pastores de bovídeos exibem o “mahini”. Aqui tratam-no apenas por leite azedo e não exactamente mahini como no sul. Cardealmente, estávamos ainda no oeste e não taxativamente no sul como os nortenhos de pouca instrução catalogam os que nasceram abaixo do Kwanza. Não tardou surgir a vila que nos recebeu debaixo de chuva grossa.

 - Atenção, compadre, à ponte! Tem uma faixa vedada à circulação. Que terá havido? – A pergunta do Martins ficou perdida no roncar da Maria que pelejava contra a distância enquanto eu tinha como adversários os intrusos assassinos e o asfalto molhado.

Com o sol a namorar o mar, um controlo policial desperta a nossa atenção. À meia-distância estava uma ponte metálica prestes a ruir. Um trilho lateral indicava-nos que uma outra fora levada pela fúria da água. Levantando o rosto fui agraciado com a expressão, “Seja benvindo à província da Huila”. Estávamos a adentrar o município de Kilenges (Quilengues), cuja vila se apresenta bem cuidada e asseada. A administração municipal tem no entorno um jardim com representação de espécies da nossa fauna. Antes, um parque infantil atende pelo nome de Jacaré. O templo católico, a caminho do duo centenário, também se mostra alegre e decorado. Fazer fotos se mostrou irresistível.

- Sejam bem-vindos ao nosso município e desfrutem das belezas da Huila. – Gritou-se do outro lado da estrada, ao que fomos agradecer e perguntar se se objectava a colecta de imagens.

- Turismo sem fotos é como casamento sem filhos. – Disse irónico o mano de Kilenges, sempre com um sorriso nos lábios.

Entre Kilenges e Luvangu (Lubango), está Hoke (Hoque), comuna que eterniza um valente comandante das forças armadas angolanas, tombado em missão patriótica. Simione Mukune é o nome do bairro que fica depois do ponteco. O local, contam os moradores, tem dado, em tempo chuvoso, dores de cabeça aos automobilistas e governantes.

- Por cá passam muitas viaturas que vão ao Kunene (Cunene), Namíbia, Moçâmedes e outros destinos, procedentes do norte (Luanda, Benguela, Huambo, etc.). – Contou Zito, um jovem que se apressava em pedir boleia para Luvangu.

Debaixo de um céu já sem sol, ligo o rádio e a música nos convidava: “Vem, vem, vem| Vem conhecer Luvangu| Luvangu te espera”... A cidade era um clarão abraçado pela estátua Real implantada sobre o alto da Cela (Chela).

- Chegamos, compadre. Estás a ver aquele cerco montanhoso? É mesmo ali. Já lá estive por duas vezes em missões de serviço. – Atirei ao Martins que não conseguiu disfarçar a sua alegria.

- Finalmente, Luvango!

O medidor de distância apontava: mais de novecentos quilómetros percorridos entre Luanda e a cidade erguida sobre o sopé do monte da Cela (Chela). 

Antes da hospedagem, entendemos estudar as suas quatro principais saídas rodoviárias. Namibe, Fenda da Tundavala, Kunene e Wambu.

CARTA AO AVÔ KAZENZA

A chegada à casa do nosso anfitrião não foi dificil. A indicação que levávamos era para “ir à polícia e pedir ajuda”. Diligentes e atenciosos, os homens da farda azul  cuidaram de nos acompanhar até à vivenda que ocupa um dos nobres espaços da rua Nossa Senhora do Monte. Antes, pelo caminho, o carro policial pára e recolhe um casal que caminhava sobre a chuva.

- Já não se fazem polícias como esses! – Exclamei.

Vim a saber que aquela rua tinha registado nos últimos dias alguns crimes contra cidadãos que se fizeram a caminho no silêncio da noite. Era por aquela e outras razões que merecia constante patrulhamento e atenção redobrada aos cidadãos.

Cansado, devido a viagem, é debaixo da colcha que redijo a carta para o meu avô Kazenza, cujo neto, destacado na Huila para uma missão de Estado, nos acolhia em sua residência oficial.

Contaram-me. Não te ouvi dize-lo, pois era infante, que apreciavas tanto o teu filho varão que chegaste a descreve-lo como alguém tão culto, tão culto, que "escrevia até debaixo de água". Também me contaram que dizias às pessoas que a tua nora era tão linda e tão cabeluda que "estando na cozinha, a transa se estendia até à sala".
Ouvi ainda que o avô Soares Kazenza, pai de Nzunba, a senhora que me cuidava nas ausências da minha progenitora e me defendia d...as porradas de Kilombo, também era um filósofo e curioso, chegando a desmontar um rádio para ver quem lá estava. Essa estória já a escrevi no meu "O sonho de Kaúia".

