Na tropa tuga que os acolheu pela primeira vez, Serpa Pinto
era uma cidade demasiado pequena para que dois jovens, educados em missões
protestantes, não se reconhecessem.
- Nasci em Ekovongo e cresci em Kamundongo. - Apresentou-se
Sabino ao cabo Coimbra.
Corria o ano 66 do século XX. Influenciados pelo fim da Segunda
Guerra Mundial e pela Conferência de Bandung, os Movimentos de Libertação
Nacional surgiam como cogumelos e os ex-militares, saídos das frentes militares
na Europa, Ásia e Norte de África, vomitavam as novas ideias
"jikulamesistas" nos países de origem.
- Também sou protestante de Cisamba e tenho a vida académica
feita no Ndondi (ex-Vila Nova, hoje Kacyungu). Respondeu Coimbra sorridente.
O aperto que se seguiu à apresentação dos dois cabos bienos,
dois anos de diferença, foi como a bala de G-3 alojada na caveira dum
insurrecto. Assim eram as orientações salazaristas e thomazistas naqueles
tempos do "para Angola e em força", a fim de manter "a joia da coroa
lusitana em África", onde enfrentavam, a par da Guiné de Amílcar Cabral,
umas das mais duras e desgastantes guerrilhas. "Alojar a bala na caveira
dos patrícios e fazê-los temer a nossa autoridade e poder", era a frase de
ordem diária dos furriéis à praça formada por nativos e metropolitanos trazidos
em aviões e navios para travar o “comboio da liberdade”.
Coimbra e Sabino enfrentaram com valentia e sabedoria os dois
anos de "tropa tuga" até chegar a dispensa para a vida civil,
cumprindo ou esquivando ordens para que não fossem submetidos a castigos, nem
tidos como subversionistas. Por outro lado, evitando também o confronto directo
com os seus irmãos que nas matas e nas chanas lutavam com “kanyangulu e
mwana-kaxitu” para dar fim ao poder do fascista Salazar e seu presidente-peão,
Américo Thomaz, das terras de Ngola, Ya Ndemufayo, Wambu, Ndulu yo lo Sima,
Cinyama, etc.
Transcorreram os 48 meses esquivando uns e outros, embora os
corações, quer dum quer doutro, fosse revoltoso. Terminada a missão militar, Coimbra
acabaria por alistar-se num curso de enfermagem.
- O único caminho que tenho para ajudar a Revolução é curar
os populares e os compatriotas deixados feridos pelo calor da refrega. - Disse
Coimbra para si mesmo no dia da decisão. E fez o curso geral de enfermagem, ano
e meio, em Nova Lisboa. Sendo colocado na delegacia de Kamanonge, distrito de
Moxico.
Sabino, desmobilizado, um ano mais tarde, seguiu-lhe no
sonho, embora nada houvesse de acerto entre ambos.
- Agora que já não estou a servir os colonialistas, e com os
conhecimentos militares que tenho, vou enquadrar-me no Movimento.
Tentou fazer-se à estrada até atingir a vila Teixeira de
Sousa, no extremo Leste. Os espinhos eram muitos e poucos com histórico militar
conseguiam transpor as barreiras impostas pela administração colonial até chegar
à última estação do Caminho-de-Ferro de Benguela em território angolano. Já um
ano tinha voado, depois da dispensa da vida militar e Sabino continuava com o
sonho por realizar.
- A revolução também se pode fazer na recta-guarda. -
Segredo-lhe o tio Njamba Ya Mina, já há anos com “kudibangela” na mão.
Conselho ouvido, conselho acatado. Sabino enquadrou-se no
curso geral de enfermagem e o destino levou-o igualmente a Kamanonge,
onde viria a reencontrar o seu antigo colega e conselheiro Coimbra.
Quando se avistaram pela primeira vez, em Serpa Pinto (hoje
Menongue), Coimbra ja era pai de segunda caminhada. Sabino ainda sonhava com a
noiva deixada intacta em casa do padre Maurício, irmão de Argentina. Mal tinham
começado a garinar o jovem, com o segundo ano do liceu concluído, foi forçado a
enquadrar-se na tropa de ocupação colonial.
Em Kamanonge, estavam no epicentro da revolta contra o
sistema colonial. A proximidade com a Rodésia independente e permissiva aconselhava
o recrudescer dos combates e até facilitou o surgimento do kasula entre
os Movimentos guerrilheiros anti-salazaristas em Angola. Coimbra,
na chefia da delegacia da saúde, recebeu o neófito Sabino, seguindo-se outros
anos de companheirismo e cumplicidades entre as duas famílias.
Durante o sol atendiam os colonos e aldeões da circunscrição
e, às noites, os "irmaos kambutas" que abundavam nas chanas “trafulhosas”
do Leste, até que chegou a Revolução dos Cravos. Salazar já pagava pelos
pecados e Caetano, seu substituto na ditadura primo-ministerial, via o diabo a
assar "joaquinzinhos" em lume ateado pelo movimento dos capitães.
- A independência chegou! - Gritaram as colónias.
Colonizadores e colonizados sentaram-se à mesa de negociações, 14 anos depois
do início das “nvundas do tunda mindele". Coimbra voltou a Silva Porto e
Sabino enfrentou a traição rasteira de irmãos de sangue e sofrimento perante o
chicote colonial.
- É ovimbundu, é colaborador. - Sem mais nem menos,
acusaram-nos com sede de lhe tomar a cadeira na chefia da delegacia deixada por
Coimbra transferido. “Foi o preço da revolução feita com poucos cérebros encanetados”,
diria mais tarde.
Fugido das masmorras “pidescas”, à cadeia “disesca” foi
entregue, acusado de traição.
- Nunca estive com eles. Nunca me simpatizei com eles. -
Defendeu-se Sabino perante uma acusação que não permitia advogado.
Sabino viu o sol e até estrelas aos quadrados no meio de muita
sova. Resistiu, porém, à tortura e à morte. Viu companheiros de desgraça,
acusados de colaboracionismo com o terceiro Movimento, partirem para nunca mais
se ouvir falar deles. Com o passar do tempo, recebeu outros parceiros de
sofrimento, rusgados na refrega inglória do 27 de Maio. Muitos deles seguiram o
destino dos primeiros. Desapareceram de dia para noite sem deixar rasto. Quando
o sino da liberdade tocou, voltou à urbe nativa, fundada por Silva, o do Porto,
onde voltou a encontrar o seu amigo e companheiro de todas as caminhadas.
Coimbra dava vida ao confiscado hospital missionário de Kamundongo.
Vivem hoje aposentados, cuidando de netos a quem contam a
cada sol um episódio, fazendo-lhes companhia a "pomada", as
cicatrizes e as memórias.
- Então, compadre, o que será hoje o almoço? - Perguntou
Sabino, na pele de visitante, enquanto ajeitava a sacola em que acomodava o
galo trazido da fazenda.
- Catorze graus, com carne e pirão. É tempo de independência,
compadre. - Respondeu Coimbra.
Rodeados por filhos kasulas, sobrinhos e netos comuns,
Coimbra e Sabino abriram os seus livros de memórias e os descendentes foram
anotando com atenção.
- Vovôs, vamos escrever um livro com vossas recordações. -
Verbalizou Any Bingo, uma das netas comuns. A cabidela foi regada com vinho tinto de 14 graus,
enquanto os mais novos festejavam com kisângwa.
Obs: Texto publicado pelo Semanário Angolense em Fevereiro de 2015.
Publicado pelo Semanário Angolense, 2015
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