domingo, 1 de fevereiro de 2015

MEMÓRIAS DA LUTA A "14 GRAUS"


Na tropa tuga que os acolheu pela primeira vez, Serpa Pinto era uma cidade demasiado pequena para que dois jovens, educados em missões protestantes, não se reconhecessem.

- Nasci em Ekovongo e cresci em Kamundongo. - Apresentou-se Sabino ao cabo Coimbra.

Corria o ano 66 do século XX. Influenciados pelo fim da Segunda Guerra Mundial e pela Conferência de Bandung, os Movimentos de Libertação Nacional surgiam como cogumelos e os ex-militares, saídos das frentes militares na Europa, Ásia e Norte de África, vomitavam as novas ideias "jikulamesistas" nos países de origem.

- Também sou protestante de Cisamba e tenho a vida académica feita no Ndondi (ex-Vila Nova, hoje Kacyungu). Respondeu Coimbra sorridente.

O aperto que se seguiu à apresentação dos dois cabos bienos, dois anos de diferença, foi como a bala de G-3 alojada na caveira dum insurrecto. Assim eram as orientações salazaristas e thomazistas naqueles tempos do "para Angola e em força", a fim de manter "a joia da coroa lusitana em África", onde enfrentavam, a par da Guiné de Amílcar Cabral, umas das mais duras e desgastantes guerrilhas. "Alojar a bala na caveira dos patrícios e fazê-los temer a nossa autoridade e poder", era a frase de ordem diária dos furriéis à praça formada por nativos e metropolitanos trazidos em aviões e navios para travar o “comboio da liberdade”.

Coimbra e Sabino enfrentaram com valentia e sabedoria os dois anos de "tropa tuga" até chegar a dispensa para a vida civil, cumprindo ou esquivando ordens para que não fossem submetidos a castigos, nem tidos como subversionistas. Por outro lado, evitando também o confronto directo com os seus irmãos que nas matas e nas chanas lutavam com “kanyangulu e mwana-kaxitu” para dar fim ao poder do fascista Salazar e seu presidente-peão, Américo Thomaz, das terras de Ngola, Ya Ndemufayo, Wambu, Ndulu yo lo Sima, Cinyama, etc.

Transcorreram os 48 meses esquivando uns e outros, embora os corações, quer dum quer doutro, fosse revoltoso. Terminada a missão militar, Coimbra acabaria por alistar-se num curso de enfermagem.

- O único caminho que tenho para ajudar a Revolução é curar os populares e os compatriotas deixados feridos pelo calor da refrega. - Disse Coimbra para si mesmo no dia da decisão. E fez o curso geral de enfermagem, ano e meio, em Nova Lisboa. Sendo colocado na delegacia de Kamanonge, distrito de Moxico.

Sabino, desmobilizado, um ano mais tarde, seguiu-lhe no sonho, embora nada houvesse  de acerto entre ambos.

- Agora que já não estou a servir os colonialistas, e com os conhecimentos militares que tenho, vou enquadrar-me no Movimento.

Tentou fazer-se à estrada até atingir a vila Teixeira de Sousa, no extremo Leste. Os espinhos eram muitos e poucos com histórico militar conseguiam transpor as barreiras impostas pela administração colonial até chegar à última estação do Caminho-de-Ferro de Benguela em território angolano. Já um ano tinha voado, depois da dispensa da vida militar e Sabino continuava com o sonho por realizar.

- A revolução também se pode fazer na recta-guarda. - Segredo-lhe o tio Njamba Ya Mina, já há anos com “kudibangela” na mão.

Conselho ouvido, conselho acatado. Sabino enquadrou-se no curso geral de enfermagem e o destino levou-o igualmente a  Kamanonge, onde viria a reencontrar o seu antigo colega e conselheiro Coimbra.

Quando se avistaram pela primeira vez, em Serpa Pinto (hoje Menongue), Coimbra ja era pai de segunda caminhada. Sabino ainda sonhava com a noiva deixada intacta em casa do padre Maurício, irmão de Argentina. Mal tinham começado a garinar o jovem, com o segundo ano do liceu concluído, foi forçado a enquadrar-se na tropa de ocupação colonial.

Em Kamanonge, estavam no epicentro da revolta contra o sistema colonial. A proximidade com a Rodésia independente e permissiva aconselhava o recrudescer dos combates e até facilitou o surgimento do kasula entre os  Movimentos guerrilheiros anti-salazaristas em Angola.  Coimbra, na chefia da delegacia da saúde, recebeu o neófito Sabino, seguindo-se outros anos de companheirismo e cumplicidades entre as duas famílias.

Durante o sol atendiam os colonos e aldeões da circunscrição e, às noites, os "irmaos kambutas" que abundavam nas chanas “trafulhosas” do Leste, até que chegou a Revolução dos Cravos. Salazar já pagava pelos pecados e Caetano, seu substituto na ditadura primo-ministerial, via o diabo a assar "joaquinzinhos" em lume ateado pelo movimento dos capitães.

- A independência chegou! - Gritaram as colónias. Colonizadores e colonizados sentaram-se à mesa de negociações, 14 anos depois do início das “nvundas do tunda mindele". Coimbra voltou a Silva Porto e Sabino enfrentou a traição rasteira de irmãos de sangue e sofrimento perante o chicote colonial.

- É ovimbundu, é colaborador. - Sem mais nem menos, acusaram-nos com sede de lhe tomar a cadeira na chefia da delegacia deixada por Coimbra transferido. “Foi o preço da revolução feita com poucos cérebros encanetados”, diria mais tarde.

Fugido das masmorras “pidescas”, à cadeia “disesca” foi entregue, acusado de traição.

- Nunca estive com eles. Nunca me simpatizei com eles. - Defendeu-se Sabino perante uma acusação que não permitia advogado.

Sabino viu o sol e até estrelas aos quadrados no meio de muita sova. Resistiu, porém, à tortura e à morte. Viu companheiros de desgraça, acusados de colaboracionismo com o terceiro Movimento, partirem para nunca mais se ouvir falar deles. Com o passar do tempo, recebeu outros parceiros de sofrimento, rusgados na refrega inglória do 27 de Maio. Muitos deles seguiram o destino dos primeiros. Desapareceram de dia para noite sem deixar rasto. Quando o sino da liberdade tocou, voltou à urbe nativa, fundada por Silva, o do Porto, onde voltou a encontrar o seu amigo e companheiro de todas as caminhadas. Coimbra dava vida ao confiscado hospital missionário de Kamundongo.

Vivem hoje aposentados, cuidando de netos a quem contam a cada sol um episódio, fazendo-lhes companhia a "pomada", as cicatrizes e as memórias.

- Então, compadre, o que será hoje o almoço? - Perguntou Sabino, na pele de visitante, enquanto ajeitava a sacola em que acomodava o galo trazido da fazenda.

- Catorze graus, com carne e pirão. É tempo de independência, compadre. - Respondeu Coimbra.

Rodeados por filhos kasulas, sobrinhos e netos comuns, Coimbra e Sabino abriram os seus livros de memórias e os descendentes foram anotando com atenção.

- Vovôs, vamos escrever um livro com vossas recordações. - Verbalizou Any Bingo, uma das netas comuns. A cabidela foi regada com vinho tinto de 14 graus, enquanto os mais novos festejavam com kisângwa.


Obs: Texto publicado pelo Semanário Angolense em Fevereiro de 2015.

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