Sou o filho daquela tua filha (sobrinha) que por pouco te copiava na imaginaçao e ficção, a Kilombo do Kitinu.
Avô, é verdade que quando já velhinho, regressado ao Kuteka, metias milho na entrada da tua casota para apanhar a primeira galinha que procurasse encher o papo? Ouvi isso.
Disseram que o avô fechava de imediato a porta com a bengala que te ajudava a andar e os aldeões, que muito te amavam e respeitavam, apenas se apercebiam do sumiço do galináceo quando se deparassem com as penas.

Partiste sem que bebesse da tua fonte, avô. Seguiste o Kitinu sem que eu tivesse idade para te ouvir e te retratar suficientemente nas minhas crónicas.
Tenho, porém, uma mensagem para te dar, avó, que será na variante do teu Kimbundu de Kuteka.

Akuku! Omon'a, Nzumba, wakiti. Manu Sabalu-a-Soba, uku amundumisa ku tuma, fuka yenene. Kekayo! (Avô! A tua filha, Nzumba, tem um filho honrado. O mano Sabalo, filho do Soba, foi destacado para liderar numa terra enorme. Repara-a!)

Desperto suado e rápido dou conta de que tinha sonhado.

D0 ALTO DA CELA E TUNDAVALA contemplo a maravilha que a natureza nos oferece complementada pelo engenho humano e vejo quão imensa é a cidade de Luvangu. Não tarda, chega mais uma viatura com dezena de crianças a que se seguem outras de jovens excursionistas. O espaço ganha vida. Corre-se à volta como se procurando por algo.

- Não há cá balneários públicos? – Atira um dos turistas desejoso de desfazer-se de líquidos ou sólidos transformados em pasta.

Abro a minha caixa de recordações e voo até à “Mesa Montanha” da cidade do Cabo e projecto aí um “cable” e todo o apetrecho turístico como loja de conveniências, restaurante, café e um Motel erguidos com material local e sem beliscos ao meio natural. Um pouco desgostoso, já a caminho da Humpata, para ver a Leba, reparo que o restaurante e a loja de conveniências com que sonhei ficaram pelo alicerce.

- “Table Moubtain" nacional, ainda vamos a tempo, se os que têm dinheiro e aqueles que decidem quiserem. ‘ Falei aos botões.

A observação não se distancia da Tundavala que desperdiça a sua enorme paisagem. Só falta mesmo quem decida erguer instalações que alimentem o turismo. Organizar transporte da cidade ao miradouro, cobrar taxa de usufruto, impedir que se suje a área com detritos humanos, latas de cervejas e refrigerantes ou ainda marmitex. Empregar guias que expliquem cada um daqueles recantos ou colocar em cada atalho placas informativas sobre a história do local e sua subdivisão espacial. Recrutar fiscais, fotógrafos e instalar o que atrairia e reteria mais gente ao espaço turístico e recreativo: restaurantes, cafés, lojas de souvenirs, albergaria rústica, toiletes, etc. Com tudo isso, ou mesmo metade, não mais nos espantaríamos com o cable e Table Moutain de Cape Town...

A ESPIRAL DA LEBA: a estrada que desafia a escarpada serra da Leba é uma "serpente" enrolada sobre a montanha vertical. A natureza fez a sua parte e o homem engenhoso complementou com a escada sobre o "edifício" de dezenas de andares. Que maravilha!
Pena é não se ter erguido ainda no local espaços para reter o turista, depois de saciado pela natureza circundante.

Ainda do alto da Leba, depois de pagar a portagem de Kz 150.00, contemplo a sua raridade e me recordo de um velho sonho: descer e subir ao volante de uma viatura.

Ensaio a fiabilidade dos travões e engato uma mudança intermédia, combinando força e velocidade que não passava de 40 Km/h no início da odisseia.

A meio do percurso, um camião tractor geme pesado e cauteloso, pressionado pelo bloco de mármore que há-de trazer divisas ao país e ornamentar um edificio num país qualquer.

- Quão bom seria se tivéssemos já indústria de beneficiação das rochas ornamentais. Deixaríamos de vender comodities baratas e comprar refinados caros! – Atirou o Martins que sabendo onde trabalho aproveitou provocar-me sorrateiramente. Mas é para a descida da Leba que concentro todo o meu talento e destreza.

O MERCADO DAS MANGUEIRAS: É já em território do Namibe que os fóbicos da Leba engolem despreocupados ar puro.

- Ebenezer (até aqui o Senhor nos ajudou)!- Foi a frase que ouvi do meu companheiro de viagem que soltou poucas palavras enquanto eu pelejava contra as curvas e contracurvas numa espécie de espiral regressivo. Nem mesmo os batuques, os recipientes para a ordenha, os cacetetes (porrinhos), estatuetas e outros artefactos de madeira expostos em venda, ao longo da parte final da descendente Leba, despertaram a atenção do Martins que apenas reagiu aos meus beliscos verbais quando deixou de ver curvas à frente. Cinco quilómetros abaixo da Leba, depois de uma vasta mata de mulolas espinhosas, se estende o Mercado das Mangueiras onde matámos a fome e a sede. A carne, assada em tiras finas espectadas em palitos, custava Kz 150.00 ao passo que uma perna de galinha rija custava quatro vezes mais.

- Mas aqui, com tanto gado, a carne é assim tão cara? – Questionei à vendedeira que atendia pelo nome de Fernandinha. Era também o nome gravado à entrada da barraca.

- Senhor, é a crise. Até o preço da taxa subiu!

Fazia sol de assar sardinha e o mar que distava perto de uma centena de quilómetros fazia o convite: “Venham também ver Moçâmedes”.

- Desculpe-me Namibe, mas não será desta vez o nosso reencontro! – Despedi-me, forçado pelo relógio que corria apressado. Havia ainda a cascata da Xibya (Chibia) por explorar e fizemo-nos de regresso ao Luvangu, com curta paragem na Humpata onde o gado bovino, as maçãs, as peras, o tortulho e o bom clima convidam o turista a uma contemplação do belo. Ponto de passagem entre Luvangu e a Leba que nos conduz ao Namibe, Humpata é também um local turístico e de recreação. Tem um mercado municipal recheado de frutas de vontade e pousadas com camas fofas.

Chegados à grande cidade do sul, o caminho seguinte foi o que dá ao Kunene.  Perdidos entre as mulolas e rios caudalosos em tempo de chuvas fartas, mas que se tornam desérticos em horas seguintes, precisei de tradutores para "assuntar" que precisava de fazer fotos com as mulheres mundimbas trajadas a preceito. Estava na Xibya (Chibia), famosa pelos seus campos agrícolas onde se haviam estabelecido colonatos luso. Conta-se que Sá da Bandeira, nome por que fora baptizada a capital huilana, ter-se-á enamorado pelo clima da Xibya... 

Dois tradutores de ocasião ajudam-me a transmitir a ideia, na língua nativa, às mulheres mundimba que ignoram o idioma trazido por Sá da Bendeira e conterrâneos.

- Ele veio nos visitar e quer tirar fotos para recordação. Também promete dar algum dinheiro para os que ficam comprar recordação. - Terá dito, mais ou menos, um dos tradutores, antes de reclamar: - eu que estou a “assuntar” com as mamãs também me põe na conta da recordação. A ele se juntou outro jovem, também pretendendo a boleia da tradução.

As senhoras, caprichosamente trajadas em seus panos e bijuteria de misanga (missanga na grafia convencional) ao pescoço,  acederam sem resistência. Até apareceram mais do que as minhas previsões, mesmo sabendo que a quantia prometida era, para mim, irrisória. Mulher mundimba também gosta de se ver na foto registada e guardada na memória do telefone. E foi o que pediram.

Havia prometido dar cem kwanzas a cada uma das cinco senhoras que contactei inicialmente. No fim, lá estavam onze mulheres. Para manter o que anunciara paguei mil e cem às senhoras, juntando mais duzentos para os dois homens  que ajudaram a manter tangíveis os discursos.

No momento de despedida, soaram rajadas de palmas. Todos agradecidos. Numa picada interior da Xibya (Chibia) onde quase nada se compra, senão as misanga (plural de musanga) e o álcool que "afugenta" o frio que vai e vem sem parar, onde a água pluvial corre furiosa da montanha para lado desconhecido, de tanto não poder adentrar o solo pedregoso, cem Kwanzas terá sido dinheiro.

Não foi dia de turismo. Caminho não havia para chegar à tão recomendada cascata que, afinal, estava antes, na comuna da Huila. Também guias turísticos e bons entendedores da Língua de Camões estavam raros.

Do turismo passamos à aventura. E valeu. É que nem a Maria (viatura) decepcionou na transposição dos obstáculos pedregosos, quanto não lamacentos, que se apresentavam na picada escarpada que risca a nuca da montanha que se estica da Xibya ao Namibe.

Regressados a Luanda, verifico de novo o contador de distâncias e este me informa: consumidos dois mil, trezentos e quarenta e nove quilómetros.

Bem haja turismo!

terça-feira, 10 de maio de 2016

OS MANGONHEIROS DE SERVIÇO

Ouvi, em tempos, alguém a gabar-se do facto de ser um "mafioso" no trabalho.

- "Eu sou um mafioso e ninguém me aguenta". - Gabava-se.
Não que estivesse ligado a uma organização criminosa, uma máfia ou coisa parecida. Reportava-se ao facto de ser um funcionário descomprometido com o trabalho, violador do código de deontologia do Funcionário Público.

Dizia ele que faltava ao serviço sempre que quisesse, que inventava óbitos e doenças para não trabalhar e que conhecia, inclusive, uma rede de falsificadores de documentos que lhe passava as receitas médicas e os boletins de falecimento, com os quais justificava as inúmeras faltas (pois estava mais ausente do que ausente) que lhe eram marcadas. E gabava-se ainda o individuo que "o chefe é meu "panco" (cúmplice), pois fechava os olhos aos seus desacatos e desleixos para com a actividade profissional. Era um homem que conjugava, vezes sem conta, o verbo faltar.

- Eu falto sempre que quiser e ninguém me penaliza. - Gabava-se, ao mesmo tempo que infectava os demais colegas com o seu vírus da indisciplina.

Há ainda os useiros e vezeiros na conjugação da forma negativa do verbo fazer. Não faço. Embora sejam corpos presentes no local de prestação de serviço, esquivam-se sempre das tarefas. Se as fazem não com o esmero necessário e esperado. Estão apenas para assinar o livro de frequências (ponto) e esperar pelo ordenado. Têm sempre um parente ou um amigo enfermo por visitar em hora de trabalho. Nas reuniões nunca contribuem de forma a melhorar as ideias expostas pelos colegas mas estão de boca sempre pronta para lançar críticas ao trabalho realizado pelos outros. Aos seus líderes levam problemas mas nunca apresentam soluções. Estão sempre à mão quando é para transmitir energia negativa. São recolectores de infelicidade que transportam e distribuem pelos colegas. Em conversas sobre a apatia que se instala nas instituições omitem as experiências positivas doutros Departamentos, trazendo apenas os exemplos mal conseguidos, como se o anormal fosse a regra.

- Chefe, não é só aqui, ali também é assim. – Dizem, como se desta forma estivessem a contribuir para transformar a instituição e o país.

Uma minha ex-colega de formação gostava de enfeitar a boca com o termo "eu sou filha de fulano de tal" e por isso ninguém me penaliza. Também não assistia as aulas, mas no final do semestre ou do ano lectivo passava a vida a reclamar dos professores afirmando que os mestres tinham sido maus para com ela. Calculo que no trabalho ela continue a conjugar o verbo ser (fidalgo) e a reclamar dos responsáveis sempre que a avaliação do seu desempenho corresponda àquilo que não faz durante o ano. A minha ex-colega, fruto do facto de ser fidalga, também gostava de conjugar o verbo ter. – Eu tenho influências e, por isso, ainda que não estude, ninguém me pode reprovar. – Afirm,ava de boca cheia.

Hoje, estará igualmente a dizer que tem influências e, ainda que falte ou que não trabalhe, ninguém a pode penalizar ou responsabilizar pelo incumprimento dos seus deveres.

Certa vez, quando estávamos a estagiar numa empresa, veio à baila uma conversa sobre o comportamento no local de trabalho, com realce para o cumprimento dos deveres e a reclamação ou usufruto dos direitos.

A minha colega, cujo nome omito, dizia, de boca cheia, que procurava mais por um salário do que por um emprego. Um dos colegas que não deixava conversas azedas para o dia seguinte enfrentou-a nos seguintes termos:

- Jaja, perdeste o teu tempo na formação para ser uma lesma no serviço? Se for para fingires que trabalhas ou apenas para mostrares aos vizinhos que tens um emprego, monta uma barraca em frente à porta de casa e faz negócios. Sendo tu mesma a patroa, apenas as tuas necessidades financeiras te obrigarão ou não a te desempenhares com maior acuidade. Como te podes orgulhar em ficar oito horas no trabalho em vez de trabalhares oito horas? – Questionou o Dito, conhecido como "O Bombeiro Diligente" por seu pau pra toda obra, sempre motivado e sorridente, fazendo as coisas com perfeccionismo, precisao e celeridade.

Ainda bem que  o meu leitor se escusa em ser pregador de maus exemplos, pois sabe que em todas as situações, domésticas ou laborais, há sempre quem tenha menos do que nós e que vive feliz, apesar das dificuldades. O meu leitor, tenho certeza, é dos que espalham sorrisos por onde passa, planta alegria e colhe bons resultados profissionais.

Na sua instituição, é dos primeiros a entrar e dos últimos a sair, depois de um dia sempre produtivo e inovador, valendo-lhe, por isso, uma boa carreira e reputação. O meu leitor é daqueles que conjuga o verbo agir, servindo-se do equilíbrio nas suas posições, respeitando as pessoas e as normas instituídas. É dos que se colocou, à partida, uma pergunta a si mesmo e cuja resposta é fornecida pelas suas acções diárias:

- Como quero ser lembrado(a), no futuro, pelas pessoas com quem lido ou que passarem por cá e ouvirem falar sobre mim?

A resposta define a estrada que vai construindo no seu dia-a-dia.

Nota: text5o publicado no Semanário Angolense de 01.08.2015

 

domingo, 1 de maio de 2016

TOPÓNIMOS BANTU: CÊS OU KAPAS?


Mas, ó kota, assim mesmo está bem? – Bernardo Njamba, meu companheiro de viagem do Cuito a Menongue é moto-taxista, vulgo Kupapata e trabalha na capital do Cuando-Cubango. Apesar de a profissão que exerce não ser das que exigem grandes níveis de escolaridade, Bernardo é bem informado e diz que “ganha-se mais trabalhando em Menongue do que no Chitembo ou Cachingues, sua terra natal, no Bié”.

Sem mesmo saber, antes, quais as minhas habilitações, ramo de formação e interesse pela questão linguística e grafia dos topónimos angolanos, Bernardo, como quem lê o pensamento alheio, atirou a sua pergunta (mas, ó kota, assim mesmo está bem?) ao passarmos pela renascente vila de Cachingues, cujo tabuleiro, no seu entender, devia estar escrito como se pronuncia em umbundu.

Antes mesmo que obtivesse de mim algum pronunciamento, Bernardo endireitou o tiro e falou sobre si.

- Nasci, ali mesmo naquela aldeia, onde o mano parou para me levar. Estudei a oitava classe no Chitembo e “através” da guerra fui rusgado duas vezes. Primeiro me levaram na tropa do governo e combatemos nos lados de Camacupa. Quando vi que as mortes eram demais, fugi. Mas por azar, também fui raptado pelas forças da Unita. Ali já era demais. Recuar era só recuar. Todos os dias era só fugir da tropa do governo que estava bem equipada. Txá, aquilo era demais! Nem mesmo comida ou fardamento tínhamos. Ração era milho torrado e roupa que te apanham com ela é a mesma que serve de farda até rasgar.- Contou, para depois perguntar se “o kota é daonde e combateu ainda aonde?”

- Sou do Libolo. Na tropa, apenas espreitei e fugi antes de jurar a bandeira, pois era recruta menor e ninguém me perseguiu quando entendi fugir dela. Depois fui a Luanda estudar e trabalhar. – Expliquei-lhe.

- Siti, kota watanga (o mais velho estudou mesmo). – Exprimiu-se em umbundu, Bernardo. – Mas, o kota estudou o quê? – Voltou a questionar, tentando procurar um caminho para chegar ao assunto da grafia no tabuleiro deixado na comuna de Cachingues.

Ele como um cavalheiro que aos poucos, sem fazer-se perceber, esquarteja a sua dama, e eu na defensiva. O assunto era do meu interesse mas pretendia saber até aonde Bernado Njamba chegaria com aquela pergunta inicial. A nossa viagem consistia numa troca de favores: eu levá-lo-ia até ao seu destino, Menongue, e ele mostrar-me-ia, em troca, a cidade a que me dirigia pela primeira vez, e o Instituto Médio de Administração e Gestão, IMAG- 23.

- Sou jornalista. Meu nome é Soberano. Nas universidades estudei História e Comunicação Social. Também gosto de estrada e aprecio as coisas velhas e novas que vão surgindo pelo país. – Disse-lhe, aguçando o seu desejo de prosear.

Bernardo sorriu de leve. Pegou em duas latas de bebida energética que tinha no saco, ainda frias, e passou-me uma das latinhas.

- Kota Soberano, posso trata-lo assim? Questionou, já com um à vontade nunca esboçado.

Apenas anui com a cabeça, procurando por uma música que nos fizesse companhia. E ele prosseguiu:

- O kota que entende de História deve também entender lá um kabocado de línguas nossas. Acha mesmo que a forma como escreveram os nomes das aldeias, comunas e municípios, até mesmo os nomes das cidades está correcto? É que nós, kupapateiros quando falamos, mesmo tendo razão, nos falam você é burro.- Desabafou, algo aborrecido.

Meu amigo, sou um dos que se debatem contra a forma como os topónimos estão escritos nos tabuleiros ou a forma como nos habituamos a escrevê-los. O ideal seria que os topónimos e antropónimos fossem escritos e registados de acordo com a estrutura gramatical da língua em que são enunciados. Aqui, entre nós angolanos, o assunto da troca dos kapas pelos cês na grafia de alguns topónimos bantu ou pre-bantu e a manutenção dos kapas noutros vocábulos tem sido motivo de muita celeuma. Veja bem, amigo Bernardo, abri o rosário, há meses, quando se fez o registo eleitoral o MAT mandou os jornalistas escreverem os nomes como se escrevia no tempo do kaputu. Então, uns ficaram “fulu”. Disserasm assim é regresso ao passado e não pode ser. – Recordei-o.

- Pois é mano. :Respondeu Bernardo. – Veja, por exemplo que o rio, esse que nasce mesmo aqui perto, no Chitembo, é Cuanza mas a moeda que ganhou o nome “através” do rio, é Kwanza com kapa e se justifica que se atribuiu à moeda angolana o nome do maior rio que nasce e desagua em território nacional. Isso assim mesmo está correcto?


- Não acho correcto. Fui e sou ainda dos que mais discorreram tinta sobre o assunto que, afinal de contas, não é tão complexo nem confuso quanto os comunicadores do MAT o fizeram parecer. Aqueles "doutores" em vez de saírem de peito aberto para explicar em miúdos o que se passou com a remissão daquele instrutivo aos Meios de Difusão Massiva para, de um dia para outro, cortarem os kapas e os substituírem pelos cês, deviam é estudar o assunto e explica-lo não só aos MDM mas a todos os angolanos. Ontem mesmo, um meu amigo, já mais velho e doutor de verdade, explicou-me me que os nomes, mesmo os das pessoas, só se tornam oficiais quando cadastrados num livro de registo que lhes dá respaldo legal.

- Ai é? – Interrompeu Bernardo que parecia gostar das explicações e de ter encontrado a pessoa certa para o seu desabafo.

- Sim amigo Njamba. Vejamos: o único registo existente quanto aos antropónimos angolanos é o que foi deixado pelo colono. Não foi produzida uma lei que alterasse os nomes das localidades, de acordo ao que alguns angolanos defendem, eu incluído, que é redigir com kapa aí onde a estrutura da língua africana originária o exija.

- Mas o mano Soberano me disse, na passagem pretérita, que era contra a forma como se escrevia antigamente e como se escreve também agora. Assim então fica como?

- Pois é, Bernardo, aí está o problema. Temos as localidades já antigas que foram mal registadas pelo colono. Umas mudaram de nome depois da independência, mas ninguém fez o registo em livros. Os nomes não foram oficializados nem escritos correctamente. Temos também as novas localidades surgidas depois da independência, como a cidade de Kilamba ou a moeda Kwanza. Essas estão bem escritas e fora de discussão. – Esclareci.

Bernardo Njamba parecia ter ainda algumas dúvidas embora tenha por diversas vezes balançado a cabeça, em sinal de aprovação do discurso. E não tardou a sua pergunta derradeira.

- Assim, mano Soberano, os nomes então devem se escrever como? Cachingues, Mumbue, Chitembo, Catabola, Chicala-Choloanga, Babaera, Bié, Cuito e Cachungo é mesmo assim que se escrevem ou devem levar kapa no princípio?

- Olha, Bernardo, Mumbué, Babaera e Bié não levam kapas, mas devem ser escritos de forma diferente. Devem passar para Mumbwe, Vava-Ayela e Vye. É assim que se escreve em umbundu. De igual forma, para corrigir os topónimos que enumeraste, deve escrever-se Kacingi, Citembu, Katabola, Cikala-Colohanga, Kwitu, Kacungu, etc. É preciso que se escreva bem e se crie uma nova lei do registo desses nomes bem escritos.

  
- Então é isso que o amigo do Kota explicou na conversa que tiveram ontem? - Voltou a questionar Bernardo, sempre interessado nas explicações, se calhar para lhe servirem de argumentos perante os debates com os colegas, na praça da Paz, em Menongue, onde presta serviço de moto-taxi.

- É mais ou menos isso. Ele pediu para que todos aqueles que podem esclarecer aos outros aprendam e façam-no para que o povo reclame com razão. Perante a douta explicação do meu amigo, devemos é redireccionar a NOSSA "luta" ao mesmo MAT, já não para repor os kapas que achávamos terem sido arbitrariamente cortados, mas para que no mais curto espaço de tempo crie a lei que coloque, em definitivo e de jure, os kapas, ipsilons e dablius nos topónimos como Kwanza, Kacinge, Mwmbwe, Cikala-Colohanga, Kalulu, Kwitu, Katabola, Vav'ayela, etc. e se escreva correctamente os nomes dos rios, das localidades e até das pessoas. O que peço hoje, espero que você também seja parte desse esforço, não é a colocação arbitrária de kapas, mas a grafia correcta dos hidropónimos, topónimos e antropónimos conforme a estrutura morfológica das línguas locais.


- Ok, mano. Estou de acordo. Assim mesmo, quando chegar a Praça da Paz, vou já começar a explicar aos meus colegas. Não pedi antes, mas gravei as explicações do mano, para servir de testemunha. – Concluiu Bernardo que ao longo do percurso foi fazendo as correcções sobre como seria a grafia correcta, seguida de registo, das localidades que fomos encontrando.

- Kota, a província do Kwandu-Kuvangu começa aqui e a cidade de Mwene Vunonge fica a cento e cinquenta quilómetros. – Atirou, mostrando que domina já o assunto.

quarta-feira, 20 de abril de 2016

CAMINHOS EVITÁVEIS

Na áurea das independências, e influenciados pelos ventos revolucionários e ideologia dos países do Leste europeu, dois Estados da conhecida Região do Corno de África decidiram fundir as suas fronteiras num acto que visava aproximar os dois povos que comungavam de culturas e valore muito parecidos.
Essa visão política estendeu-se ao fórum empresarial e económico. Algumas firmas do pais Ericeira estabeleceram parcerias, face a existência de novas oportunidades de mercado e possibilidades de expansão de negócios.
Tonka Incorporated, uma firma que dominava o segmento da prestação de serviços de higiene e segurança em instituições públicas, bem como a gestão e aplicação de políticas de Recursos Humanos, tinha uma considerável quota de mercado em Ericeira e um excesso de liquidez que permitia a empresa explorar a oportunidade criada pela conjuntura exógena, a fusão dos territórios entre Ericeira e Entropia.
Em viagem de serviço a capital de Entropia, que se tornou a segunda cidade mais importante do Estado Unificado, Sir Kato Ndombele, o patrão da firma KatOn Service Incorporated, conheceu Hamed Tonka, o Presidente do Conselho de Administração da firma Tonka Incorporated, e com ele decidiu estabelecer uma parceria, criando uma fusão entre as duas empresas, tempos depois, antecedida de aturadas negociações.
A KatOn era uma empresa com reputação ao nível do continente africano e de alguns países do sul da Europa em termos de gestão de Capital Humano e prestação de serviços. Porém, as transformações políticas no país e as nacionalizações ocorridas em Ericeira não facilitaram uma expansão dos seus negócios, muito menos criar uma almofada financeira que permitisse atacar o novo mercado que surgiu com a fusão dos dois Estados vizinhos. Os quadros da KatOn tinham porém a fama de terem trabalhado em grandes multinacionais, gozando, por isso, de grande reputação junto de outros parceiros empresariais e organizações governamentais.
A Tonka, empresa da Entropia, viu nela uma parceira capaz de agregar valor aos seus recursos financeiros excedentários.
Fundidas as empresas Tonka e KatOn, a nova entidade jurídica passou a designar-se Toka International, sendo grande parte da sua gerência confiada aos executivos procedentes da KatOn, que era minúscula em termos de estrutura, mas robusta em termos de know how e qualidade do seu Capital Humano. A sede da nova entidade empresarial, a operar no território unificado, passou a ser a antiga Base Central da então Tonka Incorporated, o que levou os funcionários mais antigos da Tonka a tratarem os seus novos colegas com os mais variados epítetos depreciativos. Eram tratados como "estrangeiros, invasores, usurpadores de cargos, etc.",  situações que a juventude bem disposta, comprometida e motivada, procedente da KatOn, geria com inteligência e postura institucional.
- O nosso lema é trabalhar, fazer a nova empresa crescer e crescer com ela. - Diziam os jovens executivos saídos da KatOn.
De simples alegações ciumentas, passou-se a confrontos verbais mais acirrados que chegavam, em muito dos casos, a inviabilizar alguns planos de crescimento da Toka International.
Como as lideranças estavam mais focadas na consolidação da fusão e desenvolvimento da nova estratégia de negócios propiciada pelas razões endógenas (excesso de liquidez e domínio de consideravel quota de mercado por parte de Tonka e elevada preparação técnica dos quadros da KatOn) e pelas razões exógenas (fusão dos dois países, crescimento económico e restruturação das instituições públicas), preferiram tocar o negócio para a frente, buscando apenas a participação daqueles que estavam interessados em trabalhar, fossem quais fossem as suas funções hierárquicas nas equipas. As lideranças intermédias rapidamente interpretaram o pensamento estratégico e começaram a trabalhar com os quadros disponíveis, ficando sem trabalho aqueles que, a todo o custo, puxavam a carroça para trás ou usavam a táctica do caranguejo (não permitir que alguém trabalhe ou colabore). O curso dos acontecimentos levou a que os quadros da Tonka que aderiram à nova filosofia de trabalho aprendessem com os outros provenientes da KatOn e se especializassem em distintos ramos do saber. Às cegas ficaram aqueles que desistiram de trabalhar, procurando apenas conspirar contra as novas lideranças da Empresa Unificada e os colegas que tinham aderido à nova filosofia de trabalho.
Vinte anos depois, o Leste europeu conheceu outros desenvolvimentos políticos, com maior realce para a queda do Muro de Berlim, que levaram à desintegração de Estados em alguns continentes desanexações de territórios, efeitos que se estenderam a países que orbitavam na esfera ideológica do Leste europeu. Isso fez com que a integridade do Estado Unificado de Ericeira-Entropia fosse afectada, repercutindo-se também em alguns negócios empresariais, sobretudo os actores que trabalhavam com instituições públicas.
Da Toka International ressurgiram duas novas entidades empresariais que passaram a actuar com a mesma tecnologia e conhecimento nos países (re)emancipados.
- Chegou a nossa hora de governar o país e a empresa, terminada que está a ocupação ilegal dos nossos postos de trabalho e de chefia. - Proclamou a velha guarda resistente da antiga Tonka de Ericeira.
Os jovens competentes, formados no tempo da fusão, foram relegados para planos secundários na organização, sendo catalogados como "produto da colonização empresarial", ocupando a velha guarda os postos de decisão na empresa.
Aqueles que, sendo da mesma geração que a velha guarda tonkanense, tinham aderido às novas formas de trabalho, no tempo da gigante Kato International do Estado Unificado, também foram ostracizados sob a alegação de "se terem juntado ao colonizador".
- Quem se juntou ao opressor que invadiu a nossa empresa e tomou os nossos lugares, agora que nos livramos deles, deve partir ou sujeitar-se à nova ordem. – Apregoavam eufóricos.
O poder de transformar a empresa e seguir o seu percurso de crescimento e expansão tinha-lhes sido entregue. Porém, os vinte anos de defeso, sem trabalho e contacto com as novas ideias e novas tecnologias, fez deles maus líderes e maus obreiros. De uma imponente empresa que foi antes e depois da fusão, a Tonka não passa hoje de um impotente manto de retalhos, com tecnologia e capital humano a reclamarem por uma reforma profunda.
Do outro lado, em Entropia, segue de vento em popa a KatOn International que absorveu da sua antiga parceira o conhecimento de mercado, capitalizou os investimentos herdados com a fusão e conta com os seus quadros cada vez mais qualificados.
Quando se realizam fusões de organizações empresariais, independentemente da procedência, quantidade de quadros indicados para a gestão e do peso que tenham ou venham a ter na organização, é importante que cada uma das partes fundidas ou componentes das partes deem o seu máximo para a consolidação da nova entidade. Todos os integrantes devem absorver as vantagens da fusão e da interação com os outros actores (que se juntam à nova organização).
Ficar na sombra, a reclamar o declínio dos gestores no activo, pode ser perigoso para quem arme este estratagema como forma de reivindicar o poder, pois, uma vez no exercício do poder reclamado, pode ver-se despido de ferramentas para a exercitação das funções que lhe foram confiadas. Ficar na sombra, a torcer pelo descarrilamento do comboio, para depois tomar o lugar do maquinista azarento, poder ser uma estratégia perigosa como se verificou entre os integrantes da firma Tonka de Ericeira que deitaram a baixo até o que de mais valioso tinham conseguido com muito labor: o supervait e considerável quota de mercado ericeiriense no domínio da prestação de serviços de higiene e segurança em instituições públicas, bem como a gestão e e aplicação de políticas de Recursos Humanos.
Nota: a presente reflexão é produto de criatividade aliada ao estudo de casos científicos no curso de MBA realizado na FAAG, não se dirigindo a pessoas e ou instituições concretas de nenhum Estado ou território.

NB: Texto publicado pelo Semanário Angolense a 06.11.2015